segunda-feira, 13 de julho de 2020

MEMÓRIAS - Xico Manuel

                                                   ESTE CALOR ABRASADOR!
Este calor abrasador, que só nós alentejanos sabemos suportar durante o dia, convidam-nos a um passeio depois do jantar, tomando as devidas precauções que esta malfadada pandemia nos obriga.
Vamos até ao Parque – diz a Fátima. Vamos lá – digo eu.
Mas, como o medo é grande e temendo algum encontro menos desejável o regresso é cedo e como a calor continua a apertar, é altura de ver na varanda, com uma brisa suave, um filme metido na ranhura do computador.
Outras há em que apenas apetece desfrutar da brisa e é nessas alturas que ocorrem os regressos ao passado.
                                                                           1953 – 8 anos:


Amanhã, vamos para a Barranca, chega “ a máquina” (debulhadora) do Crispim, e vai começar a “debulha”.

Custava um pouco, saber que ia deixar as brincas lá na Horta, com o Chico do Valadas, o Rato, o Garçoa, o Brito, os Fátimas, e até a “Dalinha”,se juntava por vezes ao grupo!  Custava deixar o “sorvete” do Martinho, a visita à loja do Valadas onde havia sempre uns rebuçados adiantadamente pagos pelo Padrinho Chico Garcias.
Mas a grade de “pirolitos” já à mostra, e a promessa de que a “flober” ia também, e que lá havia caça mais grossa, faziam com que fossem esquecidas estas regalias e sonhasse com os dias bons que se iriam seguir,

A viagem era feita antes do sol nascer. Na “charret” (três lugares), pois o “churrião” era só para ocasião festivas, não esquecendo o “trem” que se hoje fosse vivo poderia equivaler ao Rols Royce, ou talvez mais valioso.O condutor era o “Jaquetas”, rapaz de Terena, (a última vez que o vi era cobrador da Empresa Belos – e que agora está incorporada na R.N).

À Cruz Branca virava-se, pois passar por Terena, alem de ser um trauma (devido ao acto criminoso de incendiar as malhadas dos porcos quando da Festa da Boa Nova).
 Sempre ouvi falar disto à minha Madrinha Dona Antónia. Sei que foi um golpe duro, sei que a “gordura” dos porcos incendiados chegava à ribeira, sei que houve panfletos (versos em papel muito fininho a que os brasileiros chamam “de cordel”), além de ser difícil passar o Luci-Fecit, não só pela corrente, mas, também pelos pedregulhos que serviam de ponte.
E chegávamos, ao fim de 2 horas de viagem, (ou talvez mais) por fim ao Monte.
O primeiro a aparecer era o Ladislau, com residência fixa e que além de velar pelas instalações era o cozinheiro.

Os homens para a “debulha” já lá estavam. Alguns acompanhavam a “máquina” do Crispim, outros eram residentes (“criados” da casa), outros eram contratados na altura (se transportamos isto para os dias de hoje digamos que eram os contratados a prazo ou recibo verde).
Tudo me contentava, beber pirolitos, andar à solta com a flober aos pássaros, pescar à lapa (ensinamento do Manel Pirolito) nos pegos da Ribeira (até que uma cobra de água foi pescada e o mêdo superpôs-se ao prazer ), tomar banho nos pegos menos fundos e ainda por cima andar na burra quando queria. “Guiar” o carro das parelhas a cargo do Manecas, quando ia à “nora” buscar água.
Mas há “coisas” que permanecem para sempre :
O jantar, feito pelo Ladislau, normalmente o “gaspacho”. Para os criados servidos na cozinha: numa mesa muito grande com tampo de zinco e que além do azeite e alho, e, as sopas, pepino e  tomates eram suficientes. E o gaspacho servido ao patrão com tudo isto …mas mais o paio, umas vezes comido no próprio gaspacho outras servido á parte.
Porque seria que me sabia muito melhor o gaspacho comido na mesa de zinco, do que aquele preparado para o patrão?
E chegava a noite.
Caminha própria, mas com vista para a eira, onde depois do dia difícil os “criados” iam dormir.
Quantas vezes, e quantas “birras” e estratagemas inventados , para conseguir ir dormir para a “eira”.
E aí é que era bom:
“Camalhos” ao redor da “eira”. Mesmo depois de um dia difícil, a boa disposição não faltava.

E recordo:
O Desidério: tocava uma gaitada,
O Farinheira : deixem-me dormir.
O Kaidi : “Pregava um peido”
O pessoal ria-se.
O Manecas dizia: Olhem que está aí gaiato!
O meu pai dizia: Tenham juízo e vejam lá se dormem. Olhem que amanhã vão p´rá “moinha”
O Sopa: Pôrra ninguém tem sono, ninguém consegue dormir com este “chinfrim”.
O Manel Lopes: (depois de um período de “alcamia”), e para mim: Então “já tocas ao bicho ?’
E eu: já pois…ainda hoje vi o Ladislau a f…. uma cigana. (afinal, se calhar não era cigana nenhuma, mas sim mais uma desgraçada fugida da Guerra civil de Espanha)

Foi assim a meninice…..
Xico Manel
Julho 2020

P.S.- Ficava muito grato a que me desse notícias sobre as personagens (verdadeiras) aqui mencionadas, assim como a história da queima dos porcos na Barranca.

1 comentário:

Anónimo disse...



OBS.


Este estilo e modo de construir uma pequena narrativa com um forte assento

e sabor aos trabalhos agrícolas dos anos 50, directo e agradavel, leva-nos

contudo também para um outro campo: com as personagens aqui mencionadas

andou a faltar-nos no Alandroal, um Autor ou Autores, capazes de levar

a cabo, enredos com um maior folego neo-realista que tanto inspirou

escritores e romancistas desta epoca e deste Alentejo.

Só para dar um exemplo, imaginem, que Manuel da Fonseca ( o da "Seara

de Vento") tinha vindo aqui parar e escrevia sobre os Manecas que faziam

parte da gente.Ele ou outros...com M. Torga que se Lembrou de Juromenha.

Imaginem isso, e a seguir imaginem um filme com a musica dos bons musicos

que fomos e vamos tendo.

Este cenário, agora aqui lido e desenhado, teria sido ou não valioso

para a terra que somos. Ainda é ou será possível continuar a pensar

assim com novos Kaidis adaptando-os obviamente aos estilos literários

( problemas e situações sociais) actuais?


Saudações Democráticas


ANBerbem