terça-feira, 5 de maio de 2020

DAS MEMÓRIAS DO HELDER

Estimados amigos e amigas.
Nestes dias de quarentena concelhia, e um pouco á semelhança das cronicas anteriores,  quero convida-los a sair de casa, a deixar o conforto, ou o já  saturante desconforto do sofá ou da cadeira de repouso, e, vamos dar um passeio pela ribeira do Lucifecit,
Para este passeio, será imaginariamente obrigatório recuarmos no tempo. Voltarmos a nossa adolescência/juventude aos nossos 14,15.16,17 anos, á idade da contestação.
Que ninguém se esqueça da máscara, das luvas, de guardar a distância estabelecida, para que o Concelho seja um modelo exemplar a resistir ao famigerado vírus.
A concentração é na estrada da Boa Nova junto ao monte do Borrão. Não é uma caminhada vulgar, mas sim uma recordação dos nossos usos e costumes já esquecidos e ultrapassados. Não hesitem acompanhem o Hélder e os seus amigos em:

                                     Recordações da ribeira do Lucifecit
Em todas as épocas o Homem se situou em locais, onde a água existia com relativa abundância. Vestígios de vários períodos históricos se encontram no Concelho, onde a água existe.
As margens da Ribeira do Lucefecit não são excepção.
Por vezes a incompreensão ou a pouca formação social, leva a quezílias mesquinhas ou adiamentos incompreensíveis, que retardam o objectivo comum.
Está-me a fugir a ideia para o tempo pós barragem. Não quero, sem o excluir, hoje falar disso.
Recuando no tempo, reporto-me a década de sessenta. Nesse tempo não tínhamos saneamento básico. Nessa área havia uma rede muito restrita de água, que o Presidente da Junta de Terena, senhor José Tátá possibilitou.
Os rapazes de Terena iam para a ribeira, normalmente aos sábados, de tarde.
Lá nos lavávamos, lá nos divertíamos, lá pescávamos.
Tínhamos dois pegos preferidos, o das Barreiras Vermelhas e o do Morais.
Para o pego das Barreiras Vermelhas, íamos por uma vereda que passava por detrás do cemitério. Nessa altura a herdade da Vila Velha estava coberta por um azinheiral quase cerrado. Apesar de ter mau piso, a terra era muito salgada (diz-se de uma terra que tem muita pedra), tornava-se um caminho mais fresco em relação ao do outro pego.
Para este, o do Morais, caminhávamos pela estrada da Boa Nova.
Repararam, eu disse Boa Nova e deveria ter dito santuário de Nossa Senhora da Boa Nova, não por falta de respeito, acreditem, mas levado pela mística, que gerações e gerações nos transmitiram. Tive um dia a oportunidade de falar nisto numa reunião política do concelho, ouve concordância total. Há pois nestas duas palavras, Boa Nova, algo de misterioso, que nos leva a tratar o Divino como um nosso familiar.
É um dos meus orgulhos alentejanos e creio que será também um dos vossos.
Mas eu quero chegar ao pego.
Sempre preferi este, o do Morais.
Perto dele existia um Poço, com uma picota/cegonha, utensílio para tirar água, herdada da civilização árabe. Consistia em dois paus um fixo e outro móvel, o fixo espetado na terra, era encimado pelo  móvel, que servia de pêndulo, com um pedregulho, numa das extremidades e na outra, um caldeiro no final de uma corda. O peso da pedra equipara o peso do caldeiro cheio de água, o que permitia, com um pequeno esforço, elevar o caldeiro cheio de água. E que boa era aquela água, leve e sempre fresca. Sempre bebia alguma, não muita, pois mal sabendo nadar, bebia mais água do pego.
Tínhamos bons pescadores. Os Chalrós e os Borrões.
O José Borrão, foi pescador no Guadiana, viveu da pesca, até ir para Almada.
Tive, um dia, a oportunidade de o ver pescar. Enchia o peito de ar, com a mão esquerda apertava o nariz e mergulhava a direito. Quando emergia trazia quase sempre três peixes, um na boca e um em cada mão.
Era chamado para encontrar afogados, consta-se que tirou quase trinta cadáveres.
Os manos, Inácio e o Zé Chalró ainda hoje pescam, mas mais no Lucefecit.
O pego era uma boa fonte dadora de petisco, rãs ou peixe e poucas vezes um cágado.
Apanhávamos, apanhavam os meus companheiros, os gémeos Mariano e o Zé Mira, o Estopa, o João Lobo, o Miguel da Horta, o António Almas, eu era um cagarola. Ao sentir o peixe na lapa, retraía-me, tentando logo de seguida, claro, o peixe fugia e raramente apanhava algum.
Um dia, num correntão, abaixo do porto e em pares do poço, encontrámos, dentro de água uma bota, com rasto de borracha de pneu. Apavorámo-nos julgando estar alguém morto. Recuperados, tirámos a bota da água e vendemo-la, por três escudos, ao mestre Manuel Sapateiro.
Foi um sábado excepcional, levámos peixe e arranjámos dinheiro para a pinga.
Neste e noutros episódios reside a minha gratidão à ribeira.
Factos como este, entre outros de maior ou menor importância, que venho usufruindo, creditam-me a esta Região, como um devedor social, e, em acções ou obras, em que sou interveniente, tento pagar a minha cota parte.
Em 15-02-2002, intervindo, na Assembleia Municipal, como seu membro, falei desta dívida. Advém esta, do uso que todos fazemos e, porque o fazemos nos tornamos responsáveis, pelo meio estrutural Concelhio ou Nacional, tais como as fontes, Ruas, Castelos, Igrejas, lavabos, jardins, tudo o que designamos de domínio público. Daqui emerge a minha vontade de colaborar e intervir.
É conhecido o meu empenho em causas públicas.
Por esta minha vontade e empenho, não foi bem escutado ou compreendido, enquanto autarca, por um certo e diminuto sector político.
Obtive, nesses quatro anos, uma experiência de manhas sórdidas, ausente de frontalidade e diálogo, acrescida de tentativas de exclusão e isolamento.
O que se passa neste meio começa a ser arrepiante e está longe, muito longe do discurso e da verdade democrática.
Uma afirmação aqui vos deixo, continuarei mesmo na rua e com a Rua.
Não sou poeta, nem quero
Fazer versos de ocasião
Pretendo, assim o espero
Servir esta Região.

Obrigado por me terem lido.
Hélder Salgado
Almada,15-12-2009.

Nota - os dois próximos relatos serão, também, passados no Lucifecit.

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