CLÁUDIA SOUSA
PEREIRA
AS DUAS FACES DA ARTE DE NOS TORNARMOS
PRESCINDÍVEIS
Como uma moeda a sério e que pode circular por aí – porque não
está colada junto a outra que mostra a cara ou a coroa oculta numa colecção –
há também dois lados não confundíveis de exercer, ainda que com resultado
aparentemente semelhante, a arte de nos tornarmos prescindíveis. Só um deles
resulta mesmo da arte como saber-fazer. É que ou nos tornamos prescindíveis
pela vontade que criamos nos outros de nos verem pelas costas; ou nos tornamos
prescindíveis porque cumprimos cabalmente com o que o provérbio africano dita
quando diz que o que importa não é dar o peixe mas ensinar a pescar. E se
quisermos acrescentar uma pitada de cor local lusa ao caminho certo desta arte,
poderemos talvez dizer que a obra-prima é aquele, ou aquela, que mesmo já se
tendo tornado prescindível porque já fez tudo o que podia fazer e poder sair de
cena, ainda deixa saudades.
Enquanto
por terras mexicanas circulava toda a movida da festa da Cultura portuguesa,
central ou periférica, mas invejavelmente constituída por privilegiados
convidados, a representante do Governo, com a pasta da Cultura mas que também
tutela os assuntos da Comunicação Social, usava os microfones desta para
cometer contra a mesma uma realíssima e indesculpável gaffe (e estou a ser
simpática ao chamar-lhe isso); enquanto isso acontecia, há um mesmo par de
semanas, dentro de portas, entregavam-se os Prémios Gazeta da Comunicação
Social pela mão do PR e com avisos para a profunda crise que se escava neste
sector imprescindível ao bom funcionamento da Democracia e da vida em
Liberdade.
A
arte de nos tornarmos prescindíveis, ao que estou em crer, exprime-se e dá-se a
ver, em dois campos diferentes e mesmo opostos: o da vida pessoal onde as
relações se revestem preferencialmente de emoções; e a da coisa pública em que
parecendo tão humano exprimir-se um lado afectuoso, que até não é desprezível,
importa sobretudo que se imprimam nas acções e nas palavras que as acompanham
uma frieza que evite sobretudo quer o disparate, quer o desperdício. E estes
episódios coincidentes, mas talvez não por coincidência, vieram também
fazer-nos pensar que nem só ao indivíduo parece abrir-se o risco de se tornar
prescindível pelo pior dos caminhos, ou seja, sem arte nenhuma. É que não basta
encostarmo-nos a um determinado estatuto, ou ao prestígio de um cargo ou de uma
corporação, que respectivamente assumimos ou integramos, e com isso
julgarmo-nos imprescindíveis, para passarmos a ser bons na outra difícil arte.
Esta, como a Arte (com maiúscula), não se contenta apenas com vontades nem
depende de efeitos por osmose. Antes requer uns imprescindíveis trabalho,
empenho e bom-senso.
O
que nos pode ter relembrado a coincidência de há duas semanas é que termos
consciência desta arte de nos tornarmos prescindíveis parte de um bom
princípio, ditado por adágio popular, e que não é o hábito que faz o monge.
Será até preciso, digo eu, uma certa vocação e, mesmo que muitos sejam
competentes, nem todos se conseguem livrar da tentação de tentarem ser
imprescindíveis, ao quase ponto da beatificação em vida, e atingir o que
acredito ser uma difícil meta coerente da condição humana, sem falsas
modéstias: tornarmo-nos prescindíveis.
Até
para a semana.
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