Passou pouco mais de um mês sobre a
tragédia de Borba. O tema continua a ser discutido nos meandros políticos, como
“arma de arremesso”. De quem é a responsabilidade? O tempo costuma ser bom
conselheiro e esperamos todos que a culpa não “morra solteira”.
No entanto, esta estrada tem uma
forte componente histórica, que importa realçar. Já durante o período de
ocupação romana seria provável a ligação por este caminho à via comercial Olisipo-Salacia-Emerita. Sabemos hoje que uma percentagem
considerável de mármore utilizado nas construções romanas de Mérida era
proveniente do Anticlinal de Estremoz.
Vamos a alguns factos:
Ao longo de séculos, foi o percurso
privilegiado de ligação entre Vila Viçosa e a capital do Reino, assim como um
eixo comercial na conexão com Elvas e Espanha.
Com a carta de foral de 1270 pelo
Rei D. Afonso III, é evidenciada a importância económica de Vila Viçosa, devido
ao subsolo rico e a presença de vias de comunicação, nomeadamente a estrada de
Borba. Numa análise a este documento, concedido a 5 de Junho, efetuada pelo
padre Joaquim Espanca nos capítulos XVII a XXI das “Memórias
de Vila Viçosa”, é
possível avaliar a importância deste percurso.
A referência aos marcos existentes
na via para delimitar o antigo termo de Vila Viçosa, provavelmente colocados
pelos sesmeiros do Rei D. Afonso III, revela a existência destes sinais na
estrada que fazia a ligação a Borba:
“Na estrada real de
Borba à nossa Vila estava um marco grande, substituído agora por outro pequeno
desde que se reformaram os muros da courela de vinha em que se via. Desse
grande marco dizia uma anedota dos Calipolenses que os vizinhos de Borba, na
ocasião de se organizar o seu concelho, tiveram faculdade para estenderem o seu
termo para sueste, isto é para Vila Viçosa, quando um homem pudesse levar às
costas aquele marco; e que convidando um negro de forças hercúleas para o levar
quanto mais longe pudesse, ele o atirou quase à porta da nossa vila, chamada
Porta do Nó”[1].
O cronista calipolense refere no
entanto que se trata de “uma anedota”, já que o termo de Vila Viçosa já
passava por aquele local antes de se organizar o concelho de Borba e o que o
dito marco era relativamente moderno (em relação ao século XIX), já que fora
ali colocado no ano de 1648, segundo se pode comprovar pelas Vereações do
Município de Vila Viçosa.
Este facto não invalida que tivessem
existido marcos prévios na “Estrada Real”, como delimitação dos dois
concelhos vizinhos.
Também relevante na primeira carta
de foral é a instituição da portagem, tributo aduaneiro de entrada e saída
pelas portas de Vila Viçosa, pago somente pelos estranhos e nunca pelos
vizinhos do concelho[2].
As referências históricas à “Estrada
Real” são uma
evidência no início do século XVI, aquando da construção do Paço Ducal de Vila
Viçosa. Tratava-se da ligação da sede da Casa de Bragança aos restantes
territórios sob sua jurisdição. Este era o acesso privilegiado ao solar
brigantino. Ainda hoje, quem utiliza a Rua de D. Jaime, que não é mais que o
prolongamento da estrada de Borba, fica impressionado com a visão do Terreiro.
Em 1537, é provavelmente por aqui
que passa o rei D. João III, para casar o seu filho D. Duarte com D. Isabel de
Bragança, filha do quarto Duque D. Jaime, numa cerimónia organizada com pompa e
circunstância por D. Teodósio I.
Em 1584, uma Embaixada de nobres
japoneses, vindos de Nagasáqui e acompanhados pelos Jesuítas Sebastião de
Morais e Luís Álvares, passa por Vila Viçosa com direção a Roma. Chegados a
Évora, onde foram recebidos pelo Arcebispo da cidade, D. Teotónio de Bragança,
são encaminhados para o solar brigantino.
Ao entrarem pelo Terreiro do Paço,
vindos precisamente por este caminho, são confrontados com o edifício, cuja
fachada estava recoberta de “mui fino e lustroso
mármore”, sendo a
mesma frontaria iluminada por 55 janelas, das quais 23 estavam protegidas por
grades de ferro[3].
Depois de dias de fausto no Paço,
partem para Madrid, ao encontro de Filipe II, pelos “campos
vinhateiros de Borba”, na
direção de Elvas, entrando depois em território espanhol, por Badajoz.
Em 1603, realiza-se a união de D.
Teodósio II, sétimo Duque de Bragança, com a filha do Condestável de Castela e
Leão, Duque de Frias e Conde de Haro, D. Ana de Velasco y Girón, mãe do futuro
D. João IV, primeiro rei da dinastia brigantina.
Quando o cortejo entrou em Vila
Viçosa, vindo de Espanha, foi recebido e aplaudido não apenas pelos
Calipolenses, mas por muita outra gente que acorreu de diversos lugares para
assistir à festa. Enquanto os noivos eram saudados por uma salva de tiros
disparados do Castelo, o Terreiro do Paço enchia-se de danças[4].
Foi da “Janela
de Lisboa”, virada
para a estrada de Borba, que provavelmente D. Luísa de Gusmão se despediu de D.
João, o oitavo dos Braganças, aclamado Rei de Portugal no dia 1 de Dezembro de
1640. Também aqui diz a tradição que esperou pelas notícias do correio expresso
de Lisboa com as novas da Revolução. Por este caminho, partirão mais tarde 300
carruagens com todo o conteúdo artístico do Paço Ducal, para o Paço da Ribeira.
Em 1648, na obra “O
Valeroso Lucideno”, publicada
pelo frade paulista calipolense Frei Manuel Calado, é feita a seguinte
descrição:
“e no fim deste jardim
estão três janelas, duas ordinárias e uma rasgada com o seu balcão, por as
quais entra a luz a uma casa de prazer, aonde Sua Alteza a Senhora D. Catarina[5] se
vinha sentar com as suas damas algumas tardes de verão, para se entreter com
ver passar muita gente que ordinariamente entra naquela rua, quando vem de
Borba, Estremoz e outras vilas circunvizinhas, e a muita também que sai da vila
a tomar refresco nas igrejas de São Bento e São Jerónimo”.
No dia 9 de Junho de 1665, a
vanguarda do exército do Marquês de Caracena chega à Porta da Vila (Porta dos
Nós), pelo caminho de Borba, onde se dá o primeiro tiroteio com os arcabuzeiros
das forças portuguesas da guarnição do Castelo, que ali tinham ido esperar o
inimigo. Principiou assim o assédio que durou até dia 17, dia da Batalha de
Montes Claros.
Em 1683, António de Oliveira
Cadornega descreveu assim este episódio:
“Estando dominando em
um alto o caminho e estrada que entra naquela Vila pela Porta tão nomeada do
Nó, por sua sinificação, que queria dizer “despois de vós, nós”, onde o forte
da envocação deste glorioso e antiguíssimo Patriarca São bento experimentou o
exército castelhano e seu general Caracena prencipio de sua ruína, vindo buscar
aquela entrada e sítio como quem vinha de Borba, não se lhe dando de a arriscar
e perder gente, e se lhe morteficou tão valeroso orgulho com mortes de muitos
dos seus soldados, investindo à queima-roupa aquelas trincheiras da entrada da
Porta do Nó”[6].
Mais tarde, no dia 19 de Junho de
1808 e na sequência do saque verificado nas igrejas de Vila Viçosa e de
maltratos infligidos a um menino junto da “Estacada” pelos soldados franceses,
o povo calipolense insurgiu-se e atacou a guarnição de Napoleão que se
encontrava no Castelo. O Franceses tinham levado, só do Convento dos
Agostinhos, 28 arrobas e 10 arratéis de prata.
Na sequência desta revolta e por ter
tido conhecimento dos factos através de um soldado francês que conseguiu fugir,
o General D’Avril, comandante das tropas francesas que se encontravam em
Estremoz, marcha sobre Vila Viçosa, pelo caminho de Borba, para esmagar a
rebelião, com 350 homens de infantaria, 100 cavalos e duas peças de artilharia.
Infante de Lacerda, sargento-mor
reformado, levou para a Porta do Nós 38 espingardeiros, que se esconderam nos
muros e nos telhados da “Ilha” (a norte do Paço Ducal e junto da estrada de
Borba), com ordem para dispararem sobre os soldados franceses do General
D’Avril, que tinha vindo para ajudar a guarnição francesa do Castelo.
Trinta e seis soldados franceses
acabaram por perecer nas escaramuças.
Contudo, devido ao número desigual
de forças entre franceses e o povo calipolense, a insurreição foi controlada
pelos invasores, que acabaram por entrar pela Porta dos Nós (a antiga Porta da
Vila).
No ano de 1728, no âmbito da célebre
“Troca das Princesas” realizada no Caia, quando foi ajustado o casamento
do príncipe D. José com D. Maria Vitória, filha de Filipe V de Espanha e da
princesa portuguesa Maria Bárbara com Fernando VI de Espanha, a Câmara de Vila
Viçosa reparou as duas estradas de Bencatel e Borba a fim de poderem circular
mais rapidamente os coches da Família Real[7].
Em 1859, com a conclusão da estrada
real de macadam por Borba, Estremoz, Vimieiro, Arraiolos e
Montemor até Vendas Novas, passaram os almocreves a usar carros mais rápidos e
resistentes, com ferragem inteiriça nas rodas e ferro nos eixos, carregando e
descarregando mercadoria na estação do caminho-de-ferro de Vendas Novas,
inaugurada em 1853[8]. Fica mais uma
vez evidenciada a relevância económica desta ligação.
Em 1860, nova referência à “Estrada
Real”, quando a
Santa Casa da Misericórdia de Vila Viçosa constata uma irregularidade no
transporte de doentes que iam de Borba para Elvas e que passavam por Vila
Viçosa. Para os membros da comissão administrativa da instituição calipolense
era um absurdo a utilização do caminho que dava acesso a Vila Viçosa, uma vez
que os doentes deveriam ser mandados diretamente por Juromenha. No entanto, os
doentes eram remetidos para Vila Viçosa, devido à extinção da Misericórdia de
Juromenha, tendo os seus bens sido entregues ao administrador do concelho do
Alandroal[9].
Este facto prova a variada
utilização da estrada para diferentes fins, entre os quais o transporte de enfermos.
No final do século XIX, outro
cronista calipolense, o ilustre Padre Joaquim Espanca, considera a “estrada
de Borba” uma das
mais importantes, refere como estrada principal. Em 1868, o governo central
mandou classificar as estradas em três ordens, sendo pertencentes à primeira as
estradas reais ou em direção a Lisboa; a 2ª às distritais que ligam os
concelhos com as capitais de distrito; e à 3ª as municipais que devem ligar as
aldeias com as cabeças de concelho. Todas estas estradas, feitas ou por fazer,
foram numeradas para sua melhor designação e formaram-se mapas do Reino com o
trajeto das mesmas estradas[10]. Diz-nos o
Padre Espanca que a “estrada de Borba para Vila Viçosa, que é real, já
estava feita”.
Esta via só perderá alguma
importância com a criação da linha de caminhos-de-ferro e da Estação de Vila
Viçosa, inaugurada em 1905. A ligação a Lisboa torna-se mais célere, sendo
possível fazer o trajeto num único dia.
A partir de meados do século XX, a
Estrada Nacional 255 passa a assumir uma importância muito relevante do ponto
de vista económico, já que constitui o acesso privilegiado às pedreiras e
unidades de transformação do mármore, principal atividade socioeconómica dos
concelhos de Borba e Vila Viçosa.
Passa a estrada municipal em 2005,
data em que é inaugurada a “variante” que liga as duas sedes de concelho.
Contudo, antes do desabamento, continuava a utilizada com muita frequência,
quer por borbenses, quer por calipolenses.
Tendo em conta o que foi
demonstrado, é óbvia a importância história da antiga Estrada Nacional 255.
Fará sentido o seu encerramento
definitivo?
Haverá possibilidades de
reabilitação da via?
Do ponto de vista técnico, isso será
possível?
Em termos de investimento, qual será
o encargo?
A questão da segurança ficará
salvaguardada?
Será necessário entaipar as
pedreiras que não estão a laborar, nas zonas mais críticas do percurso?
Qual o impacto económico para as
empresas de mármore da região e superfícies comerciais de ambas as localidades?
A “variante” ficará a ser a única
via de comunicação entre Borba e Vila Viçosa?
O ramal ferroviário de Vila Viçosa
poderá ser reativado?
Do ponto de vista turístico, haverá
alguma possibilidade das pedreiras inativas poderem ser úteis?
Perderá o Paço Ducal de Vila Viçosa
alguma percentagem de visitantes, na sequência do eventual encerramento da
antiga Estrada 255, tendo em conta que este era o acesso privilegiado ao
monumento?
São demasiadas perguntas para poucas
respostas. É de lamentar que esta tragédia as tenha originado. Talvez seja
ainda prematuro pensar sobre este tema. Será necessário e inevitável repensar
estratégias e soluções, de modo a que mais situações como as que vivemos não
voltem a repetir-se. É agora importante planear o futuro, através de uma
profunda reflexão, sem esquecer a importância histórica, económica e social
deste pequeno troço entre ambas as localidades.
[1] PESTANA,
Manuel Inácio, Forais de Vila Viçosa,
Câmara Municipal de Vila Viçosa, Vila Viçosa, 1993 (SC 69672 V.).
[2] Idem.
[3] ESPANCA, Túlio, Inventário Artístico de Portugal – Distrito de Évora, Zona Sul,
vol. I, Academia Nacional de Belas Artes, Lisboa, 1978.
[4] CALADO, Frei
Manuel, Valeroso Lucideno, Of. Domingos Carneiro, Lisboa, 1648
(HG 36883 V.); (RES. 1249 V./ 1313 V.).
[5] Filha do
Infante D. Duarte e de D. Isabel de Bragança, esposa do 6º Duque de Bragança D.
João I e mãe do sétimo Duque, D. Teodósio II.
[6] CARDONEGA,
António de Oliveira, Descrição de Vila Viçosa[6],
introdução, selecção de texto e notas de Heitor Gomes Teixeira, Imprensa
Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 1982.
[7] ESPANCA,
Padre Joaquim José da Rocha, Memórias de Vila Viçosa,
36 cads., Câmara Municipal de Vila Viçosa, Vila Viçosa, 1983 – 1992.
[8] MILHEIRO,
Nuno, O municipalismo e o concelho de Vila Viçosa no século XIX,Revista
de Cultura Callipole nº 10, Cãmara Municipal de Vila Viçosa, 2002.
[9] ARAÚJO,
Maria Marta Lobo de, A Misericórdia de Vila Viçosa :
de finais do Antigo Regime à República”. Braga : Santa Casa da
Misericórdia de Vila Viçosa, 2010.
[10] ESPANCA,
Padre Joaquim José da Rocha, Memórias de Vila Viçosa,
36 cads., Câmara Municipal de Vila Viçosa, Vila Viçosa, 1983 – 1992.
Bibliografia
consultada:
ARAÚJO,
Maria Marta Lobo de, A Misericórdia de Vila Viçosa :
de finais do Antigo Regime à República”. Braga : Santa Casa da
Misericórdia de Vila Viçosa, 2010.
CADORNEGA,
António de Oliveira, Descrição de Vila Viçosa[1],
introdução, selecção de texto e notas de Heitor Gomes Teixeira, Imprensa
Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 1982.
CALADO,
Frei Manuel, Valeroso Lucideno, Of. Domingos
Carneiro, Lisboa, 1648 (HG 36883 V.); (RES. 1249 V./ 1313 V.).
ESPANCA,
Padre Joaquim José da Rocha, Memórias de Vila Viçosa,
36 cads., Câmara Municipal de Vila Viçosa, Vila Viçosa, 1983 – 1992.
ESPANCA,
Túlio, Inventário Artístico de Portugal – Distrito de Évora, Zona Sul,
vol. I, Academia Nacional de Belas Artes, Lisboa, 1978.
MILHEIRO,
Nuno, O municipalismo e o concelho de Vila Viçosa no século XIX,
Revista de Cultura Callipole nº 10, Câmara Municipal de Vila Viçosa, 2002.
PESTANA,
Manuel Inácio, Forais de Vila Viçosa,
Câmara Municipal de Vila Viçosa, Vila Viçosa, 1993 (SC 69672 V.).
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