segunda-feira, 6 de novembro de 2017

EVOCAÇÃO DE PERSONAGENS QUE PERDURAM NA HISTÓRIA DO ALANDROAL - Por A.N.B.

 "O ANB apresentou ao Al tejo mais um retrato escrito do Zé Trinta pregoeiro. Uma personagem que a Vila e os alandroalenses não querem  apagar das sus memórias. No meio das suas (im)perfeições, o Zé Trinta, soube manter ao longo da vida um espírito criativo e elevado que foi marcando a sua geração e as que lhe sucederam. 
Ora vejam"
Chico Manuel




                     O  Zé  Trinta  trocou as  Pomadas
I.
 Havia no seu rosto e corpo adelgaçado e pró magro, também a composição perfeita de um chapéu de abas enviesadas que usava  diariamente, acompanhando, o seu riso e viver humano feito de pequenas e grandes interrogações sobre a sua vida.
Dúvidas tinha bastantes. Certezas tinha algumas como a de ter quatro profissões visíveis e trabalhadoras (*), arranjar uma mão cheia de filhos, e ir mastigando lá em casa dificuldades do arco da velha. Dia sim, dia sim.
Daí deve-lhe ter nascido uma regular propensão para entornar uns copos ao cair da noite, terminadas as durezas e a instabilidade do seu dia a dia com proveitos muito incertos.
Indo nós, nesta tentativa ousada de acertar nas suas características, vistas à luz daqueles tempos difíceis, era porventura um homem que pensava o que sentia mas também sentia o que pensava.
Inventivo e critico de si mesmo, tinha contudo uma enorme qualidade que, todo o Alandroal, lhe reconhecia: a sua extrema disponibilidade para ser, por exemplo, o pregoeiro de boa voz e uma espécie de corretor da bolsa e dos mercados locais. Quando os havia.
Era ele, quem anunciava e agitava o mercado do peixe local e os grandes eventos que estavam para acontecer na terra com as pontas de tecnologia do seu Funil, um intercomunicador de vasto alcance.Com voz tentadora, colocava-se em sítios estratégicos da Vila.  Por exemplo, a meio da Rua da Mata, e daí logo os seus anúncios chegavam em alta ou às partes baixas da Vila.
Quase sempre atencioso e disponível, para toda a gente, toda a gente com ele comunicava, e só por vezes, vamos dizer isto em abono da verdade, era duro e inesperado nas respostas.
No fundo, era um homem com centelhas luminosas e fundamentalmente bom. Sabia chorar (se necessário fosse) como todos os homens dignos desta humanidade que andamos agora novamente descuidando.
Passados estes anos, estamos convencidos ( mas pode acontecer que estejamos enganados… ) que se tivesse assistido ao 25 de Abril, seria um bom orador, teria dado um jornalista de primeira ordem, não se posicionando na “esquerda conservadora” que anda a acomodar ( e a acumular) deputados e autarcas sem a arte e a abrangência social que o Zé Trinta, à escala local , exemplificou.  
A sua missão foi contudo outra e podemos agora resumi-la assim: o Zé Trinta era um assombro que se dividiu entre o seu Ser diurno e nocturno, idealista e (pouco) realista, optimista e pessimista. Havia nele, se bem o percebemos, quando mostrava a capa atrasada do “Diário de Notícias”, uma atracção pelos contrários derivados de uma crise existencial injusta. Talvez fosse também aproximadamente bipolar!
Assim deve ter partido (sem que consigamos lembrar-nos do ano…) mas a memória dos alandroalenses, integra-o num quadro de pessoas da nossa terra com história e com um passado de Ilusões e Destino. Bastante Espírito e Verbo apelativo.
Como se comprova no “episódio rápido” que a seguir vamos contar porque, se não pode perder a graça se é que alguma graça terá.
II.
   O episódio prometido e devido é este.
Indo dois amigos subindo até ao alto da Praça, com uma iluminação que não era grande coisa, repararam  que uma “Caixa de Engraxar” estava ali esquecida. Nisto logo um deles (nenhum era anb ) foi naturalmente escondê-la.
Saiu o Zé Trinta da taberna do meu tio Manuel Canhoto e, num passo apressado, boa noite, começou a subir a Rua da Mata. Subitamente, a meio, volta para trás, reclamando, onde é que estava a Caixa?...
Aparece o Senhor Alexandre Recto que morava mesmo ali, a dar o passeio habitual aos seus cigarros da noite. Calmo, responsável, conciliador.
A Caixa de Engraxar, disse um dos amigos, só iria aparecer em troca de uma engraxadela de borla. Concordaram os presentes nesta saída. Concordou fisgado o Zé Trinta.
Começou a engraxadela. Apanhando os jovens distraídos, o Zé Trinta põe efectivamente no sapato do pé direito tinta preta… mas por cima pomada vermelha; e no sapato do pé esquerdo, põe primeiro tinta vermelha e só depois pomada castanha. A seguir, puxou-lhes lustro com aquele pano geralmente sebento, negro, meio esfarrapado e estaladiço que até rangia.
Acabou, disse ele!
Foi, então, que os dois pés e os dois sapatos repararam que estavam de cores diferentes e quase opostas. Era claro que tanto um como o outro sapato já não ficaram nem iriam ficar com a cor preta inicial.
Armou-se logo ali um certo alvoroço entre as duas partes… a pontos de o Senhor Alexandre Recto ter de intervir deste modo: “Oh Zé, vai para casa; quanto aos sapatos, se amanhã, estiverem com uma cor incapaz, eu pago-vos um par de sapatos novos”. Ouviram?
 Assim foi resolvida a situação.
Mas, ainda hoje estou em pensar, quem terá sido o verdadeiro (re) inventor, o dono e senhor final desta partida? Terá sido a fantasia juvenil dos dois amigos? Ou terá sido, enfim, o saber criativo e a parcela de sagacidade do Engraxador a levar a melhor?
 Pelo olhar batido e radiante que  lhe conhecemos, ficou fácil percebê-lo. O Zé Trinta tinha invertido, a seu favor, a situação. Os deuses bacanos que lhe serviram de inspiração estavam mais uma vez ao lado dele.
Era essa a sua grande força e grande fraqueza!
        (*) Pregoeiro corretor, Aguadeiro, Recadeiro, Engraxador
    Saudações
      Antonio Neves Berbem
       ( 6 /11/ 2017)

1 comentário:

Anónimo disse...

Um sapato de cada cor..., uma dor que alivia outra..., são a síntese deste alandroalense que comeu "o pão que o diabo amassou", como muitos outros.
Dois alandroalenses recordam o Zé Trinta. Dão a perceber, pela sensibilidade e carinho empregues nas palavras, vírgulas e parágrafos, a memória que mantêm viva deste conterrâneo com a "marca" alandroalense
Esta geração que tem memória tem a "marca".
Permitam-me que tenha esta franqueza: momento ímpar e arrebatador neste blog... com o Zé Trinta.

Ao ANB e AC agradeço este belo momento de leitura.
Um abraço da
"Marca" Alandroalense