Numa altura em que nos
vemos mais uma vez ameaçados por uma epidemia, Tiago Salgueiro relembra a
coragem do Dr. Jardim.
VILA VIÇOSA, “A GRIPE ESPANHOLA” E O
HEROÍSMO DO DR. COUTO JARDIM.
Numa altura em que o COVID 19 (Coronavírus) se
propaga de forma incontrolável, adiando projetos e iniciativas na vida de cada
um de nós, causando um enorme impacto social, com consequências económicas graves,
partilho algumas informações sobre a popularmente designada “Gripe
Espanhola” e a sua chegada a Vila Viçosa em 1918, onde foi
registado o primeiro caso em Portugal.
Esta pandemia teve
diversas designações: influenza, senhora espanhola, gripe espanhola
ou pneumónica e espalhou-se por quase todo o globo, a uma
velocidade vertiginosa.
Os dados que aqui
apresento constam nos relatórios da Subdelegação de Saúde de Vila Viçosa,
produzidos pelo Dr. Couto Jardim, que teve um papel decisivo no apoio aos doentes.
Estes documentos constituem uma base de investigação muito interessante para
futuras pesquisas e encontram-se no Arquivo Histórico Municipal de Vila Viçosa.
A influenza de
1918 marcou data memoranda nos anais epidemiológicos do país e de todo o mundo,
coroando com a mais alta mortandade a série de pandemias gripais observadas no
século XIX e nesse decurso, sobrepujou entre nós em mortandade os flagelos
pestilenciais da peste, cólera, peste e febre-amarela.
A crónica
portuguesa deste formidável andaço, que teve um impacto brutal no mundo urbano
e rural, dizimou dezenas de vidas e lançou o pânico e o terror na população.
E o que aconteceu?
A vida em Vila
Viçosa seguia a sua rotina normal, subitamente alterada com a chegada da Gripe
Espanhola, que entre 1918 e 1919, ceifou a vida de centenas de calipolenses.
Surgida no decurso
da I Guerra Mundial, a pandemia chegou mais depressa a Vila Viçosa do que os
filhos da terra que tinham sido destacados para o conflito.
As difíceis
condições de vida da maioria da população fomentaram a propagação da doença.
Com sucessivos anos de más colheitas agrícolas e a entrada de Portugal na
guerra em 1916, os preços dos bens alimentares essenciais, como o pão, o
azeite, as hortaliças e o arroz, sofreram uma inflação acentuada, transformando
a fome num fenómeno endémico e afundando o país numa profunda crise. Não era
somente a guerra que matava…
A pneumónica
chegou sem aviso e apanhou um país desprevenido. Em Maio de 1918, o primeiro caso
surge precisamente em Vila Viçosa e foi-se deslocando de sul para norte. A
entrada da pneumónica em Portugal deu-se através dos
trabalhadores sazonais portugueses que iam diariamente de Vila Viçosa para os
campos agrícolas de Badajoz e Olivença, de modo a ganharem o pão, trazendo
consigo a doença para a localidade alentejana.
A “influenza
magna” foi devastadora e sacudiu Vila Viçosa em duas ocasiões:
Uma invasão epidémica primitiva, espanhola, em
Maio e Junho e outra secundária, pneumónica, que
lavrou de Agosto a Dezembro.
As autoridades
sanitárias foram apanhadas de surpresa e não souberam lidar com a situação
grave que surgia. A estirpe do vírus matava com uma rapidez nunca antes vista.
Há hoje várias
teorias sobre o local onde começou a doença: na base militar de Etables, na
costa norte de França; trazida por soldados indochineses (Vietname, Laos e
Camboja) que lutaram em França entre 1916 e 1918; ou num acampamento militar no
Kansas (Estados Unidos da América) entre militares que depois viajaram para a
Europa.
Mas as dúvidas são
demasiadas e nunca se chegou a uma conclusão.
Relativamente a
Portugal, os dados consultados confirmam que a chegada da “Senhora
Espanhola” a Vila Viçosa foi dramática…
A população
calipolense foi muito atingida, não chegando a haver caixões suficientes para
os óbitos que iam ocorrendo. A morte chegava em poucas horas, depois de
detetados os primeiros sintomas.
As maçãs do rosto
dos pacientes ficavam com manchas vermelhas ou acastanhadas e com o avançar das
horas, a pele começava a ficar azulada ou negra, não sendo muitas vezes
possível identificar a cor original do doente. A maioria morria sufocada,
caindo como tordos, afogados nos seus próprios fluídos. Não bastava o drama de
muitos dos filhos da terra terem partido para combater nas terras de França.
Somava-se agora este terrível flagelo da pneumónica.
Naquele tempo, os
parcos hábitos de higiene e a circulação das pessoas por todo o território
ajudaram à disseminação da pandemia, que foi alastrando a uma velocidade
vertiginosa. Portugal era país maioritariamente rural, com sucessivas epidemias
e as consequentes crises sanitárias, a viver uma crise política e com a
Primeira Guerra Mundial como pano de fundo. Houve aldeias que literalmente
desapareceram, assim como famílias que se extinguiram. Felizmente esse não foi
o caso de Vila Viçosa…
O Presidente
Sidónio Pais, que tinha alcançado o poder graças a um golpe militar, bem se
esforçou para acudir a população, mas os efeitos da doença foram nefastos, ao
ceifarem milhares de vidas de jovens. Os cerca de seis milhões de portugueses,
vivendo num país marcadamente rural, sofreram bastante com a pandemia.
O próprio contexto
da Guerra Mundial era outro dos fatores que contribuía para a disseminação do
vírus . Havia tropas que se movimentavam, que estavam juntas em aquartelamentos
militares, havia uma superlotação dos hospitais de campanha e de retaguarda,
baixas da própria guerra, com a guerra química, população malnutrida e o
próprio regresso a casa trazia consigo o mal.
A situação foi-se
tornando dramática ao longo de meses…
O concelho de Vila
Viçosa não foi exceção. Até porque foi o primeiro em solo nacional a ser
atingido.
Surgiram grandes
despesas do Hospital da Vila (Hospital do Espírito Santo ou da Misericórdia) no
tratamento dos doentes, sobretudo provenientes das classes proletárias, onde as
condições de higiene eram insuficientes e nada beneficiadas pelas casas
insalubres e pouco arejadas, que albergavam grande parte da população
calipolense. Com a doença, as pessoas eram aconselhadas a lavar as vias
respiratórias com água salgada, a ventilar as habitações e a não descurar os
hábitos de higiene, o que nem sempre era respeitado.
Por esse motivo, a
epidemia gripal grassava com toda a intensidade, devastando lares inteiros. Num
determinado momento, a situação foi incontrolável, devido à falta de médicos e
de remédios eficazes.
Uma figura
destacou-se no auxílio aos enfermos, designados como “epidemiados” num tempo
“horroroso” da morte que pairava de modo sinistro sobre vilas e aldeias do
país.
O seu nome
era João Augusto do Couto Jardim. Notável e benemérito calipolense, foi um
homem de invulgar sensibilidade e altruísmo.
Nascido em Vila
Viçosa no dia 16 de Agosto de 1879, numa casa da Rua de Santo António, era
filho do médico João Gomes Jardim e de Maria Olímpia do Couto Jardim. A família
era proveniente da ilha da Madeira. Passou toda a infância e adolescência em
Vila Viçosa. Em 1903, concluiu o curso de Medicina na Universidade de Coimbra e
de imediato regressou à sua terra natal para exercer a profissão de médico.
Durante a febre
pneumónica, graças ao seu espírito altruísta, sempre se preocupou com as
enfermidades dos seus pacientes, fazendo visitas ao domicílio, sem nada cobrar
por isso. Era clínico delicado e bondoso, que tinha como primeiro dever seu
animar os doentes e dar-lhes, antes de qualquer remédio, o conforto moral de
uma palavra amiga. Na sua incansável ação clínica nestes tempos difíceis,
recomendava também aos doentes o banho frequente, para uma melhor higiene e
controlo da febre. A fumigação de eucalipto da Serra d’Ossa era outra das
receitas para a desinfeção de casas e quartos.
As situações de
miséria com que, por vezes, deparava, provocavam nele um sentimento de piedosa
caridade, fazendo com que, para além de dar o seu melhor a título
gratuito, partia depois de deixar todo o dinheiro que levava consigo…
A extrema e
estrutural pobreza da população fazia com que a maioria tivesse uma alimentação
má e escassa desde o seu nascimento. Não havia carne, peixe, manteiga, açúcar
ou arroz. As hortaliças escasseavam e a falta de alimentos só contribuía para o
rápido alastrar da doença.
E a gripe
espanhola ia avançando, de forma quase explosiva, ceifando
as vidas de muitos calipolenses, sem dó nem piedade. E o médico assumiu-se, no
meio do caos, como um grande estudioso desta nova doença, compilando dados e
observando a evolução do estado de saúde dos epidemiados,
Segundo as
investigações e os registos do Dr. Couto Jardim, o mal da pneumónica conservou-se
em casos esporádicos, de modo que se pode estabelecer a continuidade da
primeira com a segunda onda, sendo por isso possível que se tratasse de uma
reincidência local aumentada com alguns casos que vieram de outros contextos,
trazida pelos soldados de cavalaria que se encontravam na Escola Prática de
Cavalaria, instalada no Mosteiro dos Agostinhos.
Os primeiros casos
registados são os da vila e logo a seguir, Bencatel; daqui a doença irradiou
para o resto do concelho. Em Vila Viçosa, a condução epidémica foi afetada de
facto pelas feiras de Sousel e do Redondo (concelhos vizinhos), de onde vieram
e para onde partiram muitos infetados.
A invasão foi
muito rápida, abarcando 40% da população ou ainda mais. Poupou mais as crianças
e os velhos (estes, sobretudo) e perseguiu muito mais as classes pobres. Houve
muitas casas onde a infeção não poupou ninguém… Houve casos de reincidência,
mas também houve engripados da primeira invasão que escaparam à segunda. Não se
notou em regra que os atacados pela espanhola escapassem
à pneumónica, sobretudo os afetados pela forma abdominal
durante a primeira invasão.
Em todo o concelho
calipolense assinalaram-se entre 3500 a 4000 casos de influenza de
todas as formas, com um obituário de 151 indivíduos em Setembro, 150 em Outubro
e 15 em Novembro.
Estes
números porém não foram rigorosamente precisados pelo Dr. Couto Jardim, dadas
as dificuldades inerentes as todo o processo de registo. O Hospital da
Misericórdia foi o local onde se efetuaram os registos e onde acudiam os mais
necessitados de cuidados médicos.
As freguesias onde
a doença maior mortalidade foram as rurais de São Romão e Bencatel, com 120 e
40 óbitos, aproximadamente, pois como referiu o Dr. Jardim, muitos casos que
figuravam no registo civil sem assistência médica, tiveram-na na realidade,
segundo as indagações a que o próprio procedeu e que pode verificar.
Estabeleceu-se
então na Vila uma comissão central de assistência a epidemiados e famílias e em
cada uma das freguesias uma subcomissão, as quais receberam da comissão de
assistência distrital donativos do governo e produtos das subscrições públicas,
assim como donativos de particulares em dinheiro e géneros.
Assim, foram
socorridos de alimentação e medicamentos os doentes pobres que foram tratados
nas suas casas, recebendo o Hospital da Misericórdia os que se hospitalizaram
da classe civil, tendo sido tratados os militares numa pequena parte deste
hospital e a grande maioria na enfermaria do regimento e outra que se instalou
no Castelo de Vila Viçosa.
Fizeram-se
desinfeções nas casas dos epidemiados e tratou-se com mais cuidado a habitual
limpeza e saneamento das povoações. Os doentes foram isolados nas enfermarias,
tanto quanto possível separados os pneumónicos dos casos simples e de outros
casos septicémicos e híper-tópicos.
O serviço médico
foi a princípio somente prestado pela subdelegação de saúde, a cargo do Dr.
Couto Jardim. O serviço farmacêutico foi desempenhado pelas farmácias da
localidade (Torrinha, Monte e Misericórdia) e embora muito assoberbadas pelo
trabalho, satisfizeram inteiramente a sua missão, não tendo havido falta de
medicamentos, como em muitas outras regiões do país.
Na freguesia
de São Romão, que foi a de maior mortalidade, instalou-se devido à grande
distância que a separa da sede de concelho, um pequeno posto farmacêutico e uma
cozinha económica, de que tomou a iniciativa e o encargo um proprietário local,
António Augusto de Matos Costa, com o curso de farmácia e que excelentes
serviços prestou, quer como boticário, quer como enfermeiro.
A extrema pobreza
e a falta total de recursos desta freguesia, a grande distância e os péssimos
caminhos que a ligavam aos centros mais importantes foram a principal causa de
tão grande morbilidade e mortalidade (a maior de todas do concelho),
valendo-lhe muito os belos serviços prestados por este benemérito local. As
duas associações de socorros mútuos estabelecidas na vila prestaram também
ótimos serviços, não faltaram nunca aos seus associados quer com assistência
médica, quer com subsídios pecuniários e de farmácia.
Couto Jardim foi
um “cruzado “na luta contra este “infiel”, tendo perdido muitas das suas
batalhas, mas sempre com uma grande determinação em ajudar os doentes que
padeceram deste mal que assolou Vila Viçosa, pela primeira vez em território
nacional.
FONTES MANUSCRITAS
AHMVV
– Documentação da Subdelegação de Saúde de Vila Viçosa
AHMVV
– Questionário sobre a Influenza da Gripe em 1918
Tiago Salgueiro
1 comentário:
Eu não sei o que vai na cabeça dos iluminados que mandam.
Antigamente quando havia muitos piolhos assim que se dava conta do aparecimento as pessoas eram isoladas em casa e catadas, e não se perdia tempo a tomar medidas, pois é mais fácil conter qualquer praga no início.
Se esta gente fosse minimamente inteligente aprendia com o que aconteceu em Itália, deixaram andar e só quando estava tudo descontrolado é que tomaram medidas radicais a nível nacional.
Posso estar a dizer um grande disparate, mas a meu ver devia o governo encerrar tudo durante 2 a 3 semanas, tudo em quarentena com a obrigação de ficar tudo em casa, e quase decerto que se controlava para já a infecção em Portugal, Espero que não nos aconteça o mesmo que em Itália, que a medida só aconteça quando for arde demais e o serviço de saúde esteja incontrolável sem médicos e camas para toda a gente.
Continuamos a ter políticos com pouca coragem.
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