quinta-feira, 9 de abril de 2020

COISAS & LOISAS - Martinho Roma


       
                                 As lavadeiras do Alcalate
A descida é íngreme! A vereda esconde-se aqui e ali entre ardósias, ora sinuosa ora retilínea, estende-se ao longo da encosta e, sem nunca deixar de ser uma difícil caminhada, termina o seu percurso matando a sede no pequeno regato que, no vale, se espreguiça num ténue e envergonhado sussurro de água corrente – o “Alcalate”!
Para trás fica a vetusta Ermida de S. Bento a dominar toda a paisagem rural, onde proliferam o tojo, a piorneira, o alandro e a esteva, vegetação rasteira que deixa ver, no horizonte próximo, o alvo casario da Aldeia de Pardais e, no horizonte longínquo, a mancha branca da outrora portuguesa Vila de Olivença, perdida mas não esquecida das gentes lusitanas.
 Cumpre referir que a Ermida, virada ao sol poente, foi mandada construir pelo povo em 1580/1600, após um milagre intercedido por S. Bento, junto de Deus, livrando o povo do Alandroal da peste que assolava e dizimava Portugal. Este Santuário era, ao tempo, o de maior devoção na Vila do Alandroal, onde afluíam muitos romeiros das povoações vizinhas, celebrando-se na 3ª Feira, oito dias depois da Páscoa, com Feira Franca e Bênção de Gado.
 O caminhar da Margarida, mulher de 45 anos, é um passo lento mas vigoroso e, para dosear o peso da roupa na alcofa, muda-a ora da anca direita  para  a da  esquerda, ora para a cabeça, conforme o modo e o tempo da descida até ao ribeiro.
É a primeira a chegar ao regato que, reconhecido, lhe segreda, que tem o privilégio de escolher o melhor local para executar a lavagem da roupa. Mal ele lhe sussurrara esta evidência, um burburinho se ouviu, com a chegada de outras três amigas e vizinhas que, antes de iniciarem o trabalho, puseram em dia as conversas e desconversas.
A água límpida, qual espelho refletor de toda a natureza morta e viva que rodeia o pego, apela ao sentimento e ao desejo daquelas mulheres para iniciarem a lavagem e o branqueamento da roupa!
O regato alarga-se, por retenção da água corrente, naquele local, o que configura uma pequena barragem - um pego, apesar das águas serem pouco profundas. A parede de retenção das águas do pego é feita, toscamente, com pedras, barro e vegetação mas com a arte e o engenho próprios de obra de engenharia! Nas suas margens, estão colocadas as  grandes pedras, de mármore ou ardósia, próprias para a lavagem da roupa.
Há que iniciar a obra… A azáfama vai-se concretizando; o sabão azul, manuseado por mãos femininas mas robustas que esfregam e batem as roupas, cumpre a sua função e aquelas, já lavadas, vão-se acumulando na margem “relvada” para serem secadas e coradas ao sol.
Quem visita a Ermida de S. Bento, sobranceira ao ribeiro vê uma paisagem diferente porque está salpicada de tufos brancos – as roupas brancas a corarem e a secarem ao sol.
Este sol que, à nascença, se deixara embriagar pela fresca aragem do alvor da madrugada, vai subindo de tom, qual escala musical e começa a fazer sentir na terra, a sua bendita ira – o calor!
O relógio da torre altaneira não se avista do vale, mas as horas são lidas pela projeção das sombras na zona ribeirinha e, aquela sombra a incidir sobre o alandro ali existente, marca o meio-dia. Então a mais velha das lavadeiras, a Margarida, senhora de meia-idade, de tez morena, semblante alegre, olhos castanhos e cabelos escuros enrolados no alto da cabeça, mãe de 5 filhos, cumprida a missão que ali a levara, despede-se das amigas e, com o filho mais novo pela mão, decidida, rompe pela encosta de regresso à vila, ao “seu” Largo de S. Bento.
A subida é difícil e o almoço do marido precisa de ser aquecido. Não sei se é porque a roupa está mais leve, já lavada, ou se é o cuidado de almoçar com o marido, dão asas, à Margarida e ao petiz, para cumprirem o caminho com uma ligeireza pontual.
O ribeiro lá ficou serpenteando o seu fio de água por entre o vale que o delimita, espreguiçando-se, aqui e além, por ente rochas, arbustos e árvores, ora alargando-se num pego, para logo se afunilar e voltar a murmurar por entre pedras e pedrinhas na alegre caminhada até ao Guadiana.
Amanhã e todos os dias das primaveras futuras, o pego voltará a estar disponível e esta tradição repetir-se-á relevando o perfeito entrelaçamento  da natureza com o ser humano – o regato e a lavadeira.
Esta simbiose do regato/lavadeira e a utilidade que aquele tinha para as gentes do Alandroal, deram aso a que, na minha memória se perpetuasse esta tradição das lavadeiras do “Alcalate”.
Ota (Alenquer), 04 de Abril de 2020
Martinho Roma da Vila
Fotos: Net

3 comentários:

Anónimo disse...



OBS.


O Alcalate foi, agora é parecido com uma tradição.E se, a lavadeira era a Margarida do Lila, quais eram os nomes das outras três Amigas, companheiras da Lavagem semanal?
Acrescentaria que "Alcalates, com outros nomes", o Alandroal teve-os em seu
redor. E ainda os mantém na sua memória.

SD.

ANBerbem

francisco tátá disse...

Esta memória do Martinho merece ser lida por todos da minha geração.
Quem não recorda o Alcalate e as pessoas que lá se deslocavam para lavar e corar a roupa? Eu ainda por cima tenho umas recordações desse mesmo ribeiro, não só pelos peixes que lá apanhava na pesca à lapa, como pelas armadilhas aos pássaros,a ida às amoras nos grandes silvados, a imaginação que funcionava ao escalar os grandes rochedos e a pensar em cenários para os filmes de Cowboys que o Peças exibia...Muito do meu tempo era passado na horta da Formiga, ali logo ao inicio quando se desce, e onde o meu avô Teófilo angariava parte do sustento para a numerosa família. Era lá que a minha avó Jacinta ia lavar a roupa, enquanto o meu avô regava e o Chico( o burro) circulava à roda da nora a tirar água.
E já agora uma lembrança da fonte da Neca, a água preferida do meu sogro (o Ti Nuno). Muitos cantarinhos de água de lá carreguei.
Obrigado Martinha por este bocadinho!
Chico

Anónimo disse...


OBS.

Pois é, dei voltas à cabeça, para me lembrar que a Fonte do M. Nuno se

chamava "da Neca".Ora ainda bem que o Al tejo se lembrou disso. Isto porque

nessa "Fonte escondida", alandroalenses houve e vários, que iam para lá

beber e meter águas sedentas de devaneios juvenis vários. Embora hoje seja

fácil prever quais eram os dominantes naqueles finais dos anos 60.

S.D

ANBerbem