A ideia maturava, há
muito tempo, no seu espírito! Um barco que anda à deriva, precisa de um leme
que o oriente e de remos que o impulsione para chegar a bom porto.
Um jovem, na flor da
idade, precisa de um clique que o desperte e oriente para a vida!
Os estudos não tinham corrido, completamente, de feição!
A maior parte dos amigos
já tinham ido para a vida militar, para as faculdades ou para a cintura
industrial de Lisboa; na sua mente levavam o desejo de criarem um novo rumo
para as suas vidas!
O rapaz, moreno,
escorreito de carnes, afável, garboso nos seus 19 anos, é um jovem de agradável
trato: espalha o bom humor, cultiva a amizade e um sorriso marca-lhe o
semblante!
Um certo dia, numa
tarde de Verão, num longínquo ano, sem nada estar programado, o tal rapaz entra
na tasca do Zé Canhoto, no Outeiro das Nozes, trauteando uma canção dos
Beatles; pede uma fresquinha (leia-se, cerveja) e dá, ao mesmo tempo, as boas
tardes às pessoas que convivem à volta de uma mesa.
Uma voz sonora ecoa na
sala e diz: “essa já está paga”! O rapaz olha, à sua direita e,
reconhecidamente, agradece! Logo, ali, é convidado a sentar-se e fazer parte da
mesa.
As conversas são banais,
próprias destes convívios; o queijo, o chouriço, o pão, o vinho e a cerveja
cumprem os seus deveres, animando o grupo; nada faz prever o que de importante,
para o tal rapaz, ali se vai passar!
Num determinado
momento, naquele sábado quente de Verão, o rapaz, com um olhar sorridente, pede,
àquela pessoa que o convidara, para lhe arranjar trabalho na Herdade da Pipeira!
Um silêncio sepulcral se fez naquela sala! Os olhares dos convivas cruzaram-se
de espanto! O rapaz não está bom da cabeça, ouve-se num suave murmurinho.
Esta reação teria razão
de ser? Bom, não sei… talvez!
É bom lembrar que o
trabalho existente na propriedade, naquela época do ano, não é nada fácil; a
tarefa é dura e consiste na recolha dos “molhos” de trigo, centeio e cevada que
as ceifeiras cortam e deixam no terreno!
Bem, à primeira vista,
o rapaz não sabe os trabalhos em que se vai meter! Aquele sol abrasador que, no
pico da sua ira, levanta ondas de calor do chão e do restolho, aquele pó seco e
quente, são obstáculos muito duros!
Muito duros, mesmo
muito duros para um iniciático naquelas andanças…
Os demais convivas, continuam incrédulos; param
as conversas; alguns engasgam-se, por admirados, com o que ouvem e… o Feitor, o
Ti Manel, com um olhar vazio … não responde logo mas, num modo afável, faz ver
ao rapaz que o trabalho é duro… que ele nunca trabalhou no campo… que, no
Verão, o trabalho existente é, ainda, mais duro… enfim, palavras de um amigo,
para outro amigo com o intuito de o demover!
O rapaz, ciente do seu
querer, constata que a resposta não se ajusta ao seu desejo e, com uma voz
decidida e magoada, argumenta com o facto do seu brio, das suas capacidades e
da sua vontade estarem a ser desvaloradas!
O Ti Manel, com ar
sorridente, olha para o jovem, levanta-se e, com um vigoroso aperto de mão, sela
o contrato e diz-lhe: “na segunda-feira, pelas 08:00, apresentas-te ao trabalho”!
O convívio continua e o
rapaz, ainda hoje, está convencido que nenhum dos convivas esperava que ele cumprisse
um só dia de trabalho, quanto mais o contrato!
Nessa primeira segunda-feira
e nas restantes até perfazer um mês, não falta um único dia ao trabalho!
Cumpre, pontualmente, o contrato!
É óbvio que os
primeiros dias são de uma dureza extrema e, as mãos macias e sedosas, tornam-se
ásperas e rugosas! O cabo do forcado (espécie de forquilha com 3 dentes) ensina
ao garboso jovem que a vida do trabalho, no campo, é muito difícil!
Sangue, suor e lágrimas
– é uma frase feita; mas são palavras que ele toma, como suas, para materializar
as feridas, o sofrimento e a dor que aquele cabo de madeira lhe causou!
O Ti Manel, o Feitor da
Herdade, passado um mês, terminado o
contrato, elogiou-lhe o desempenho; disse-lhe
que, no início, duvidou das suas capacidades mas enganou-se e, dando a mão à
palmatória, abraçou-o efusivamente!
O rapaz sente aquelas
palavras e aquele abraço; duas furtivas lágrimas correm pela face, não de
tristeza, mas de alegria! E, naquele abraço, segreda qualquer coisa no ouvido
do Ti Manel! E repete-lhe, por duas vezes, que não esquecesse o que lhe
segredara!
Os anos passaram, mas o
episódio esteve sempre presente na memória do rapaz; era preciso marcar um encontro,
com o Ti Manel, já reformado na sua aldeia, para lhe dar a conhecer o rumo que
a sua vida tomara. De facto o Ti Manel tinha quota-parte no novo rumo
alcançado! E guardava um segredo!...
Concretizado o encontro, numa amena
cavaqueira, no meio de uma cerveja retribuída, o Ti Manel, ávido por saber o
rumo da vida do rapaz, congratulou-se com o que ouviu e lembrou-se do segredo.
Então, o Ti Manel, num longo abraço, na hora
da despedida, diz-lhe que, apesar de tantos anos passados, não
mais se esquecera da frase que lhe segredara, ao ouvido, no último dia de trabalho - “ Senhor Manuel, instrumentos
de trabalho iguais a este, nunca mais …”!
Ficou o segredo
desvendado! Dois sorrisos rasgados selaram o encontro!
Um mês de trabalho duro
e cruel, deixam-lhe marcas, ensinamentos com tamanha importância que lhe
permitem valorar e ver, com outros olhos, o trabalho do campo!
Aquele episódio marcou-o!
Foi uma lição para a vida!
Eu, narrador deste
conto, descrevo-o, dou o testemunho da
sua veracidade e sinto orgulho da
história de vida do protagonista que, por lei da natureza, é o meu irmão gémeo
virtual!!
Ota (Alenquer), 03 de
Junho de 2020
Martinho Roma da Vila
1 comentário:
OBS.
1) Agrada-me imenso que esta ideia de uma Amadurecida e podada narrativa sobre aqueles tempos ( esse Grande Mestre) dos finais da decada de 60, tenha chegado ao Al tejo através do M. Roma. O que prova, mais uma vez, que o Alandroal tem vozes que souberam o que queriam experimentar e para onde podiam encaminhar as suas vidas. Acompanhados pela invenção literária.
2) Com a vénia devida, os trabalhos duros do campo e as experiência de vida, são calos e são tudo isto, pelo que também me ocorre aqui lembrar que Mark Twain, um dos grandes poços criativos destes nossos tempos, lembrava a este respeito que "toda a vida teve problemas, mas que a maioria deles afinal nunca existiram". Assim seja porque no nosso caso,Martinho, podemos estar com inegável idade mas ainda não estamos definitivamente envelhecidos.
3) O que vale por dizer que aquilo que conta, na realidade, são as experiências de vida que vivemos, o modo como as vivemos e a seguir as vamos revivendo. Ou, sobretudo, como ainda agora as sabemos partilhar e contar.
É, desta vez, o caso do narrador e jovem trabalhador agrícola do qual
podemos esperar ainda mais exercícios e novos contratos de escrita como
este. Ficaríamos todos a ganhar.A terra e a vila.
Recebe um Abraço
ANBerbem
Enviar um comentário