Pois é, estimado leitor. Estas são as nossas Memórias Curtas
número 100.
Isto sem contar com mais umas quantas crónicas/memórias
acerca do Rio Almansor e dos seus moinhos.
Para grande arte dos povos, o número 100 representa a ideia
de abundância, de perfeição, de totalidade. Quando se atinge 100% de qualquer
coisa, é sinal de que se chegou à conclusão ou ao nível perfeito de algo. Não é
este o caso.
Além disso, quando alguém diz estar a 100%, equivale a dizer
que está completamente em forma. Curiosamente o número 99 está ali muito
próximo, mas não transmite a mesma idéia de satisfação plena.
Ainda muito recentemente o CR7 marcou o seu centésimo golo
nas competições europeias. Foi uma festa. E sempre a fasquia dos cem como
referência.
O amigo leitor também já se apercebeu, por certo, de que uma
boa parte das moedas do mundo inteiro está dividida em parcelas de 100. É assim
com os cêntimos; foi assim com os centavos. Do mesmo modo, o século é uma das
medidas de tempo mais utilizadas, nomeadamente quando se fala dos períodos da
História ou de Escolas de Arte.
No domínio religioso, muitos são os capítulos da Bíblia onde
surge o número 100 com toda a carga simbólica que isso implica.
Por outro lado, dizem aqueles que se dedicam á interpretação
dos sonhos que sonhar com o número 100 representa um novo começo, um renovado
impulso para empreender algo de diferente.
Ora…era disso mesmo que estávamos agora a necessitar. De uma
ideia que nos fizesse sair da numerologia e que apontasse numa outra direcção,
de preferência mais humanizada.
E se fôssemos, por exemplo à procura de alguém que tenha
completado um século de vida?
Lourenço António Chucha celebrou, há bem pouco tempo os seus
ainda bem dispostos 100 anos de existência. No Abrigo dos Velhos Trabalhadores,
houve festa animada.
Fomos até lá, um dia destes, para conversar com o
centenário. Para isso tivemos a ajuda da sua neta Susana.
Se o amigo Lourenço já manifesta alguma dificuldade em
administrar o ouvido, a voz sonorosa do ancião faz-se ouvir a grande distância,
coando por salas e corredores da instituição.
É um regalo ouvir as suas histórias contadas a plenos
pulmões.
A fazer-lhe companhia está a sua companheira de há mais de
setenta anos, Isabel Maria Custódia. Foi este o nome que se lembraram de lhe
por no Registo. Era assim naquele tempo. A D. Isabel parece querer fazer
concorrência ao marido, em termos de longevidade. Já conta a bonita idade de 92
anos, e cá com uma rijeza, uma lucidez e um humor perfeitamente invejáveis.
Quanto a Lourenço António Chucha, começou a trabalhar aos 8
ou 9 anos, na Quinta de Sancha Cabeça, propriedade da casa Marques dos Santos.
O pequeno Lourenço ainda frequentou a 4ª classe, mas não fez exame. Apesar de
tudo leva grande vantagem sobre a sua mulher, que não sabe juntar duas letras,
A instrução pode não ser muita, mas adivinha-se ali uma sabedoria antiga,
solidamente forjada na experiência.
Em matéria de trabalho, o agora centenário cavou, ceifou,
sachou milho…Fez de tudo ou quase tudo, Como acontecia com outros rurais, a
lida do campo arrastava-se de sol a sol. A partir de certa altura, Lourenço
Chucha passou a ser o chefe maior de um numeroso rancho de homens e mulheres.
O trabalho do campo esteve sempre intimamente ligado á sua
vida. Foi na apanha da azeitona, ali para os lados do Sobralinho, que conheceu
a sua mulher. Nessa altura, ela morava no Reguengo e ele no Monte do Cárcere.
Veio depois o tempo da tropa, ainda que breve.
Já tinham casado há 10 anos, quando ele e a mulher vieram
morar para a Fazenda da Ribeira, como caseiros do patrão Marques dos Santos. A
casa e as terras ficam à beira do rio junto ao Porto das Lãs de Baixo.
Sempre que por ali passamos e olhamos o muro da fazenda, imaginamos o costado de uma embarcação vogando sobre as águas ou idealizamos um Almansor caudaloso a embater impetuosamente na pequena fortaleza. Só imaginação, claro! Hoje o rio corre envergonhado, limitando-se a cobrir o piso viscoso. O Almansor parece ter perdido a energia inicial que, no Inverno, o fazia sair do leito, galgando margens e avançando estrada acima, até ao quiosque do Zé Abelha e, mais tarde, do Manel da Abalada.
Sempre que por ali passamos e olhamos o muro da fazenda, imaginamos o costado de uma embarcação vogando sobre as águas ou idealizamos um Almansor caudaloso a embater impetuosamente na pequena fortaleza. Só imaginação, claro! Hoje o rio corre envergonhado, limitando-se a cobrir o piso viscoso. O Almansor parece ter perdido a energia inicial que, no Inverno, o fazia sair do leito, galgando margens e avançando estrada acima, até ao quiosque do Zé Abelha e, mais tarde, do Manel da Abalada.
Ao longo da nossa conversa vieram à tona funestas conversas
acerca da ribeira, no tempo em que chovia. Falou-se das cheias frequentes que
passavam por cima das passadeiras e do risco que era atravessá-las; das
imperativas marcas gravadas pela água barrenta no muro da fazenda; dos
episódios trágicos que ali ocorreram, provocando pânico, ceifando vidas. O
Porto das Lãs foi lugar fatídico para muita gente. O amigo Lourenço lembra-se
de ter livrado alguns de morrerem afogados, lançando-lhes cordas. Uns ficavam
presos dentro dos carros ou engasgalhados nos troncos das árvores. Outros
desapareceram arrastados pela corrente.
É dos livros que, na mitologia grega, havia um velho barqueiro chamado Caronte que, a troco de um óbolo, passava as almas dos mortos, dentro da sua estreita barca, para a outra margem do rio. Com muito menos avareza, o nosso centenário pode gabar-se de ter resgatado algumas almas para o reino dos vivos.
É dos livros que, na mitologia grega, havia um velho barqueiro chamado Caronte que, a troco de um óbolo, passava as almas dos mortos, dentro da sua estreita barca, para a outra margem do rio. Com muito menos avareza, o nosso centenário pode gabar-se de ter resgatado algumas almas para o reino dos vivos.
Mas, basta de mitologias. Durante a nossa conversa, saíram
cá para fora outras histórias bem mais reais, passadas por exemplo com o
Joaquim Chidas ou o João Cuba, que costumavam ir ali extrair areia da ribeira e
a transportá-la em carroças para a vila. Só não lhes era permitido fazer
barrancos junto ao muro da fazenda, ainda assim não fosse acontecer alguma
derrocada. Depois. Veio a recordação de inúmeros episódios que aconteceram
durante as múltiplas caminhadas que o amigo Lourenço fez entre o Porto das Lãs
e a vila.
A torrente de lembranças foi fluindo a muito bom ritmo.
Faltava-nos ainda falar de uma das facetas mais marcantes do nosso
entrevistado.
Lourenço António Chucha chegou a ser o decano ds hortelões
aqui da zona. Até aos 98 anos, altura em que veio para o Abrigo, foi ele que
sempre cultivou a horta lá de casa e tratou dos animais. A produção era ara
consumo caseiro e para fazer conta com alguns amigos. Só quando chegava
Setembro é que o amigo Lourenço pegava nalguns sacos de batata e nuns milheiros
de cebolas, que ía negociar à feira. Água não faltava para o cultivo da
fazenda. Em último recurso, existia um alvará que permitia canalizar a água da
ribeira para a nora.
Quisemos saber por fim, o segredo para se atingir a secular
idade. Nada de especial. O centenário confessou nunca ter sido bêbedo nem
fumador. Trabalho. Muito trabalho. Com a boa disposição que o caracteriza,
confidenciou-nos só ter apanhado duas pielas, uma delas memoráveil. Naquela
noite de descuido, se não fosse o filho, tinham-se queimado os tomateiros todos
com a geada.
Um século de vida recheado de experiências, de memórias, de
ensinamentos, que daria para ficarmos horas intermináveis a falar com o amigo
Lourenço ou, como a família carinhosamente lhe chama, o Avô Lourenço.
Vamos porem ter de ficar por aqui. Até um dia destes.
Vitor Guita
In Montemorense – Abril 2017
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