sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

O HELDER RECORDA....

                             lembram-se da Catarina?

                                      O verso que agora escrevo
                                      Provêm da mendiga fina
                                      As palavras que descrevo
                                      São para Ti, Catarina

                                      A velha lá estava sentada no chão
                                      Ao pé da Igreja pedia um tostão
                                      Sua voz roufenha queria mais um
                                      Gente apressada não dava nenhum
  
                                       Gente que passava olhava de revens
                                       Na caixa das esmolas não havia vinténs

                                       Até que um dia passou a criança
                                       A velha sorriu tocou-lhe a lembrança
                                       Seu gesto suave, cheio de ternura
                                       Do tempo de menina, quando fora pura

                                       O que ela tinha estendeu ao pequenino
                                       Pedia ao adulto mas dava ao menino.

Recentemente desloquei-me a Lisboa, passei na baixa Lisboeta, frente á Igreja de São Roque, na baixa do Chiado, onde a mendiga pedia.
Foram vinte e quatro anos de Lisboa e cada vez que passava frente á Igreja lá estava a mendiga.
Bem, não sei se seria a mesma, o certo é que estava com trajos pretos e lenço da mesma cor na cabeça, como a outra ou outras que lá vi. O que garanto quem era o mesmo é um rapaz vesgo, hoje homem, com uma caixinha em madeira com ranhura para a entrada da moeda e a tiracolo.
Recordo-me doutro que sentado no chão, movimentava o corpo e dizia “ uma moedinha, só uma moedinha” e pingava.
Mendigos nunca faltaram em Lisboa, hoje mais do que outrora.
Aquela mendiga despertou-me um sentimento especial, recordou-me a Catarina.
Vi-a muitas vezes entrar na Igreja, mas raras vezes falávamos.
Ia rezar.
Soube que tinha o filho muito doente e morava, como eu, na outra banda.
No barco onde frequentemente a encontrava já dialogámos.
A Catarina estava diferente de quando a conheci, perdera aquela vivacidade de menina alegre, bem-disposta, brincalhona.
Respeitei o seu silêncio no que concerne ao tempo que a conheci, nunca lhe lembrando o nosso passado de estudante.

O Colégio
Conheci a Catarina no Colégio Diogo Lopes Sequeira, no Alandroal.
O filho da Catarina morreu e ela não resistindo teve a mesma sorte.
Olhando a escadaria fria e vazia da Igreja vi subir, não só a Catarina de Lisboa, mas também a Catarina estudante, a Catarina de Montejuntos, a Catarina alegre e divertida.
Era uma mocita que irradiava simpatia pela sua maneira de falar e gesticular. Bonita de rosto e de corpo. Neste todas as vestes, quer de Verão ou de Inverno, lhe assentavam bem. Um corpo de pele fina e branca, impressionante e cobiçado por qualquer rapaz.
Na sua cara arredondada brilhavam dois olhos azuis, como o azul celeste de um dia límpido e de Sol brilhante. Dois olhos que inspiravam confiança e amor. Um amor despretensioso que ela soube cultivar nos seus colegas de Colégio.
A Catarina, com a sua maneira de ser e de estar na vida, sabia moldar, de uma forma natural, o rapaz mais endiabrado.
A Catarina era um anjo em pessoa.
Porque partiste tão cedo Catarina?
Porque nos deixaste sem uma despedida, sem um simples Adeus? 
Porque não esperaste para agora recordares comigo, os amigos que encontrámos na baixa de Lisboa. E foram muitos.
Legaste-nos uma dor sem dimensão.
Quantas noites em claro passámos, por essa tua opção silenciosa. Não merecias esse destino, Catarina, nem nós essa herança.
Resignação e esquecimento, talvez sejam as palavras aconselhadas a tão doloroso ato.
Mas como te poderemos esquecer? Como poderemos apagar-te da nossa memória e resignarmo-nos?
Impossível, Catarina, é a palavra que se opõe aquelas duas.
Impossível repito, porque tu foste a leader, a amiga, a pessoa guiadora do nosso grupo. A única onde sempre encontrámos uma palavra de esperança e de amor.
A nossa mágoa é eterna, Catarina. 
Tenho a certeza, que gostarias de recordar-nos, como nós te recordamos, como eu te recordo no episódio que passo a descrever.
Num intervalo de ginástica dada pelo saudoso e sempre lembrado Doutor Xavier, a Catarina conta esta peripécia.
Uma minha vizinha foi com a filha ao médico, a Reguengos de Monsaraz e como o médico demorasse muito tempo a consultar a rapariga, a mãe foi espreitar”.
Conta ainda a Catarina, com a naturalidade que lhe era peculiar, o que a mãe da rapariga disse depois da espreitadela.
Não sei o que o médico está a fazer, mas parece que a está a .....” e pronunciou a palavra por claro.
Era assim a tua inocência, Catarina, a minha, e a de todos aqueles que se respeitam e amam verdadeiramente.
Como eu gostaria Catarina, que me acompanhasses nestas lembranças.

Os conhecidos
Ao escrever estas linhas soltaram-se-me da memória outras recordações de pessoas que por lá encontrei.
A Maria Alice que trabalhava na conservatória de registo de automóveis, casara com o José Martins de Montejuntos, tendo ficado viúva muito cedo. A Joana Gorola, de Bencatel que ia almoçar á messe onde eu ia e não morando longe de mim, ia buscar a filha ao colégio situado na minha rua.
Falávamos muito.
Um dia a Joana disse-me que o Bento, também de Bencatel estava ao guiché do atendimento dos correios no Terreiro do Paço. Quando ia ao correio era atendido pela tia da cantora Ana Bela, que conhecia da Cova da Piedade onde morei e onde morava a Catarina, mas naquele dia dirigi-me ao guiché onde estava o Bento. Enquanto durava o tempo do despacho indaguei o Bento.
O senhor é Alentejano, sou. É de Bencatel, sou. Estudou no Colégio do Alandroal, estu..   porra, tu conheces-me, diz lá quem és” Foi bonito.
Contatei com o Manuel Tatá, muitas vezes e com um primo, ambos trabalhavam na Caixa Geral de Depósitos. Com o sempre saudoso João Fitas contatei duas vezes, uma na casa Senna e no elétrico.
Soube que o Manuel Subtil estava também nos correios mas não tive oportunidade de contatar com ele.
Por falar nos correios recordei-me o Becas e do Zé Tadarra. Foram os transportadores, primeiro dos telegramas a Terena e depois do correio.
O Zé transportava o correio, primeiro em bicicleta de pedais, do Alandroal até Cabeça de Carneiro, depois numa motorizada, marca Cuciolo, bonita e já com válvulas.
Coitado do Zé, a motorizada avariava quase todas as semanas. Nesta situação socorria-se da motorizada do primo Zé Salgado, uma Alpino que fora comprada ao Milho, um negociante do Redondo. A Alpino ainda existe, como uma relíquia de família.

Voltando a Lisboa.
Um dia fui chamado á portaria do Ministério da Marinha, onde trabalhava.
Salgado venha á porta. Tem aqui uma visita e trás um cão.” Um cão? Interroguei-me.
Era a segunda vez chamado á porta. A primeira fora o Tio Caetano que mostrou todos os cartões que trazia incluindo o do Partido Comunista.
Mas esta e com um cão, fora motivo de surpresa para todos os colegas.
Estava o Zé Tadarra á minha espera. Convidou-me para ir almoçar com ele uma açorda, com sardinhas ao palácio dos Ingleses, No caminho para a Lapa onde se situa o palácio, comprámos as sardinhas e depois do almoço visitei o palácio com o Zé Tadarra a fazer as vezes de cicerone. Era lá guarda.

O despoletar
Foi Catarina o teu subir da escadaria marmórea da Igreja de São Roque, com a velhinha pedinte, que despoletou em mim, este soltar memorial de recordações e, como eu gostaria que estivesses aqui ao meu lado, para ouvir a tua voz, ver o teu cativante e lindo sorriso, para ainda me confundires como um dia, na procissão de nossa senhora da Boa Nova, o fizeste.
Lembraste Catarina? E estavas tão bonita.
Estavas vestida com um véu branco e transparente que te cobria desde a cabeça aos pés, que deixava ver todo o teu harmonioso corpo, coberto com um levíssimo vestido de um azul muito dissimulado, a deixar observar o vulto dos teus seios. a tua silhueta e, a esconder a tua quase inexistente barriga.
Todos estamos cientes que o teu desgosto foi muito forte e a ele não resististe.
Porque não nos confidenciaste o teu desgosto, Catarina? Todos nós iriamos em teu auxílio, podes crer.
Preferiste partir sem nada nos dizer, foi a tua escolha que muito respeitamos e compreendemos.
O destino afastou-te de nós, dos teus amigos mas nunca, nunca apagará de mim a tua recordação.
Sabes Catarina, que te estou muito agradecido. Tu fizeste-me acreditar na vida além da morte.
E eu era descrente.
Tu ainda vives na Baixa Lisboeta, tal como te conheci no Alandroal, no Colégio, alegre, simples, bonita e sempre sorridente, fazedora de Amigos. E temos ainda tantos Catarina, eles não morreram, eles não morrem enquanto eu tiver força e discernimento para recordá-los como hoje te recordei. 
Catarina, estou convicto e ciente se Tu estivesses neste momento a meu lado, no momento em que escrevo, as lágrimas que sulcam o meu rosto, as lágrimas da saudade de quem muito bem te quis, escorriam também no teu.

A título póstumo, o meu muito obrigado á Catarina Figueiras. 
São estas vivências que os fazem recordar as amizades que soubemos cultivar através dos anos e felizmente ainda são muitas.

BOM ANO NOVO.
Helder Salgado
14-11-2013  


3 comentários:

Anónimo disse...


Não tenho palavras para comentar tão comovente Texto !...

Tenho uma vaga lembrança do Helder, mas desta Moça, de seu nome Catarina, não tenho a mínima ideia.

Muito Obrigada por tão enternecedor desabafo !


Anónimo disse...

Há pessoas que nunca esquecemos não é Helder?
Bonita homenagem

Ausenda Ribeiro disse...

Se alguém tem dúvidas de que a amizade é eterna, basta ler este testemunho do Hélder.

Fiquei maravilhada com a leitura de um texto tão bem escrito, tão recheado de sentimento! Não cheguei a perceber, onde a prosa começou pois, em todo ele há poesia!

Obrigada Hélder, gostei muito!