Para que possam aquilatar da importância que um
pregoeiro, poderia ter numa pequena localidade como o Alandroal, recordemos
esta ficção escrita em 1999 pelo A.C. inspirada na personagem do Zé Trinta.
Chico Manuel
Pela voz do Chico Funil...
Cheguei no
único meio de transporte que se deslocava então à aldeia uma vez por semana –
com correio e outras encomendas – a carroça do João Estafeta, nome profissional
que já lhe pertencia também como apelido.
Durante o
pitoresco percurso até à povoação, encostado a um ribeiro bem abastecido ainda
de água da última invernada, e que ali rasga a terra até onde a vista enxerga,
por entre searas ainda verdes e terras de sobro, tentei tirar nabos da púcara
sobre o sítio e a gente que ali vivia – com a curiosidade própria de quem chega
– mas os poucos monossílabos que arranquei a saca- -rolhas foram evasivos e
sempre em abono do meu falecido colega, pessoa difícil de superar na profissão
e na bondade com que impregnava o relacionamento com o seu semelhante. «Não
seria possível arranjar outro como o doutor Saúde que já conhecia de cor
sangues, constituições e doenças das gerações. Médico novo, por muito que tenha
lido nos livros, falta-lhe a prática, virtude corriqueira no doutor Saúde,
versado na remessa de doenças mais frequentes neste meio rural, algumas
relacionadas com o astro, outras próprias de cada mês do ano, assim como em
segredos particulares sobre mezinhas, emplastros e sinapismos que levou consigo
para o outro mundo».
–Eu prefiro
ir ao “virtuoso”, a consultar aprendizes da ciência, ou então abafar-me debaixo
das mantas e esperar que a doença passe – disse o Estafeta com ar convencido,
carregado de chacota, sem dúvida para me quebrar o ânimo.
Tenho bem presente esse
quadro de casas alvas que rodeiam o adro da igreja, onde meia dúzia de velhos
de semblante carrancudo e hostil me aguardavam inquisitorialmente, quebrada a
atmosfera tensa pela aparição do padre Domingues – homem salientado por rosto
jovial e grande pança – que me recebeu de braços abertos e desde então com a
amizade que sempre me dedicou, mau grado o meu feitio avesso a gastar-lhe os
ladrilhos do templo.
Disse-me nesse dia,
enquanto enxotava a miudagem que em grande algazarra nos cercara como centro do
jogo do apanha: «não se preocupe e não desmoreça, esta gente às primeiras é
desconfiada e tem o hábito de muitos anos de fé no doutor Saúde. É
compreensível, não lhes leve a mal, depressa os convencerá com os argumentos
que certamente trás na maleta».
De facto assim foi, um
pouco ajudado pela sorte do primeiro doente que me procurou ser o pregoeiro da
aldeia – o Chico Funil, alcunha inspirada, por certo, no objecto que utilizava
para lançar as palavras ao vento.
O Chico era gago até
dizer chegue na conversa do dia a dia, mas, curiosamente, como os gagos a
cantar o não são, ele, também, quando dizia o pregão era com fluidez admirável.
Manhã bem cedo fui
arrancado da cama pelo bater persistente do ferrolho da porta do quintal.
Enfiei o roupão, que a aragem matinal era fria, e meio a dormir fui ver quem
era. O Chico, em voz sumida, iniciou a marcha de um discurso não muito longo,
mas difícil de terminar: –O seenhoor doooutor descuculpe incomodar – esta
última palavra saiu limpinha, de uma só vez, acompanhada pelo estalar dos dedos
da mão esquerda –; eestou com uma vavavalente door de gooeelas que nãão me
deeixa traaabalhaar…
Fiz sinal para que
entrasse – a ouvi-lo estaria ali especado manhã fora. Ardia em febre e
escancaradas as goelas – como ele dissera – estava feito o diagnóstico de
“anginas”. O pregoeiro – ironicamente – tinha um ponto fraco na garganta e era
acometido certeiramente por vários episódios de amigdalite durante o ano,
doença que o arrasava por alguns dias.
A penicilina,
recentemente posta no mercado e um dos “argumentos” que trouxera na maleta,
rapidamente pôs em tempero o paciente. Uma só injecção fez o milagre!
No dia seguinte o nosso
homem estava são como um pêro e arrancou a caminho da igreja, em grande
excitação, a dar conta ao padre Domingues das artes e manhas do novo licenciado
em medicina da aldeia. Por incrível que pareça, disse o que tinha a dizer sem
um único esgar na fala.
–Este doutor atinou em
cheio na minha doença com uma só injecção de… de “penacelima”, ou lá o que é!
Foi velhaca a magana, mas foi como a mão de Deus, há-de desculpar-me sr. Prior…
…e não quis receber dinheiro pela consulta, mas vou pagar-lhe a mê modo!
O padre não
teve tempo de proferir palavra. O Chico virou-lhe costas e mal saiu da igreja
começou o pregão com que encheu durante aquele dia os ouvidos da povoação:
«senhores e senhoras, meninos e meninas, a todo o pessoal desta aldeia quero
fazer saber que já se encontra entre nós o doutor de medicina nomeado para o
partido médico de À dos Esquecidos, senhor doutor Joaquim, conhecedor de todas
as doenças, quer d’ homens, quer de mulheres e crianças, quer de febres, sezões
e demais moléstias, curas e injecções que fazem milagres para o mal das
anginas... …eu que o diga: doem no cú… …mas aliviam as goelas»…
AC
2 comentários:
Este AC é um contista com humor muito apurado...
Cumprimentos,
CCG
Este AC não deixa de me surpreender.
Neste pequeno mas muito bem engendrado conto, certamente vestiu a pele do seu novato colega Dr. Joaquim que é lançado nessa aventura de ser médico numa pequena aldeia, com um povo desconfiado e difícil em aceitar mudanças. O pregoeiro deu uma boa ajuda...
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