Uma
tradição de Vila Viçosa aqui recordada por intermédio de Tiago Salgueiro
GRUPO DAS RONCAS – UMA TRADIÇÃO NATALÍCIA CALIPOLENSE
O Grupo de Roncas, que festejava o Natal, constituía
uma das mais relevantes representações etnográficas de Vila Viçosa no início do
século XX.
No contexto calipolense, a noite de Natal era
festejada com loas, trovas e cantigas dedicadas ao Menino Jesus, quer em frente
de presépios, quer pelas ruas da localidade, acompanhadas com as clássicas
roncas e ruidosas e típicas manifestações populares, que culminavam com a Missa
do Galo.
Uma calipolense, chamada Maria Paulista, por volta de
1900, conseguiu, por essa data, congregar elementos populares, masculinos e
femininos, de modo a concretizar os cantares e os folguedos na noite do Menino.
Foi ela a grande impulsionadora do Grupo Ronqueiro
que, até meados de 1930, comemorava a véspera noturna da Natividade, em Vila
Viçosa.
Este facto deu a Maria Paulista uma aura de simpatia
popular, pela forma sugestiva e bairrista como eram desempenhados os números
festivos da tradição natalícia, sob sua orientação.
Na imagem que foi possível digitalizar, podemos ver
Maria Paulista no centro do grupo, como diretora e regente do agrupamento
cantante e executante, vestindo à maneira das camadas populares calipolenses,
tendo por companhia rapazes e raparigas tangedores de roncas, os quais ela
ensaiava e manobrava, naquela função tradicional e festeira.
A constituição anual desse grupo ronqueiro principiava
nos dias 20 e 21 de Dezembro, numa reunião prévia, em que Maria Paulista,
depois de agendar a hora a que todos deviam comparecer, na sua casa, às Portas
de Estremoz no Castelo.
Para se efetivar a Festa das Roncas, dava todas as
indicações e conselhos relativos à confeção daqueles primitivos instrumentos e
em relação à indumentária mais adequada aos membros do grupo musical, assim
como a todas as partes componentes e inerentes ao referido conjunto folclórico
e etnográfico.
Para maior e melhor performance do evento, Maria
Paulista dava o exemplo de cuidado e devoção, ao fazer a montagem de um
presépio com todos os componentes, na sua própria residência.
Alcatifava o sobrado de ladrilhos dos seus aposentos e
disponha, sob a forma de anfiteatro, as figurinhas várias que o uso consagrou,
naquele cenário místico e natalício, envolvido em verduras de cizirão e
oleografias berrantes.
A dirigente do Grupo das Roncas tinha verdadeiro
orgulho em mostrar o Deus Menino, no meio das pompas de fancaria que ela
dispunha, com certa arte, ao gosto popular alentejano.
Às oito horas da noite, na Véspera de Natal, todos os
executantes do Grupo das Roncas reuniam-se em casa de Maria Paulista, conforme
aviso anteriormente transmitido. Tudo ordenado e disposto, o típico
agrupamento, antes de sair à rua, erguia, perante o presépio da dona da casa,
seus louvores, loas e trovas ao Menino Jesus que, desnudo, sorria aos
cantadores e tocadores, no seu minúsculo colchão de seda e na sua almofadinha
bordada.
Entretanto, à porta da humilde habitação, o arauto do
grupo, portador do fogo livre, lançava ao ar estralejantes foguetes, sinal
festivo que era, para Vila Viçosa., a essa hora em íntimo recolhimento na
lareira, o prenuncio ansiosamente esperado, daquela função original.
Após estes preliminares, deslocava-se pelas ruas
calipolenses aquele aglomerado de ronqueiros, cantando, tangendo, acompanhado
de muito povo e rapazio, ouvindo-se, de quando em quando, ruidosas aclamações
populares, com o rebentar de bombas e morteiros e o esfuziar de girandolas
estrepitosas.
E, ao perpassar pelos arruamentos do burgo
calipolense, o Grupo de Ronqueiros ia entrando nas casas que desejava honrar
com a sua presença, seus cantares, suas saudações festivas, ou naqueles lares
para onde é solicitado com empenho, sendo, em todas essas famílias, obsequiado
com bolos, filhoses, café, licores, nógados e outros oferecimentos.
Dadas as mútuas boas festas, os roncadores seguiam o
seu destino, de rua em rua, de largo em largo, até à hora ansiada e consagrada
da Meia Noite, momento em que eram forçados a dirigir os seus passos para a
Igreja de São Bartolomeu, onde assistiam devotamente à Missa do Galo e
procediam à cerimónia tocante de beijar o Menino Jesus.
Daqui, o Grupo das Roncas seguia tangendo e cantando
até Nossa Senhora da Conceição, freguesia Matriz da Vila.
Lá chegados, se os actos religiosos da
Natividade não estivessem ainda concluídos, todos se prostravam a orar e
beijavam novamente o Menino, depois do quê, cada membro do grupo recolhia ao
aconchego dos seus respetivos lares, a fim de consoar ou missar em
família.
Cada um levava a sua ronca, esse instrumento
rudimentar e primitivo, composto de uma panela de barro, com a boca coberta de
uma pele de banha de porco, tendo ao centro um palmo de cana delgada, fixa na
pele e que serve de vibrador, o qual se tange com a mão direita, lubrificada
com saliva.
As músicas que o grupo cantava eram de gosto e de
sentimento, adaptando-se à letra das loas de forma harmoniosa. Todo esse
conjunto, para quem teve o privilégio de contemplar a dedilhação das roncas e
compreender o sentido das trovas, era uma visão de excelsa evocação e de
magnitude regionalista.
A morte de Maria Paulista abriu na Festa das Roncas
uma lacuna insubstituível. No entanto, esta tradição foi recuperada há uns
anos, por alguns calipolenses, que teriam ainda nesta tradição oral, uma
referência em termos identitários.
Haverá “Marias Paulistas” nos nossos dias, que
reavivem esta memória?!
O desafio fica lançado...
FONTE:
MANSO, Lopes, ETNOGRAFIA CALIPOLENSE,
Revista Portuguesa, nº 1, Janeiro de 1928.
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