quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

HISTÓRIAS DO LUÍS DE MATOS

Assinalando a época Natalícia neste mês de Dezembro as histórias do Luís de Matos  são dedicadas aos mais novos.

                        Uma Família de Lontras (a dar à estampa)
Estamos em plena Primavera. Muito próximo de Terena, a ribeira de Lucefécit, também conhecida por Boa Nova, de águas muito límpidas e cristalinas, corre para o rio Guadiana e este, por sua vez, só pára no Grande Lago de Alqueva. Na planície, abundam as azinheiras, sobreiros e oliveiras, que se estendem quase até à margem da ribeira de Lucefécit. Aqui e ali existem os freixos, choupos, plátanos, estevas, piornos, rosmaninhos e alandros com flores brancas e vermelhas.
A Primavera é, realmente, a estação das flores de muitas cores. Abundam os malmequeres, brancos e amarelos. E, as papoilas, com a sua cor avermelhada, misturam-se com o manto ondulado e o doirado das espigas de trigo. Os silvados também existem em grande número e as suas amoras servem de alimentação aos rouxinóis, melros e outras espécies de passarada. Há sempre a tentação de colher as saborosas amoras para comer ou para as preparar em casa, para fazer licor e compotas.
Em muitos pegos da ribeira de Lucefécit e, por vezes junto à margem, não faltam as tabúas, junça, buínho e as frágeis e elegantes libelinhas, pousando no espelho de água e nas tabúas. Podemos ver borboletas das mais variadas cores voando rente à água, ou fazendo grandes acrobacias por entre as tabúas e o juncal.
A ribeira de Lucefécit tem uma beleza muito especial. Ao longo do seu percurso, que é muito bonito, podem ver-se muitas variedades de flora. As muitas curvas apertadas da ribeira fazem com que as águas, quase abracem a outra margem.
A acrescentar a esta paisagem idílica, existem passarinhos das mais variadas cores e espécies que, logo pela manhã, pousados na copa das árvores, dão início a um lindo cantar. É certo que é menos musical, mas também não deixa de ser artístico, parecendo até um concerto executado por uma banda de música que, associado ao silêncio dos campos, a torna num local paradisíaco.
Por vezes, aqui e ali, a ribeira é rodeada por altas escarpas de xisto. Com o passar de muitos e muitos anos, devido aos fortes ventos e chuvas, muitas das lajes de xisto soltam-se e espalham-se pelas íngremes encostas. Outras vezes, caem devido à ação do homem, quer seja através da agricultura, ou do seu arranque propositado para a construção de habitações e muros, tornando estas construções muito apreciadas, não só pelos habitantes locais, mas também por outras regiões do país. Muitas são as lajes espalhadas ao longo das margens da ribeira de Lucefécit, camufladas com a bravia vegetação que, muitas vezes, servem de toca para as lontras e seus filhotes.
Na ribeira de Lucefécit, existem algumas lontras mas, é muito difícil vê-las porque se escondem no seio do seu habitat.
Logo pela manhã, mal o sol nasce, a mãe lontra, de nome Juca, começa o dia, com as suas mãozinhas ligadas por uma membrana, acariciando os seus três filhotes, a que deu os nomes de Miguel, Linda e Flor. A mãe Juca vigiava os três filhotes que estavam deitados sobre a frescura das ervas a brincar e a descansar de barriga para o ar. E assim passam horas e horas, deleitando-se com os mimos da mãe Juca.
Um dia, as três jovens lontras, depois de autorizadas pela mãe Juca, resolvem iniciar uma viagem, ribeira abaixo, à descoberta de outros locais, mas sempre com a promessa de, antes do anoitecer, regressarem à toca, para junto da mãe lontra. Esta já os tinha ensinado a defenderem-se dos homens e de outros predadores, que andam sempre por ali perto, escondidos nas margens, sorrateiramente, à procura de alguma presa. As três jovens lontras nadaram, nadaram, até se cansarem. Como já estavam muito fatigadas, decidiram fazer uma pequena paragem na margem da ribeira. Eis que, de repente, foram alertadas para qualquer coisa de anormal que lhes perturbou o descanso.
- Fujam já para dentro de água! - disse o Miguel. - Vamos para aquele pego mais fundo, para nos podermos esconder mais facilmente.
- Que bicho era aquele tão feio, esquisito e grande? - perguntou Linda, ainda meio assustada.
- Era um cão. Que horror! Que cheiro pestilento,- respondeu o Miguel com toda a autoridade de quem conhece muito bem os outros animais. Deve andar perdido, ou foi algum caçador que o abandonou, vendo que não era bom para caçar.
- Mas nós é que não temos culpa... Não queremos ser mordidos e muito menos servir-lhe de refeição. Não é nada parecido com a gente! Talvez não nos fizesse mal, mas nunca fiando, podia ter fome e atacar-nos. Foi o melhor que fizemos. Não foi Miguel? - disse a Flor.
- Sim. Safa! Que susto. Livrámo-nos de boa. Foi por pouco... Agora fiquemos aqui escondidos, mas temos de estar sempre alerta - disse o Miguel.
Claro, para isso é que servem os nossos ouvidos e pelos que temos junto à boca e ao nariz, que são os nossos órgãos sensoriais.
Finalmente, ao fim de algum tempo, o perigo passou. O cão, aquele animal pestilento, tinha resolvido partir.
- Prestem atenção: o que é que acham se fôssemos colher flores para oferecer à nossa mãe? Mas não nos podemos afastar muito uns dos outros, e muito menos da margem, porque se aparecer algum perigo, corremos a esconder-nos na água. Só aí é que estamos a salvo, - disse o Miguel.
- Boa ideia! Então vamos. - disse a Linda.- Olha, há ali malmequeres, lírios e papoilas. Que bonito ramo que vamos fazer! E assim, as três jovens lontras deitaram mãos à obra.
Agora é a vez de Flor, dar ordens ao Miguel. É certo que é mais nova, mas nessa questão de flores, ela é que sabe:
- Colhe ali aquela papoila e aqueles malmequeres, enquanto eu vou colher uns lírios e um ou dois pés de rosmaninho, que cheiram muito bem. Vais ver como vamos fazer um bonito ramo. E a nossa mãe vai ficar tão contente! - disse a Flor.
- Pronto, aqui tens. Agora, quero ver a tua habilidade. Uma vez que tu é que sabes... - desabafou o Miguel, um pouco amuado, pois não tinha achado graça nenhuma ao facto de a Flor lhe dizer para colher só malmequeres e papoilas, quando ele queria colher flores de todas as espécies e cores.
Mas, como bons irmãos, depressa passou o pequeno amuo. Continuaram numa grande agitação e orgulhosos no trabalho de decoração da toca.
- Quando a mãe Juca chegar, vai ter uma boa surpresa, - disse o Miguel.
- Olha Flor, estes brincos são para ti. Também te fiz um colar de malmequeres. E para também fiz um colar para a Linda. Não tinha linha para enfiar os malmequeres, mas colhi um pé de junça e resultou. Tomem-nos, pendurem-nos ao pescoço. Mas, pensando melhor, dai cá os colares que eu ajudo a colocá-los. - disse o Miguel.
- Que bonito, mano! - muito obrigada, disseram Linda e Flor, já um pouco comovidas, enquanto o Miguel lhes dava a face para receber dois beijinhos delas ,em sinal de agradecimento.
Ao final da tarde, a mãe Juca chegou a casa. Quer dizer... à toca, que estava muito bem decorada com as flores que os três tinham colhido. A mãe Lontra foi apanhada de surpresa e agradeceu aos filhotes, por terem enfeitado a toca com flores tão bonitas. Depois mostrou-lhes o enorme peixe que tinha apanhado para o jantar. A mãe Juca cozinhou o enorme peixe e, enquanto comiam, cheios de entusiasmo, contavam à mãe as aventuras do dia. A mãe ouvia-os com muita atenção e com todo o seu amor, próprio de mãe, disse-lhes:
- Sim, eu sei. Acompanhei-os sempre de perto para ver como é que vocês ultrapassavam as dificuldades que existem no nosso habitat. Hoje passaram por uma experiência completamente nova que se veio a confirmar numa boa prova de sobrevivência. Se quiserem, amanhã deixo-vos ir visitar o avô.
- Boa, boa! - disseram os três ao mesmo tempo.
- Por hoje já chega, disse-lhes a mãe Juca. Agora vão deitar–se, porque amanhã têm um grande dia pela frente.
Nessa noite, Miguel, Linda e Flor, não dormiram o habitual sono profundo das noites anteriores. Mal rompeu o dia, levantaram-se de imediato para um passeio que eles consideravam muito especial, pois desta vez, tinham um local certo a visitar. Era a casa do avô, e isso excitava-os.
- Mãe, sabes onde fica situada a casa do avô? - perguntaram as três jovens lontras ao mesmo tempo, tal era o nervoso miudinho que se tinha apoderado delas.
- Sim, sei.- respondeu a mãe. Fui lá criada, não havia de saber? Próximo da casa, existe um monte muito grande e muito importante, onde outrora existiram povos muito sábios, que se orientavam pelas estrelas e pelo sol. Sabiam ver quando chovia, nevava, fazia frio ou calor. Respeitavam as plantas e as árvores, os animais e as águas da ribeira. Todos os homens eram amigos uns dos outros, e as crianças brincavam e corriam alegremente por entre flores, de todas as cores que possas imaginar. As cores eram tantas que até parecia o arco íris. Na margem da ribeira, o avô tem uma pequena horta e um moinho para fazer farinha. Tem também um forno para cozer o pão com a farinha que ele próprio mói no moinho. O pão feito pelo teu avô é muito saboroso, e quando sai do forno, nem vos digo! É cá um aroma! E como sabes, o pão é muito bom para a nossa alimentação. Bom… vão embora, porque se começa a fazer tarde,- disse a mãe Juca.
As três jovens lontras, deram então início à viagem, só que desta vez, era feita ribeira acima, para os lados do tal monte muito grande. Tinham de vencer algumas correntes mais fortes da água da ribeira, pois nadavam contra a corrente. Nadaram, nadaram, até se cansarem. E quando na margem da ribeira pararam para descansar, já um pequeno grupo de cinco jovens lontras tinha feito o mesmo. Com cautela, aproximaram-se e, prontamente, o Miguel perguntou-lhes como se chamavam, de onde vinham, para onde iam e porque é que estavam ali? Queria saber tudo sobre eles, e conforme as respostas, logo veria se podia confiar neles e serem amigos.
As respostas não tardaram. Logo o Duarte, com toda a sua sabedoria e entusiasmo, fez as apresentações: esta aqui é a Inês, esta é a Leonor e estes são o Tomás e o Afonso. Estes dois últimos, são os mais novos. Ainda têm alguma dificuldade em acompanhar o nosso ritmo de nado. Por isso tivemos de fazer aqui uma pausa. Não temos um destino certo, nem horário a cumprir, simplesmente viemos dar um passeio, calmamente, para alertar sobre os perigos e preparar estes dois mais novos para a vida, bem como a Leonor, o Tomás e o Afonso, pois têm ainda muito para aprender: têm de conhecer outras águas e paisagens, uma vez que só conhecem os pequenos ribeiros onde vivem com os pais. E então? Achas que respondi às tuas perguntas? Merecemos a tua confiança para podermos ser amigos?- perguntou o Duarte.
- Bom... Não sei...- respondeu o Miguel com alguma hesitação.
- Está bem. Se não tens confiança...- respondeu o Duarte e preparando-se para abandonar o diálogo, revelando-se nitidamente desinteressado.
- Bom, está bem! - respondeu finalmente o Miguel
- Então, se nos consideras amigos, daqui em diante, eu gostava de ser o líder do grupo, porque como vês, nós somos cinco e vocês são apenas três. Eu tenho mais experiência e conheço melhor estas águas do que tu. Sei onde pode estar o perigo à nossa espreita e viemos de mais longe, argumentou o Duarte, justificando a sua proposta. - Estás de acordo?
- Sim, não me importo, - respondeu o Miguel.
- Hei! - e nós as duas, não temos direito a dar a nossa opinião? - perguntaram a Linda e a Flor.
- Claro que têm, mas nestas circunstâncias não temos alternativa. Além disso, qual é o mal de serem eles a indicarem-nos o caminho? - perguntou o Miguel. - Nós só queremos ir a casa do nosso avô, queremos conhecer a horta e o moinho dele e que nos ensine a trabalhar com o moinho. Queremos aprender a transformar os grãos de milho e os bagos de trigo em farinha, para fazermos pão. Queremos aprender a deitar sementes à terra para nascerem as plantas e plantar couves, alfaces, cenouras...Queremos aprender tudo quanto o nosso avô nos possa ensinar, porque a nossa mãe disse-nos que ele sabe muitas coisas. E, assim, pode ser que um dia eu e os meus irmãos possamos ensinar os nossos filhos e netos. Não nos havemos de esquecer do que ele nos pode ensinar. Não concordas? Como vamos adorar! - Eh, eh, eh…- riu o Miguel. E, virando-se para o Duarte, perguntou-lhe: - Já agora, se não te importas, deixa-me fazer-te uma pergunta: Tu sabes, onde é o moinho do meu avô, já que conheces tudo? Ensinas-nos o caminho? A nossa mãe, disse-nos onde era, mas mais vale perguntarmos o caminho para termos a certeza de que não nos perdemos - disse o Miguel.
- Claro que sei! - respondeu o Duarte. - Não te disse já, que conheço estas águas como ninguém? Fica descansado! - disse o Duarte, tranquilizando-o. - E a ribeira é muito grande! Tem muitos afluentes, mas isso para mim não tem qualquer problema: é só seguirmos ribeira acima, e depois, onde encontrarmos uma grande enseada e um açude feito com muitas pedras, que os homens há muitos anos construíram para reter a água para fazer trabalhar o moinho, é logo ali, na margem direita. Não custa nada. Vais ver que não vai ser difícil lá chegarmos porque eu conheço muito bem este local. Podem confiar, meus amigos.
E assim, depois de estabelecida a amizade, partiram todos, alegres e sorridentes, de barbatanas dadas uns aos outros e, abanando as caudas, calmamente, seguiram ribeira acima, em direção à horta e ao moinho do avô, que os três irmãos, tanto desejavam conhecer.
Luís de Matos
Évora, 17 de Agosto de 2008 

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