Viva o 10 de Junho e a Restauração!
Viva até S. Bento, se nos arranjar
Muitos feriados para festejar!
A letra da conhecida marcha serve apenas para aperitivo para
memórias literárias de mais difícil digestão.
No dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, os canais
televisivos bombardearam-nos com discursos, comentários e debates acerca do que
é ser português e da idéia que cada um tem do País. A conversa arrastou-se ao
longo da semana. As opiniões oscilam entre a convicção de sermos os melhores do
mundo ou o parecer perigosamente generalizado de não passarmos de um país de
amnésicos e de corruptos. Tentou-se ainda passar a idéia de um país fragmentado
entre “os bons” e o “os maus”, “os novos” e “os velhos”, “nós” e “eles”, a de
um povo sem causas, sem desígnios. Há sempre várias maneiras de ver o copo:
meio cheio ou meio vazio.
Perante cenários tão catastrofistas, chegámos a desconfiar
que apanhamos o combói erado ou que tivemos o azar de viver neste tempo. Será
que só agora todos os males se abatem sobre a sociedade ou será que se trata de
um filme que se repete?
Para desdramatizarmos a situação, procurando algum efeito
catárquico, socorremo-nos da memória dos livros que lemos, das reflexões de
alguns dos nossos maiores escritores, para percebermos o modo como eles viram
Portugal em diferentes épocas.
Sem fazermos comentários que possam adulterar os textos
selecionados, optámos por submete-los ao juízo dos estimados leitores. Para
começar pegamos num poema de Camões. Não do Camões épico, tão celebrado no 10
de Junho, mas de um Camões amargurado, bastante crítico da sociedade do seu
tempo, um poeta que nos fala do desconcerto do mundo:
Os bons vi sempre
passar
No mundo graves
tormentos;
e, para mais me
espantar,
os maus vi sempre
nadar
em mar de
contentamentos.
Cuidando alcançar
assim
O bem tão mal
ordenado,
Fui mau, mas fui
castigado!
Assi que, só para mim
Anda o mundo
concertado.
Do século XVI, passámos ao século XVII. Há perto de 350
anos, o Padre António Vieira, pregava assim na antiga Igreja da Misericórdia de
Lisboa:
O que só digo e sei,
por ser teologia certa, é que em qualquer parte do mundo se pode verificar o
que Isaías diz dos príncipes de Jerusalém: Príncipes tui socii fórum: “Os teus
príncipes são companheiros de ladrões”. E porquê? São companheiros de ladrões,
porque os dissimulam; são companheiros de ladrões porque talvez os defendem; e
são finalmente seus companheiros porque os acompanham e hão-de acompanhar ao
Inferno, onde os mesmos ladrões os levam consigo (…) E tudo é porque há
príncipes que correm com os ladrões e concorrem com eles, porque os admitem à
sua familiaridade e graças: e concorrem com eles, porque dando-lhes autoridade
e jurisdição, concorrem para o que eles furtam (…)
Avançámos dois séculos e tiramos da estante um volume das
Farpas de Eça de Queirós e Ramalho Ortigão. Escolhemos uma das Farpas da
autoria de Eça, outro grande mestre da nossa língua e um dos homens que melhor
pensou Portugal!.
Há muitos anos a
política e Portugal apresenta este singular estado.
Doze ou quinze homens
sempre os mesmos, alternadamente, possuem o poder, reconquistam o poder, trocam
o poder… o poder não sai de uns certos grupos como uma péla que quatro crianças,
nos quatro cantos de uma sala, atiram umas às outras, pelo ar, numa explosão de
risadas.
Quando quatro ou cinco
daqueles homens estão no poder, esses homens são, segundo a sua própria opinião
e os dizeres de todos os outros que lá não estão – os corruptos, os
esbanjadores da fazenda, a ruína do país, e outras injurias pequenas, mais
particularmente dirigidas aos seus caracteres e às suas famílias.
Os outros, os que não
estão no poder são, segundo a sua própria opinião e os seus jornais – os
verdadeiros liberais, os salvadores da causa pública, os amigos do povo, os
interesses do país e da pátria.
Mas, coisa notável! Os
cinco que estão no poder fazem tudo o que podem – intrigam, trabalham para
continuar a ser os esbanjadores da fazenda e a ruína do país, durante o maior
tempo possível! E os que não estão no poder movem-se, conspiram, cansam-se para
deixar de ser – o mais depressa que puderem – os verdadeiros liberais e os
interesses do país.
Até que enfim caiem os
cinco do poder e os outros – os verdadeiros liberais – entram finamente na
designação herdada de esbanjadores da fazenda e ruina do país, e os que caíram
do poder resignam-se cheios de fel e de amargura – a vir ser os verdadeiros liberais
e os interesses do país (…)
E todavia serão estes
doze ou quinze indivíduos os que continuarão dirigindo a país neste caminho em
que ele vai, feliz, coberto de luz, abundante, rico, forte, coroado de rosas,
num choito triunfante
Pois é, estimado leitor, as palavras valem o que valem,
mesmo quando saiem da pena dos maiores escritores, mas a Literatura e a
História podem ajudar-nos a entender melhor a condição humana, e o mundo em que
vivemos.
Até um dia destes.
Vitor Guita
In “O Montemorense” –
junho 2019
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