lembram-se da Catarina?
O
verso que agora escrevo
Provêm
da mendiga fina
As
palavras que descrevo
São
para Ti, Catarina
A
velha lá estava sentada no chão
Ao
pé da Igreja pedia um tostão
Sua voz roufenha queria mais um
Gente
apressada não dava nenhum
Gente
que passava olhava de revens
Na
caixa das esmolas não havia vinténs
Até
que um dia passou a criança
A
velha sorriu tocou-lhe a lembrança
Seu
gesto suave, cheio de ternura
Do
tempo de menina, quando fora pura
O
que ela tinha estendeu ao pequenino
Pedia
ao adulto mas dava ao menino.
Recentemente
desloquei-me a Lisboa, passei na baixa Lisboeta, frente á Igreja de São Roque,
na baixa do Chiado, onde a mendiga pedia.
Foram
vinte e quatro anos de Lisboa e cada vez que passava frente á Igreja lá estava a
mendiga.
Bem,
não sei se seria a mesma, o certo é que estava com trajos pretos e lenço da
mesma cor na cabeça, como a outra ou outras que lá vi. O que garanto quem era o
mesmo é um rapaz vesgo, hoje homem, com uma caixinha em madeira com ranhura
para a entrada da moeda e a tiracolo.
Recordo-me
doutro que sentado no chão, movimentava o corpo e dizia “só uma moedinha, só uma
moedinha” e pingava.
Mendigos
nunca faltaram em Lisboa, hoje mais do que outrora.
Aquela
mendiga despertou-me um sentimento especial, recordou-me a Catarina.
Vi-a
muitas vezes entrar na Igreja, mas raras vezes falávamos.
Ia
rezar.
Soube
que tinha o filho muito doente e morava, como eu, na outra banda.
No
barco onde frequentemente a encontrava já dialogámos.
A
Catarina estava diferente de quando a conheci, perdera aquela vivacidade de
menina alegre, bem-disposta, brincalhona.
Respeitei
o seu silêncio no que concerne ao tempo que a conheci, nunca lhe lembrando o
nosso passado de estudante.
O Colégio
Conheci
a Catarina no Colégio Diogo Lopes Sequeira, no Alandroal.
O
filho da Catarina morreu e ela não resistindo teve a mesma sorte.
Olhando
a escadaria fria e vazia da Igreja vi subir, não só a Catarina de Lisboa, mas
também a Catarina estudante, a Catarina de Montejuntos, a Catarina alegre e
divertida.
Era
uma mocita que irradiava simpatia pela sua maneira de falar e gesticular.
Bonita de rosto e de corpo. Neste todas as vestes, quer de Verão ou de Inverno,
lhe assentavam bem. Um corpo de pele fina e branca, impressionante e cobiçado
por qualquer rapaz.
Na
sua cara arredondada brilhavam dois olhos azuis, como o azul celeste de um dia
límpido e de Sol brilhante. Dois olhos que inspiravam confiança e amor. Um amor
despretensioso que ela soube cultivar nos seus colegas de Colégio.
A
Catarina, com a sua maneira de ser e de estar na vida, sabia moldar, de uma
forma natural, o rapaz mais endiabrado.
A
Catarina era um anjo em pessoa.
Porque
partiste tão cedo Catarina?
Porque
nos deixaste sem uma despedida, sem um simples Adeus?
Porque
não esperaste para agora recordares comigo, os amigos que encontrámos na baixa
de Lisboa. E foram muitos.
Legaste-nos
uma dor sem dimensão.
Quantas
noites em claro passámos, por essa tua opção silenciosa. Não merecias esse
destino, Catarina, nem nós essa herança.
Resignação
e esquecimento, talvez sejam as palavras aconselhadas a tão doloroso ato.
Mas
como te poderemos esquecer? Como poderemos apagar-te da nossa memória e
resignarmo-nos?
Impossível,
Catarina, é a palavra que se opõe aquelas duas.
Impossível
repito, porque tu foste a leader, a amiga, a pessoa guiadora do nosso grupo. A
única onde sempre encontrámos uma palavra de esperança e de amor.
A
nossa mágoa é eterna, Catarina.
Tenho
a certeza, que gostarias de recordar-nos, como nós te recordamos, como eu te
recordo no episódio que passo a descrever.
Num
intervalo de ginástica dada pelo saudoso e sempre lembrado Doutor Xavier, a Catarina
conta esta peripécia.
“Uma minha vizinha foi com a filha ao médico,
a Reguengos de Monsaraz e como o médico demorasse muito tempo a consultar a
rapariga, a mãe foi espreitar”.
Conta
ainda a Catarina, com a naturalidade que lhe era peculiar, o que a mãe da
rapariga disse depois da espreitadela.
“Não sei o que o médico está a fazer, mas
parece que a está a .....” e pronunciou a palavra por claro.
Era
assim a tua inocência, Catarina, a minha, e a de todos aqueles que se respeitam
e amam verdadeiramente.
Como
eu gostaria Catarina, que me acompanhasses nestas lembranças.
Os conhecidos
Ao
escrever estas linhas soltaram-se-me da memória outras recordações de pessoas
que por lá encontrei.
A
Maria Alice que trabalhava na conservatória de registo de automóveis, casara
com o José Martins de Montejuntos, tendo ficado viúva muito cedo. A Joana
Gorola, de Bencatel que ia almoçar á messe onde eu ia e não morando longe de
mim, ia buscar a filha ao colégio situado na minha rua.
Falávamos
muito.
Um
dia a Joana disse-me que o Bento, também de Bencatel estava ao guiché do
atendimento dos correios no Terreiro do Paço. Quando ia ao correio era atendido
pela tia da cantora Ana Bela, que conhecia da Cova da Piedade onde morei e onde
morava a Catarina, mas naquele dia dirigi-me ao guiché onde estava o Bento.
Enquanto durava o tempo do despacho indaguei o Bento.
“O senhor é Alentejano, sou. É de Bencatel, sou. Estudou no Colégio do Alandroal, estu.. porra,
tu conheces-me, diz lá quem és” Foi bonito.
Contatei
com o Manuel Tatá, muitas vezes e com um primo, ambos trabalhavam na Caixa
Geral de Depósitos. Com o sempre saudoso João Fitas contatei duas vezes, uma na
casa Senna e no elétrico.
Soube
que o Manuel Subtil estava também nos correios mas não tive oportunidade de
contatar com ele.
Por
falar nos correios recordei-me o Becas e do Zé Tadarra. Foram os
transportadores, primeiro dos telegramas a Terena e depois do correio.
O
Zé transportava o correio, primeiro em bicicleta de pedais, do Alandroal até
Cabeça de Carneiro, depois numa motorizada, marca Cuciolo, bonita e já com
válvulas.
Coitado
do Zé, a motorizada avariava quase todas as semanas. Nesta situação socorria-se
da motorizada do primo Zé Salgado, uma Alpino que fora comprada ao Milho, um
negociante do Redondo. A Alpino ainda existe, como uma relíquia de família.
Voltando a Lisboa.
Um
dia fui chamado á portaria do Ministério da Marinha, onde trabalhava.
“Salgado venha á porta. Tem aqui uma visita e
trás um cão.” Um cão? Interroguei-me.
Era
a segunda vez chamado á porta. A primeira fora o Tio Caetano que mostrou todos
os cartões que trazia incluindo o do Partido Comunista.
Mas
esta e com um cão, fora motivo de surpresa para todos os colegas.
Estava
o Zé Tadarra á minha espera. Convidou-me para ir almoçar com ele uma açorda,
com sardinhas ao palácio dos Ingleses, No caminho para a Lapa onde se situa o
palácio, comprámos as sardinhas e depois do almoço visitei o palácio com o Zé
Tadarra a fazer as vezes de cicerone. Era lá guarda.
O despoletar
Foi
Catarina o teu subir da escadaria marmórea da Igreja de São Roque, com a
velhinha pedinte, que despoletou em mim, este soltar memorial de recordações e,
como eu gostaria que estivesses aqui ao meu lado, para ouvir a tua voz, ver o
teu cativante e lindo sorriso, para ainda me confundires como um dia, na
procissão de nossa senhora da Boa Nova, o fizeste.
Lembraste
Catarina? E estavas tão bonita.
Estavas
vestida com um véu branco e transparente que te cobria desde a cabeça aos pés,
que deixava ver todo o teu harmonioso corpo, coberto com um levíssimo vestido
de um azul muito dissimulado, a deixar observar o vulto dos teus seios. a tua
silhueta e, a esconder a tua quase inexistente barriga.
Todos
estamos cientes que o teu desgosto foi muito forte e a ele não resististe.
Porque
não nos confidenciaste o teu desgosto, Catarina? Todos nós iriamos em teu
auxílio, podes crer.
Preferiste
partir sem nada nos dizer, foi a tua escolha que muito respeitamos e
compreendemos.
O
destino afastou-te de nós, dos teus amigos mas nunca, nunca apagará de mim a
tua recordação.
Sabes
Catarina, que te estou muito agradecido. Tu fizeste-me acreditar na vida além
da morte.
E
eu era descrente.
Tu
ainda vives na Baixa Lisboeta, tal como te conheci no Alandroal, no Colégio,
alegre, simples, bonita e sempre sorridente, fazedora de Amigos. E temos ainda tantos
Catarina, eles não morreram, eles não morrem enquanto eu tiver força e
discernimento para recordá-los como hoje te recordei.
Catarina,
estou convicto e ciente se Tu estivesses neste momento a meu lado, no momento
em que escrevo, as lágrimas que sulcam o meu rosto, as lágrimas da saudade de
quem muito bem te quis, escorriam também no teu.
A
título póstumo, o meu muito obrigado
á Catarina Figueiras.
São
estas vivências que os fazem recordar as amizades que soubemos cultivar através
dos anos e felizmente ainda são muitas.
BOM
ANO NOVO.
Helder
Salgado
14-11-2013
3 comentários:
Não tenho palavras para comentar tão comovente Texto !...
Tenho uma vaga lembrança do Helder, mas desta Moça, de seu nome Catarina, não tenho a mínima ideia.
Muito Obrigada por tão enternecedor desabafo !
Há pessoas que nunca esquecemos não é Helder?
Bonita homenagem
Se alguém tem dúvidas de que a amizade é eterna, basta ler este testemunho do Hélder.
Fiquei maravilhada com a leitura de um texto tão bem escrito, tão recheado de sentimento! Não cheguei a perceber, onde a prosa começou pois, em todo ele há poesia!
Obrigada Hélder, gostei muito!
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