quinta-feira, 21 de abril de 2011

COLABORAÇÃO - LUÍS FERNANDO GALHARDAS

 Um negócio de miúdos
(Mas o melhor do mundo são as crianças,: Fernando Pessoa, poema Liberdade)
Texto: Luis Galhardas, Ilustração: Paula Costa

O Tricas era o miúdo que eu mais admirava na escola.
Proibido de o acompanhar onde quer que fosse, foi, por ironia, meu companheiro de carteira.
Cara escanzelada, mas sempre sorridente, intrigava-me vê-lo andar descalço em dias gelados de Inverno, ou no chão abrasador do pino do Verão.
A sua fama de rufia e velhaquíce vinha de incursões frequentes a hortas e quintas onde, para completar a magra dieta caseira, sempre encontrava algo que trincar, fosse qual fosse a época do ano.
Eu próprio o entusiasmei, vezes sem conta, a fazer investidas ao laranjal de meu avô, que tinha as melhores laranjas do mundo.

Apesar de frequentemente lembrado que não me queriam saber em tão “má companhia”, raspava-me com ele sempre que conseguia iludir a vigilância familiar, para aventuras com que ainda hoje sonho.
Em dias quentes de Verão pisgávamo-nos para a ribeira do Alcaláte, onde sabíamos de um pego de águas transparentes, escondido entre silvas e juncais e protegido por escarpas rochosas, nossa praia privativa.
Aí, vestidos com a nossa inocência, tomávamos banho, apanhávamos rãs e comíamos amoras.
Invejava-lhe, sem maldade, a habilidade para descobrir ninhos, tirar grilos das tocas com uma palhinha, matar cobras e lacraus, e muitas outras artimanhas em que era mestre.
Certo dia desertámos das aulas, apesar de termos consciência plena de castigo certo no regresso. A curiosidade foi superior a tudo!
Voava um pequeno avião numa herdade próxima da vila, a fazer o tratamento químico.

Os dois nunca tínhamos visto uma aeronave. Combinámo-nos.
Na manhã seguinte, como de costume, encontrámo-nos na ladeira da escola.
Olhámos um para o outro, com ar decidido, e tomámos o caminho da Pipeira.
Em silêncio, mergulhados no roncar do motor, tivemos uma das melhores lições da nossa instrução primária: um homem que nunca soube quem era, surpreendido com a presença de dois catraios em bibe de escola, explicou-nos, tim-tim por tim-tim, o funcionamento do avião, numa elucidativa aula de aerodinâmica.
À tarde, de regresso à escola, irradiávamos felicidade. Apesar do que nos esperava.
Outro episódio rocambolesco viria cimentar definitivamente a nossa amizade nesses anos de escola.
Numa bela manhã de aulas da segunda classe, tinha acabado de me sentar ao lado do Tricas que me mostrou uma caixa de fósforos, com uma série de buraquinhos feitos numa das faces.
O que tens aí dentro Tricas, perguntei entusiasmado com a surpresa?
«São dois grilos que apanhei ontem à tarde, no terreiro de S. Bento», respondeu-me.
Sugeri-lhe: -abre um pouco a caixa para ver se é verdade.
Ele deslocou ligeiramente a tampa e logo apareceram umas compridas atenas negras e o que se adivinhava ser a cabeça de um grilo.
-Eh! pá, mas não cantam, argumentei.
Ao que ele, filosóficamente, retorquiu: «os grilos para cantar têm que abrir as asas, para depois, em movimentos muito rápidos, produzirem o som do gri gri..., dentro da caixa não podem abrir as asas, por isso não cantam».
-E como é que tu sabes isso, inquiri pasmado?
«Tenho observado como o fazem ao sol, na entrada das tocas, antes de os apanhar», esclareceu.
Eu, que há muito sonhava ter um grilo numa gaiola, logo engendrei uma troca.
Tinha em casa uma caderneta de cromos, cuidadosamente colados, versando sobre as “Maravilhas do Mundo”, mais entretenimento de minha mãe, e que ficara preenchida há dias.

A idéia surgiu-me como um relâmpago: -olha, troco a caderneta das “Maravilhas do Mundo”, que já está cheia, pelos grilos.
O Tricas arregalou os olhos, mais brilhantes que nunca, e não hesitou. Em casa não havia dinheiro para sapatos..., para comidinha sabia-se lá..., quanto mais para cadernetas e cromos!
Efectuou-se a troca no recreio do almoço, ficando as partes felizes com o negócio.
À noite, quando minha mãe teve a infeliz vontade de querer passar os olhos pela caderneta, tive de vomitar o sucedido, sob ameaça de castigo severo.
Mensagem imediata, no dia seguinte, para o senhor professor, veículada por minha avó, também professora na escola.
De nada valeu, diga-se em abono da verdade, ter esclarecido que a ideia tinha sido minha.
Após exemplar sessão de réguadas, sendo mais aviado o Tricas e mais poupado eu, por motivos óbvios, diante de toda a classe tivemos que desfazer a inocente transação.
Lágrimas a correr em fio e as mãos a arder, sentei-me na carteira, não conseguindo encarar o meu compincha.
Ouvi-o apenas dizer: «não chores…, os homens não choram!»
Nesse dia à saída, quando descíamos a ladeira da escola, sem trocar palavra, depositou na minha mão a caixa preciosa.
«Toma, são teus... disse... dou-te os grilos.»
-Mas eu não te posso dar a...

O Tricas não me deixou completar a frase: «eu não quero a caderneta, não é disso que eu gosto...
…um dia destes vamos à quinta do teu avô: -o que eu gosto, mesmo, é de comer uma daquelas grandes laranjas da baía!
Colaboração AC & companhia lda

8 comentários:

Anónimo disse...

Luis!!! Belissimo, fizeste-me lembrar o meu tempo de escola (com a tua AVÓ)e as pilantrices que fazia com o meu Amigo Ernesto, mais conhecido pelo "Piçolas" que morava na Sociedade Artistica, filho do MANEL PINÓIA.
Eu mais meus irmãos, saltavamos pelos quintais dos vizinhos e lá iamos ter...tá-se mesmo a ver como era depois a entrada em casa...mais uma sova!!!
Um grande abraço e continua,
MANUEL AUGUSTO

Anónimo disse...

O Jogo do Bilhar

O nosso pai comprava todas as semanas o Cavaleiro Andante (de Adolfo Simões Muller(?).
Naquele tempo era António Regatão arrendatário do Café Central que, como alguns de nós sabemos, TINHA UM BILHAR.
Objecto motivador de grandes tardadas de jogo do "Tacho" sob os eufóricos sons dos relatos radiofónicos dos jogos Benfica-Sporting e vice-versa (não havia Porto, naquele tempo).
Seu sobrinho João Regatão "devorava" os escritos do Cavaleiro Andante que eu lhe cedia, a troco de umas "tacadas".
Assim me iniciei no bilhar.
Mais tarde e o nosso pai também comprava, surge o Cine Romance. O cinema escrito, muito do nosso interesse (apesar de termos visto muitas dezenas de filmes projectados "por aquela máquina" do saudoso Domingos Maria Peças tanto na Soc. Artística como nos Casarões).
Agora o Cine Romance valia mais para João Regatão e, assim, por cada edição que lhe emprestava (?) correspondia á cedência de "mais algum tempo de bilhar".
Assim mais me interessei pelo "pano verde", até ter o previlégio de jogar algumas partidas com o "adversário" e ainda hoje "maior" José Galhardas.
Um dia, se para tanto me não faltar o engenho, comentarei algumas conversas que mantive em Évora com um seu colega do Nuno Álvares, acerca das bilharadas no Camões ou no Portugal, não sei precisar.
Sintetizando, apressadamente, salutares e culturais vivências faço-o em TOTAL ABONO ao comentário do Luis Fernando.
Assim era como ele relata.

Com abraços e desejos de BOA PÁSCOA, CONTINUA.

Abraços de BOA PÁSCOA para todos

Tói da Dadinha

Anónimo disse...

OBS.


Luis

Um forte abraço


Acabei de ler como se estivesse a ver e a sentir, a história que contaste.De facto, fiquei literaria e humanamente maravilhado.E até fiquei a rever e a pensar quem era, afinal, o Tricas? Tal é o poder efabulatório com que consegues narrar a vossa aventura.Onde está quase tudo o que as amizades mais puras podem viver e alcançar.

Direi ainda que a personagem maior desta narrativa(como,de resto, o assumes) em todas as circunstâncias e em todos os passos da vossa aventura e desventuras,me parece ser o Tricas.
Que grande criança,que grandes valores e que homem superior se terá feito o Tricas.

Razão tinhas para veres nele o teu idolo escolar e de infância,se bem que me pareça que, afortunadamente, nunca deixaste de estar à altura do Tricas.

É esta a minha mensagem.
Todos nós tivemos os nosssos idolos. Mas enquanto uns se vão escapando,outros somos nós que, devemos fazer Tudo, mas mesmo Tudo, para os merecermos e lembrarmos para toda a vida.

E,Luís, mais tarde do que cedo, foi o que fizeste.
Por isso também eu te pergunto:que é feito do Tricas? Sabes alguma coisa dele? Que pena tenho agora,onde andava eu? Apenas a jogar à bola?

Gostava tanto de ter ido aos grilos com vocês os dois e de ter visto o avião.Ou seria apenas uma pequena avioneta?...

Já agora,achas que ainda hoje és capaz de trocar dois grilos por um livro de maravilhas? É que, se o fores, muitos mas mesmo muitos dos teus amigos, hão-de querer continuar a fazer destas trocas desiguais contigo.
Diria, com a eterna ingenuidade e superior sabedoria com que, vocês os Dois, estiveram magicando e brincando com a ideia magnifica, de cedo, se fazerem Homens.

Por tudo, quanto aqui tens feito e andas (re)construindo no Al tejo, um fortissimo abraço para ti.
E, se a junção das duas palavras não me for mal interpretada,direi finalmente:
HAJA mais TRICA(S) como esta que connosco partilhaste.

Com as melhores saudações

António Neves Berbem

Anónimo disse...

Qqdwqdsaas ascaassc fdrewe:
really get us out clear. That's for you to marry me
As the conversation continued in stilted commas, Anthony wondered that

Camões disse...

O sentimento de partilha e situações muito semelhantes ao que foi narrado pelo contador de histórias,levam-me a comentar o texto com duas palavras apenas: simplesmente maravilhoso!

Um abraço para uma alma boa...

Kabé

Anónimo disse...

BELÍSSIMO CONTO!!!

Fiquei feliz por verificar que HÁ QUEM SAIBA E BEM CONJUGAR
O VERBO PARTILHAR!!!...

Obrigada Luis Fernando.

Uma admiradora da Sua ESCRITA.
(O seu irmão KABÉ sabe quem sou)

Helder Salgado disse...

Só hoje dia 24 e ás 23h00 é que me foi possível ler esta maravilhosa história do Dr Luís Fernando, associando-me assim á "equipa" deste excelente jornal que é o Al Tejo. Faço com este comentário uma restrospectiva do tempo que passei no Alandroal. Muito novinho passei algum tempo em casa da minha tia Elisa, de que já tenho pouca memória. Depois meio homem meio gaiato ia dormir ao Monte do meu avô Salgado, donde no outro dia partiamos para Vila Viçosa carregar os carros de farinha. Sucedia que a ida á farinha era todas as Segundas Feiras dia de cinema. Foi nessa altura que comecei a criar amigos que aumentaram com o tempo de colégio.
O Luís Fernando fez-me recordar um episódio similar a sua história. Um dia ia para o Colégio. Tinha aulas de tarde e fazia calor. Na descida das Caraças, ouço um barulho vindo da lado da tapada que foi do João da Lufa, e penso ser hoje da nossa antiga colega Rosa Triqueniques, que nunca mais vi. (sei que se chamava Rosa, Triqueniques deve ser alcunha)olhei e pareceu-me se uma cotovia. O pássaro amagou-se e apanhei-o sem dificuldade. Era um perdigoto. Levei-o para o colégio, (não ia faltar às aulas) e escondi-o na gaveta de uma secetária velha que estava no ginásio. Quando terminaram as aulas fui buscar o perdigoto. Não estava na gaveta, mas estava escondido detrás de um estrado, a um canto da sala. Apanhei-o e meti-o numa gaiola. Alimentei-o a trigo. Gostava de o ver crescer e de o observar. Segurava uma espiga de trigo com a pata e debicando debulhava e comia o trigo. Fui para Évora fazer os exames. Quando de lá vim a gaiola estava fazia. - O perdigoto fugiu, - disse-me a minha avó.
A avezinha agitava-se quando ouvia as perdizes a cantar e eu notava que a minha avó se conduia com aquele acto. Não acreditei que o perdigoto tivesse fugido. Certamente a minha avó restituí-lhe a liberdade. Não me incomodei e até fiquei, sem o demonstrar, agradecido. Estava no fim das aulas e não sabia o que fazer com o perdigoto.
Um abraço para a equipa.
Helder Salgado
23-04-2011

francisco tátá disse...

Resposta ao comentador das 10,07 horas:
Para seu bem, para que não o venham chamar de analfabeto e de compreensão lenta, de maldoso, e de outros nomes que aqui não devo colocar o SEU COMENTÁRIO NÃO SERÁ PUBLICADO.
Apenas tem razão numa coisa: "isto aqui é mesmo para Senhores e não para BRONCOS.
O Administrador