quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

TRADIÇÕES DO NATAL EM VILA VIÇOSA


Uma tradição de Vila Viçosa aqui recordada por intermédio de Tiago Salgueiro
            GRUPO DAS RONCAS – UMA TRADIÇÃO NATALÍCIA CALIPOLENSE
O Grupo de Roncas, que festejava o Natal, constituía uma das mais relevantes representações etnográficas de Vila Viçosa no início do século XX.
No contexto calipolense, a noite de Natal era festejada com loas, trovas e cantigas dedicadas ao Menino Jesus, quer em frente de presépios, quer pelas ruas da localidade, acompanhadas com as clássicas roncas e ruidosas e típicas manifestações populares, que culminavam com a Missa do Galo.
Uma calipolense, chamada Maria Paulista, por volta de 1900, conseguiu, por essa data, congregar elementos populares, masculinos e femininos, de modo a concretizar os cantares e os folguedos na noite do Menino.
Foi ela a grande impulsionadora do Grupo Ronqueiro que, até meados de 1930, comemorava a véspera noturna da Natividade, em Vila Viçosa.
Este facto deu a Maria Paulista uma aura de simpatia popular, pela forma sugestiva e bairrista como eram desempenhados os números festivos da tradição natalícia, sob sua orientação.
Na imagem que foi possível digitalizar, podemos ver Maria Paulista no centro do grupo, como diretora e regente do agrupamento cantante e executante, vestindo à maneira das camadas populares calipolenses, tendo por companhia rapazes e raparigas tangedores de roncas, os quais ela ensaiava e manobrava, naquela função tradicional e festeira.
A constituição anual desse grupo ronqueiro principiava nos dias 20 e 21 de Dezembro, numa reunião prévia, em que Maria Paulista, depois de agendar a hora a que todos deviam comparecer, na sua casa, às Portas de Estremoz no Castelo.
Para se efetivar a Festa das Roncas, dava todas as indicações e conselhos relativos à confeção daqueles primitivos instrumentos e em relação à indumentária mais adequada aos membros do grupo musical, assim como a todas as partes componentes e inerentes ao referido conjunto folclórico e etnográfico.
Para maior e melhor performance do evento, Maria Paulista dava o exemplo de cuidado e devoção, ao fazer a montagem de um presépio com todos os componentes, na sua própria residência.
Alcatifava o sobrado de ladrilhos dos seus aposentos e disponha, sob a forma de anfiteatro, as figurinhas várias que o uso consagrou, naquele cenário místico e natalício, envolvido em verduras de cizirão e oleografias berrantes.
A dirigente do Grupo das Roncas tinha verdadeiro orgulho em mostrar o Deus Menino, no meio das pompas de fancaria que ela dispunha, com certa arte, ao gosto popular alentejano.
Às oito horas da noite, na Véspera de Natal, todos os executantes do Grupo das Roncas reuniam-se em casa de Maria Paulista, conforme aviso anteriormente transmitido. Tudo ordenado e disposto, o típico agrupamento, antes de sair à rua, erguia, perante o presépio da dona da casa, seus louvores, loas e trovas ao Menino Jesus que, desnudo, sorria aos cantadores e tocadores, no seu minúsculo colchão de seda e na sua almofadinha bordada.
Entretanto, à porta da humilde habitação, o arauto do grupo, portador do fogo livre, lançava ao ar estralejantes foguetes, sinal festivo que era, para Vila Viçosa., a essa hora em íntimo recolhimento na lareira, o prenuncio ansiosamente esperado, daquela função original.
Após estes preliminares, deslocava-se pelas ruas calipolenses aquele aglomerado de ronqueiros, cantando, tangendo, acompanhado de muito povo e rapazio, ouvindo-se, de quando em quando, ruidosas aclamações populares, com o rebentar de bombas e morteiros e o esfuziar de girandolas estrepitosas.
E, ao perpassar pelos arruamentos do burgo calipolense, o Grupo de Ronqueiros ia entrando nas casas que desejava honrar com a sua presença, seus cantares, suas saudações festivas, ou naqueles lares para onde é solicitado com empenho, sendo, em todas essas famílias, obsequiado com bolos, filhoses, café, licores, nógados e outros oferecimentos.
Dadas as mútuas boas festas, os roncadores seguiam o seu destino, de rua em rua, de largo em largo, até à hora ansiada e consagrada da Meia Noite, momento em que eram forçados a dirigir os seus passos para a Igreja de São Bartolomeu, onde assistiam devotamente à Missa do Galo e procediam à cerimónia tocante de beijar o Menino Jesus.
Daqui, o Grupo das Roncas seguia tangendo e cantando até Nossa Senhora da Conceição, freguesia Matriz da Vila.
 Lá chegados, se os actos religiosos da Natividade não estivessem ainda concluídos, todos se prostravam a orar e beijavam novamente o Menino, depois do quê, cada membro do grupo recolhia ao aconchego dos seus respetivos lares, a fim de consoar ou missar em família.
Cada um levava a sua ronca, esse instrumento rudimentar e primitivo, composto de uma panela de barro, com a boca coberta de uma pele de banha de porco, tendo ao centro um palmo de cana delgada, fixa na pele e que serve de vibrador, o qual se tange com a mão direita, lubrificada com saliva.
As músicas que o grupo cantava eram de gosto e de sentimento, adaptando-se à letra das loas de forma harmoniosa. Todo esse conjunto, para quem teve o privilégio de contemplar a dedilhação das roncas e compreender o sentido das trovas, era uma visão de excelsa evocação e de magnitude regionalista.
A morte de Maria Paulista abriu na Festa das Roncas uma lacuna insubstituível. No entanto, esta tradição foi recuperada há uns anos, por alguns calipolenses, que teriam ainda nesta tradição oral, uma referência em termos identitários.
Haverá “Marias Paulistas” nos nossos dias, que reavivem esta memória?!
O desafio fica lançado...

FONTE:
MANSO, Lopes, ETNOGRAFIA CALIPOLENSE, Revista Portuguesa, nº 1, Janeiro de 1928.




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