recordações do passado
A ribeira
vai cheia!...
À semelhança
de muitos outros montemorenses, não resistimos à tentação de ir até à Ponte de
Alcácer para ver o Almansor correr caudaloso e lamacento, embora sem o ímpeto
avassalador de outros tempos. Já tínhamos saudades de ouvir o deslizar
rumorejante da corrente, de contemplar aquela massa de água barrenta
derramando-se pelo leito da ribeira, espraiando-se, aqui e ali, pelas suas
margens.
Quando se
fala de cheias, vem sempre à lembrança relatos daquela que ficou conhecida por
“cheias dos porcos”, em que a fúria do rio desenterrou e levou na enxurrada
centenas de cadáveres de suínos, vitimados pela peste e enterrados próximo das
margens. Algum tempo depois, à medida que as águas iam baixando, viam-se cadáveres
opados, presos nos ramos das árvores. Cenário dantesco!
Em alturas
de cheias, alem das tragédias humanas que aconteceram, era frequente que a água
entrasse violentamente nos agulheiros dos moinhos, paralisando os rodízios de
madeira de azinho e a consequente produção de farinha. Eram dias e noites de
sobressalto vividas pelos moleiros.
Mas,
voltemos ao nosso olhar para a vetusta ponte e para as cheias deste mês de
Março. As últimas chuvadas engrossaram bastante o caudal do rio, fazendo-o
subir, em alguns momentos até meio dos arcos.
Ali por
perto, fomos dar com o homem que tem sido nestes últimos oitenta anos, um dos
espectadores mais atentos e conhecedor daquele troço da ribeira. Em Montemor
toda a gente o trata por Guiga, a não ser u amigo seu que lhe chama, Joaquim
Henrique, o seu nome verdadeiro.
Como não podia deixar de ser, falamos do sobe
e desce das águas e da sobrevivência do rio, Disse-nos o Guiga que não se vê
por ali um peixe, uma rã, uma cobra de água, Chamou-nos depois a atenção para o
facto de a ribeira correr apenas por baixo de três dos seus cinco arcos. Os
outros estão entupidos com matagal. No denso silvado, em certas épocas do ano,
acoitam-se saca-rabos e outra bicheza que não dão sossego a galinhas e outra
criação na vizinhança.
Aproveitámos,
entretanto, umas tréguas que a chuva nos concedeu para falarmos um pouco do que
tem sido o percurso do amigo Guiga, ao longo dos seus oitenta e nove anos de
vida. Com o seu ar magrebino, magro, tez morena, o octogenário nasceu na Rua de
Alcácer, tendo abalado lá para baixo, para a beira-rio, aos oito anos de idade.
A princípio,
o abrigo foi uma barraca junto ao Pego de Santa Quitéria, popularmente
conhecido por Pego do Poço. Mais tarde, a família ocupou um outro espaço, mais
perto da ponte, onde foi construindo, pedra a pedra, tijolo a tijolo, tábua a
tábua, uma outra habitação. Construía-se de noite, muitas vezes à luz do
candeeiro a petróleo.
Para vir à
escola, o Guiga tinha de palmilhar ainda uns bons metros, a pé descalço desde a
ribeira até A parte alta da vila. Não passou da 3ª classe. Um tétano, que
afectou o pai, obrigou o gaiato a ter de andar atrás das cabras. O gado caprino
come tudo o que lhe aparece à frente, nem que sejam sargaços. Talvez por isso o
leite é mais forte e, naquela altura, era bastante procurado por compradores da
vila.
O pai do
Guiga, homem rijo e destemido, era oriundo de uma família Teles, ali das bandas
de S. Pedro da Gafanhoeira. Era geralmente conhecido por Velho Cosme e a mulher
tinha o invulgar nome de Jacoba. A alcunha do Cosme surge a partir do momento
em que vem morar para Montemor viver num dos moinhos do Almansor. Toda a gente
o tratava pelo nome do moinho. Ele próprio começou a assinar António Inácio
Cosme.
A família
Cosme era uma casa cheia. A filharada era numerosa. Pelas nossas contas,
ultrapassava bem a meia dúzia. O Guiga emocionou-se ao falar dos irmãos, em
particular da sua irmã Maria Genoveva, criada de servir em casa do professor
Carlos Cebola. A dedicação à família Cebola era tal , que a Maria trazia sempre
na carteira os retratos do s filhos do professor.
A dado passo
da conversa, juntámos às memórias do Guiga as nossas próprias memórias.
Lembranças que vêm da infância, do tempo em que acompanhávamos a nossa avó
Mariana até à ribeira, quando ela ia lavar. Não nos sai da cabeça aquele
mosaico de roupa branca estendida por aqueles juncais fora, corando ao sol.
Depois de trouxa à cabeça, lá iam as lavadeiras, num andamento compassado,
subindo a ladeira em direcção às Fontainhas.
Outras vezes
eramos companhia do nosso avô Zé Guita, quando este decidia ir pescar ou, com o
camaroeiro, apanhar camarão miúdo, que depois utilizava como isco.
Uma das
imagens mais nítidas que guardamos do Guiga é a do tempo em que ele trabalhou
no armazém da Rua Nova. Muitos sacos de açúcar, muitos fardos de bacalhau,
muitas caixas de sabão passaram pelas suas costas e pelos seus ombros. Foi toda
a vida a carregar e a descarregar em armazéns, celeiros e, ultimamente, no
transporte de cortiça, como descarregador nas camionetas de longo curso. A
cortiça deu-lhe cabo do corpo. “As dores
agora é que me chumbam! As dores e a vista”- lamenta-se o nosso parceiro de
conversa.
Quando se
fala do Guiga é obrigatório falar das largadas de touros, quer no interior da
Praça quer nas ruas da vila, muitas delas a favor do Hospital Infantil S. João
de Deus. Foi com a sua ajuda que se vedaram ruas, que se montaram as pesadas
mangas de madeira no Largo do Almansor, na Rua de Avis, no Largo Serpa Pinto.
Falar do
Guiga é associá-lo à sua equipa do coração: O grupo União Sport. Era figura
omnipresente no Estádio 1º de Maio e em toda a parte onde a equipa se
deslocava: Évora, Vendas Novas, Barreiro, Redondo, Santiago do Cacem…Foi muito
quilómetro de bicicleta! Era preciso apoiar, defender o União com unhas e
dentes, mesmo que isso implicasse ter de sair dos estádios escoltado entre dois
guardas.
Aproximava-se
o meio-dia. Em breve chegaria a marmita com o almoço para o amigo Guiga. A
conversa acabou com recordações da velha estação ferroviária e do quiosque no
jardim fronteiro. Depois do combóio chegar, já para lá das onze da noite, vinte
e cinco tostões era quanto o Guiga ganhava por ajudar, quando necessário, os
passageiros ou os estafetas a transportarem malas e outra carga, rua acima.
Houve ainda
espaço para falar das obras de recuperação da velha ponte. Foi nos anos 80 que
parte da estrutura de terra deu lugar ao ferro e cimento, e se alargou a
passagem sobre o histórico monumento. Os trabalhos, de acordo com o que o Guiga
nos disse, teriam começado sensivelmente por esta altura do ano.
E porque
estamos no mês de Março, o mês em que nasceu e morreu o nosso saudoso amigo e
escritor excelentíssimo João Carlos Alfacinha da Silva (Alface) ficam aqui
algumas palavras por ele escritas a propósito do Rio Almansor.
“Ao tempo da minha meninice, década
de 50, meados de 60, piscinas e computadores não havia (felizmente) e a
juventude masculina, a rapaziada, assim que apanhava uma aberta apontava à”
r´bera” .
Não chamávamos rio a este Almansor
que hoje nos ocupa. Uma vezes era “r´bera”, outras “r´bero” e este
hermafroditismo fluvial teria possivelmente a ver com questões de caudal, mais
amplo se feminino (a “r´bera”), mais esquelectico, clandestino, sumido, quase
renitente, na fase “r´bero”..
Ora seja um rio feminino no Inverno e
masculino no Verão, o que não deixa de ser um excelente programa de festas para
quem aspire à totalidade do Ser.
Não havia
melhor maneira de acabar.
Ficamos por
aqui. Até breve.
Vitor Guita
In Montemorense Março 2018 –
Transcrição autorizada pelo Autor
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