terça-feira, 3 de abril de 2018

MEMORIAS CURTAS - Prof Vitor Guita

            Uma vez por mês o Prof, Vitor Guita traz-nos à memória,
                                             recordações do passado

A ribeira vai cheia!...
À semelhança de muitos outros montemorenses, não resistimos à tentação de ir até à Ponte de Alcácer para ver o Almansor correr caudaloso e lamacento, embora sem o ímpeto avassalador de outros tempos. Já tínhamos saudades de ouvir o deslizar rumorejante da corrente, de contemplar aquela massa de água barrenta derramando-se pelo leito da ribeira, espraiando-se, aqui e ali, pelas suas margens.
Quando se fala de cheias, vem sempre à lembrança relatos daquela que ficou conhecida por “cheias dos porcos”, em que a fúria do rio desenterrou e levou na enxurrada centenas de cadáveres de suínos, vitimados pela peste e enterrados próximo das margens. Algum tempo depois, à medida que as águas iam baixando, viam-se cadáveres opados, presos nos ramos das árvores. Cenário dantesco!
Em alturas de cheias, alem das tragédias humanas que aconteceram, era frequente que a água entrasse violentamente nos agulheiros dos moinhos, paralisando os rodízios de madeira de azinho e a consequente produção de farinha. Eram dias e noites de sobressalto vividas pelos moleiros.
Mas, voltemos ao nosso olhar para a vetusta ponte e para as cheias deste mês de Março. As últimas chuvadas engrossaram bastante o caudal do rio, fazendo-o subir, em alguns momentos até meio dos arcos.
Ali por perto, fomos dar com o homem que tem sido nestes últimos oitenta anos, um dos espectadores mais atentos e conhecedor daquele troço da ribeira. Em Montemor toda a gente o trata por Guiga, a não ser u amigo seu que lhe chama, Joaquim Henrique, o seu nome verdadeiro.
Como não podia deixar de ser, falamos do sobe e desce das águas e da sobrevivência do rio, Disse-nos o Guiga que não se vê por ali um peixe, uma rã, uma cobra de água, Chamou-nos depois a atenção para o facto de a ribeira correr apenas por baixo de três dos seus cinco arcos. Os outros estão entupidos com matagal. No denso silvado, em certas épocas do ano, acoitam-se saca-rabos e outra bicheza que não dão sossego a galinhas e outra criação na vizinhança.
Aproveitámos, entretanto, umas tréguas que a chuva nos concedeu para falarmos um pouco do que tem sido o percurso do amigo Guiga, ao longo dos seus oitenta e nove anos de vida. Com o seu ar magrebino, magro, tez morena, o octogenário nasceu na Rua de Alcácer, tendo abalado lá para baixo, para a beira-rio, aos oito anos de idade.

A princípio, o abrigo foi uma barraca junto ao Pego de Santa Quitéria, popularmente conhecido por Pego do Poço. Mais tarde, a família ocupou um outro espaço, mais perto da ponte, onde foi construindo, pedra a pedra, tijolo a tijolo, tábua a tábua, uma outra habitação. Construía-se de noite, muitas vezes à luz do candeeiro a petróleo.
Para vir à escola, o Guiga tinha de palmilhar ainda uns bons metros, a pé descalço desde a ribeira até A parte alta da vila. Não passou da 3ª classe. Um tétano, que afectou o pai, obrigou o gaiato a ter de andar atrás das cabras. O gado caprino come tudo o que lhe aparece à frente, nem que sejam sargaços. Talvez por isso o leite é mais forte e, naquela altura, era bastante procurado por compradores da vila.
O pai do Guiga, homem rijo e destemido, era oriundo de uma família Teles, ali das bandas de S. Pedro da Gafanhoeira. Era geralmente conhecido por Velho Cosme e a mulher tinha o invulgar nome de Jacoba. A alcunha do Cosme surge a partir do momento em que vem morar para Montemor viver num dos moinhos do Almansor. Toda a gente o tratava pelo nome do moinho. Ele próprio começou a assinar António Inácio Cosme.
A família Cosme era uma casa cheia. A filharada era numerosa. Pelas nossas contas, ultrapassava bem a meia dúzia. O Guiga emocionou-se ao falar dos irmãos, em particular da sua irmã Maria Genoveva, criada de servir em casa do professor Carlos Cebola. A dedicação à família Cebola era tal , que a Maria trazia sempre na carteira os retratos do s filhos do professor.
A dado passo da conversa, juntámos às memórias do Guiga as nossas próprias memórias. Lembranças que vêm da infância, do tempo em que acompanhávamos a nossa avó Mariana até à ribeira, quando ela ia lavar. Não nos sai da cabeça aquele mosaico de roupa branca estendida por aqueles juncais fora, corando ao sol. Depois de trouxa à cabeça, lá iam as lavadeiras, num andamento compassado, subindo a ladeira em direcção às Fontainhas.
Outras vezes eramos companhia do nosso avô Zé Guita, quando este decidia ir pescar ou, com o camaroeiro, apanhar camarão miúdo, que depois utilizava como isco.
Uma das imagens mais nítidas que guardamos do Guiga é a do tempo em que ele trabalhou no armazém da Rua Nova. Muitos sacos de açúcar, muitos fardos de bacalhau, muitas caixas de sabão passaram pelas suas costas e pelos seus ombros. Foi toda a vida a carregar e a descarregar em armazéns, celeiros e, ultimamente, no transporte de cortiça, como descarregador nas camionetas de longo curso. A cortiça deu-lhe cabo do corpo. “As dores agora é que me chumbam! As dores e a vista”- lamenta-se o nosso parceiro de conversa.
Quando se fala do Guiga é obrigatório falar das largadas de touros, quer no interior da Praça quer nas ruas da vila, muitas delas a favor do Hospital Infantil S. João de Deus. Foi com a sua ajuda que se vedaram ruas, que se montaram as pesadas mangas de madeira no Largo do Almansor, na Rua de Avis, no Largo Serpa Pinto.
Falar do Guiga é associá-lo à sua equipa do coração: O grupo União Sport. Era figura omnipresente no Estádio 1º de Maio e em toda a parte onde a equipa se deslocava: Évora, Vendas Novas, Barreiro, Redondo, Santiago do Cacem…Foi muito quilómetro de bicicleta! Era preciso apoiar, defender o União com unhas e dentes, mesmo que isso implicasse ter de sair dos estádios escoltado entre dois guardas.
Aproximava-se o meio-dia. Em breve chegaria a marmita com o almoço para o amigo Guiga. A conversa acabou com recordações da velha estação ferroviária e do quiosque no jardim fronteiro. Depois do combóio chegar, já para lá das onze da noite, vinte e cinco tostões era quanto o Guiga ganhava por ajudar, quando necessário, os passageiros ou os estafetas a transportarem malas e outra carga, rua acima.
Houve ainda espaço para falar das obras de recuperação da velha ponte. Foi nos anos 80 que parte da estrutura de terra deu lugar ao ferro e cimento, e se alargou a passagem sobre o histórico monumento. Os trabalhos, de acordo com o que o Guiga nos disse, teriam começado sensivelmente por esta altura do ano.
E porque estamos no mês de Março, o mês em que nasceu e morreu o nosso saudoso amigo e escritor excelentíssimo João Carlos Alfacinha da Silva (Alface) ficam aqui algumas palavras por ele escritas a propósito do Rio Almansor.
“Ao tempo da minha meninice, década de 50, meados de 60, piscinas e computadores não havia (felizmente) e a juventude masculina, a rapaziada, assim que apanhava uma aberta apontava à” r´bera” .
Não chamávamos rio a este Almansor que hoje nos ocupa. Uma vezes era “r´bera”, outras “r´bero” e este hermafroditismo fluvial teria possivelmente a ver com questões de caudal, mais amplo se feminino (a “r´bera”), mais esquelectico, clandestino, sumido, quase renitente, na fase “r´bero”..
Ora seja um rio feminino no Inverno e masculino no Verão, o que não deixa de ser um excelente programa de festas para quem aspire à totalidade do Ser.
Não havia melhor maneira de acabar.
Ficamos por aqui. Até breve.
Vitor Guita
In Montemorense Março 2018 – Transcrição autorizada pelo Autor

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