segunda-feira, 6 de novembro de 2017

UMA HISTÓRIA DO A.C.

Para que possam aquilatar da importância que um pregoeiro, poderia ter numa pequena localidade como o Alandroal, recordemos esta ficção escrita em 1999 pelo A.C. inspirada na personagem do Zé Trinta.

Chico Manuel
                                                      Pela voz do Chico Funil...
Cheguei no único meio de transporte que se deslocava então à aldeia uma vez por semana – com correio e outras encomendas – a carroça do João Estafeta, nome profissional que já lhe pertencia também como apelido.
Durante o pitoresco percurso até à povoação, encostado a um ribeiro bem abastecido ainda de água da última invernada, e que ali rasga a terra até onde a vista enxerga, por entre searas ainda verdes e terras de sobro, tentei tirar nabos da púcara sobre o sítio e a gente que ali vivia – com a curiosidade própria de quem chega – mas os poucos monossílabos que arranquei a saca- -rolhas foram evasivos e sempre em abono do meu falecido colega, pessoa difícil de superar na profissão e na bondade com que impregnava o relacionamento com o seu semelhante. «Não seria possível arranjar outro como o doutor Saúde que já conhecia de cor sangues, constituições e doenças das gerações. Médico novo, por muito que tenha lido nos livros, falta-lhe a prática, virtude corriqueira no doutor Saúde, versado na remessa de doenças mais frequentes neste meio rural, algumas relacionadas com o astro, outras próprias de cada mês do ano, assim como em segredos particulares sobre mezinhas, emplastros e sinapismos que levou consigo para o outro mundo».
–Eu prefiro ir ao “virtuoso”, a consultar aprendizes da ciência, ou então abafar-me debaixo das mantas e esperar que a doença passe – disse o Estafeta com ar convencido, carregado de chacota, sem dúvida para me quebrar o ânimo.
Tenho bem presente esse quadro de casas alvas que rodeiam o adro da igreja, onde meia dúzia de velhos de semblante carrancudo e hostil me aguardavam inquisitorialmente, quebrada a atmosfera tensa pela aparição do padre Domingues – homem salientado por rosto jovial e grande pança – que me recebeu de braços abertos e desde então com a amizade que sempre me dedicou, mau grado o meu feitio avesso a gastar-lhe os ladrilhos do templo.
Disse-me nesse dia, enquanto enxotava a miudagem que em grande algazarra nos cercara como centro do jogo do apanha: «não se preocupe e não desmoreça, esta gente às primeiras é desconfiada e tem o hábito de muitos anos de fé no doutor Saúde. É compreensível, não lhes leve a mal, depressa os convencerá com os argumentos que certamente trás na maleta».
De facto assim foi, um pouco ajudado pela sorte do primeiro doente que me procurou ser o pregoeiro da aldeia – o Chico Funil, alcunha inspirada, por certo, no objecto que utilizava para lançar as palavras ao vento.
O Chico era gago até dizer chegue na conversa do dia a dia, mas, curiosamente, como os gagos a cantar o não são, ele, também, quando dizia o pregão era com fluidez admirável.
Manhã bem cedo fui arrancado da cama pelo bater persistente do ferrolho da porta do quintal. Enfiei o roupão, que a aragem matinal era fria, e meio a dormir fui ver quem era. O Chico, em voz sumida, iniciou a marcha de um discurso não muito longo, mas difícil de terminar: –O seenhoor doooutor descuculpe incomodar – esta última palavra saiu limpinha, de uma só vez, acompanhada pelo estalar dos dedos da mão esquerda –; eestou com uma vavavalente door de gooeelas que nãão me deeixa traaabalhaar…
Fiz sinal para que entrasse – a ouvi-lo estaria ali especado manhã fora. Ardia em febre e escancaradas as goelas – como ele dissera – estava feito o diagnóstico de “anginas”. O pregoeiro – ironicamente – tinha um ponto fraco na garganta e era acometido certeiramente por vários episódios de amigdalite durante o ano, doença que o arrasava por alguns dias.
A penicilina, recentemente posta no mercado e um dos “argumentos” que trouxera na maleta, rapidamente pôs em tempero o paciente. Uma só injecção fez o milagre!
No dia seguinte o nosso homem estava são como um pêro e arrancou a caminho da igreja, em grande excitação, a dar conta ao padre Domingues das artes e manhas do novo licenciado em medicina da aldeia. Por incrível que pareça, disse o que tinha a dizer sem um único esgar na fala.
–Este doutor atinou em cheio na minha doença com uma só injecção de… de “penacelima”, ou lá o que é! Foi velhaca a magana, mas foi como a mão de Deus, há-de desculpar-me sr. Prior… …e não quis receber dinheiro pela consulta, mas vou pagar-lhe a mê modo!
O padre não teve tempo de proferir palavra. O Chico virou-lhe costas e mal saiu da igreja começou o pregão com que encheu durante aquele dia os ouvidos da povoação: «senhores e senhoras, meninos e meninas, a todo o pessoal desta aldeia quero fazer saber que já se encontra entre nós o doutor de medicina nomeado para o partido médico de À dos Esquecidos, senhor doutor Joaquim, conhecedor de todas as doenças, quer d’ homens, quer de mulheres e crianças, quer de febres, sezões e demais moléstias, curas e injecções que fazem milagres para o mal das anginas... …eu que o diga: doem no cú… …mas aliviam as goelas»…
AC



2 comentários:

Anónimo disse...

Este AC é um contista com humor muito apurado...

Cumprimentos,

CCG

Anónimo disse...

Este AC não deixa de me surpreender.
Neste pequeno mas muito bem engendrado conto, certamente vestiu a pele do seu novato colega Dr. Joaquim que é lançado nessa aventura de ser médico numa pequena aldeia, com um povo desconfiado e difícil em aceitar mudanças. O pregoeiro deu uma boa ajuda...