Para já vamos recuar aos finais da década de 50 do século
passado. Nessa altura morávamos na Carreira de S. Francisco, no primeiro andar
de um prédio novo, construído em frente do Estádio 1º de Maio.
Em Setembro, nas manhãs de Domingo de feira, costumávamos
assistir ao desfilo dos rebanhos, uns após outros, a caminho do rossio da vila.
Uns dias antes, lá no alto da janela, já tínhamos visto carroceis, circos,
carrinhos de choque e outras diversões, assim como uma caravana de carros com
barracas de quinquilharias e tranquitana variada. Também muitas carroças com
ciganos.
Morar na Carreira de S. Francisco dava direito a sermos dos primeiros
a saber qual o circo que iria animar a feira, se tinha elefantes, tigres e
leões, ou se o carrocel seria o Araújo ou o Montanha.
Durante algum tempo, o rossio deixava de ser uma espécie de
academia do futebol onde a rapaziada passava horas na jogatana. No amplo recinto,
meio pelado, meio relvado, ia ter lugar a tradicional Feira da Luz, a maior
festa do ano e ponto de reencontro anual dos montemorenses.
Vêm-nos à lembrança algumas impressões dispersas que
guardamos da feira de outros tempos. Temos idéia que nos demorávamos largos
minutos a observar a capacidade oratória dos vendedores de banha da cobra,
publicitando entusiasticamente o seu produto logo à entrada do recinto.
Normalmente esses “vendedores de milagres” eram portadores de uma mala de
viagem onde transportava a prodigiosa mezinha. Vimos alguns exibindo lombrigas,
ténias e outra bicheza estranha em frascos de vidro, para assim impressionar a
assistência e convencê-la a adquirir o remédio milagroso.
Havia cura para tudo
ou quase tudo: diarreia, prisão de ventre, infecções, febres e dores de todo o
tipo…” Senhoras e senhores, não estou
aqui para enganar ninguém! Não custa cem nem cinquenta nem trinta. Custa apenas
uma nota de vinte, e quem comprar uma embalagem leva mais duas totalmente
grátis!” Os valores podia não ser exactamente estes, mas o discurso não
andava longe disto.
A este propósito estávamos aqui a falar com os nossos botões
e a pensar que não vemos vendedores de banha da cobra há já algum tempo, o que
não significa que eles tenham desaparecido. Possivelmente andarão por aí,
usando outras roupagens, outras técnicas, vendendo um sem número de ilusões.
Atenção especial mereciam também os retratistas, que criavam
a fantasia de sermos capazes, por breves instantes, de pegar um touro de
cernelha ou de viajar no volante de um bruto espadalhão descapotável. Milagres
da fotografia!
A feira era, só por si, uma grande festa, um mundo de
encantamento, mas comportava também alguns riscos. Deixámo-nos, algumas vezes,
levar pelo palavreado do homem da vermelhinha, convencidos de que não nos
deixaríamos ludibriar pelo hábil trapaceiro. Três pequenas tampas voltadas para
baixo e, sob uma delas, uma minúscula bola. Depois de manipuladas as tampas,
éramos convidados a adivinhar, mediante aposta, onde se encontrava a enigmática
bolinha. Tudo feito ali, diante dos nossos olhos. Não havia que enganar. Porém
quanto mais olhávamos, menos víamos. O resultado era cairmos repetidamente no
logro, e lá se ia o dinheirinho todo! Adeus pista de automóveis! Adeus, poço da
morte! Adeus pirolitos e torrão de Alicante!
Não é nosso propósito fazermos aqui a descrição
pormenorizada da antiga Feira da Luz. Debruçamo-nos sobre muitas das suas
facetas em crónicas anteriores. Não resistimos no entanto a dedicar umas tantas
linhas ao mundo do circo para evocarmos um dos maiores palhaços de sempre, um
enorme artista que fez as delícias de milhares de crianças e adultos.
Joaquim da Purificação dos Santos, vulgarmente conhecido por
Kinito, foi um dos artistas circenses que mais fez rir o público que tinha à
sua volta. Trabalhou no Circo Luftman, no Texas e noutros grandes circos.
Vimo-lo num dos números mais sensacionais feitos por um palhaço. O artista
setubalense aparecia em pista vestido de cowboy, co as suas pernas finíssimas,
desengonçadas. Kinito, Emiliano e Cª levavam o público ao delírio com as suas
piadas, os seus movimentos, a magia da sua música. Que teve a felicidade de ver actuar o fabuloso “palhaço
das pernas de elástico” dificilmente poderá esquecê-lo.
Pois é, estimado leitor! Ficaram aqui algumas memórias
soltas da feira. Todavia, falta-nos ainda dizer que, entre as muitas figuras
que lhe davam vida, havia duas quase obrigatórias. Era o caso d Zé e do seu
irmão Chico, atrás de um carrinho de mão transportando bilhas com água,
refresco económico para muitas bocas sequiosas. O Zé e o Chico eram daquelas
figuras que podiam muito bem pertencer à galeria das personagens de ficção de
que falámos no início da nossa crónica.
Sem esconder alguma emoção, o nosso amigo Bexiga fez-nos
chegar um texto da autoria do saudoso Manuel Justino Ferreira, também ele um
ser muito especial, com uma veia poética absolutamente extraordinária, um amigo
que não sai da nossa lembrança.
Por ocasião da morte do Zé, o Manuel Justino escreveu um
inspiradíssimo texto que mais se assemelha a um requiem e que, com conhecimento
do seu filho, Manuel Henriques Macau Ferreira, passamos a transcrever:
Não seria o Zé
Povinho, não, mas era todo povo.
Morreu o Zé! De
sobrenome Pereira e a seguir Penteado!
José Pereira Penteado!
A caminhar para as 70 primaveras!
Doido lhe chamavam…e,
em parte até o era! Afinal quem há, quem há que não o seja? Muitos sem o
saberem, outros que não o querem ser e também os que fingem que o são!
Morreu o Zé! Sua falta
não será muito notada…por cá ficam muitos e bem piores do que ele!
Teria o Zé sido feliz?
– A felicidade não se compra nem se vende.
Partiu o meu
fornecedor de violetas! Deixou-me, como recordação, uma velha lata de óleo onde
cresce um manjerico! É! Foi levá-lo à minha casa, dizendo à Ana: - Para o
senhor Manuel “Celestino”!
Falar do Zé é escutar
uma vida sem carinho! Ao Deus dará…sem eira nem beira, correndo as margens dos
regatos, na verde descoberta dos cardos e agriões! E neste mundo de pessoas tão
“inteligentes” jamais as suas mãos se mancharam com a desonra!
José andou nas marchas
populares com o Chico! Um irmão perdido no mundo! Pobres de Cristo…orações sem
resposta, gritos que ninguém ouve! E quando pela noite dentro saia a Banda da
Carlista, lá ia ele, de archote na mão…iluminando as notas musicais, dando luz
às flautas, às requintas e barítonos!
Foi seu grande amor o
Rio Almansor! Que sabe até se, mesmo hoje, entre as passadeiras do Moinho do
Bispo, terá passado uma lágrima chorada pela morte do Zé!
Quer queiram, quer
não, era figura popular deste Montemor, que por vezs adorava vê-lo zangado. E
nas noites de Santo António, e São Pedro, eram as alcachofras, sempre…sempre as
mais floridas! Três cinco escudos… duas, sete mil e quinhentos!!!!
Pobre Zé das manhãs
geladas, das noites dormidas em lençóis de amargura, da sopa fria e distante!
Ai! Roda dos enjeitados…Ai! Pés feridos no caminho!!!
Nasceu em dia de São
Pedro! Em dia de festa…
Parte desta vida em
hora de ressurreição!
Pai Nosso que estais
no céu… Em PAZ que nunca teve na vida, percorras, meu caro José, o caminho da
morte!
E olha amigo: BOA
VIAGEM!
E pronto estimados leitores! Também nós emocionados, vamos
de partida, já a pensar nas Memórias do mês de Outubro.
Até lá.
Vitor Guita
In Montemorense – Setembro 2018
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