PESSOAS
Não só de factos e lugares se compõem as memórias que
por vezes nos acodem à cabeça.
Talvez, mais importante que recordar peripécias da
infância e os lugares onde por vezes as mesmas aconteceram, seja recordar
pessoas de que apenas por vezes, em conversas de café, quando a nostalgia
aperta, nos lembramos.
Porque é bom por vezes regressar ao passado e
principalmente para todos aqueles que já ultrapassaram o meio século, assim em
jeito de amena cavaqueira vamos juntos relembrar algumas dessas pessoas, com
incidência especial numa delas que neste tempo de calor me acode com frequência
à memória: O Martinho dos “Sorvetes”.
Mas antes de lhes falar desta personagem, e porque
seria da minha parte uma ingratidão terei que mencionar mais três pessoas que
muito contribuíram na minha infância na formação da pessoa que me tornei.
Tia Ana
Feijoa – Considero-a como a minha
segunda mãe. Segundo julgo saber era
natural do Redondo, e foi em princípio a cozinheira da família Garcia
(Francisco e Antónia), minha segunda família que me cuidou desde o nascimento.
A obesidade que aos poucos se foi apoderando dela,
forçou-a a deixar a cozinha, mas continuou ao serviço da casa.
O seu trabalho
limitava-se a descascar batatas, migar a couve e nesta altura de Verão migar
pepino, coisa que fazia como ninguém. Naquela casa, principalmente minha
madrinha Antónia, comia salada de pepino a todas as horas.
Ganhava 20 escudos por mês. Notas, que Juntava
religiosamente mês a mês e que me dava, metade quando ia fazer exames a Évora,
e a outra metade pela Festa de Setembro.
Era ela a encarregada de fornecer os mantimentos para
as refeições e determinar o tipo de alimentação, tendo livre acesso à
“despensa”, pelo que muitos chouriços, e afins “surripiava” para os nossos
petiscos. Se por acaso algum colega de estudos me vier a ler não deixará de
recordar as “fatias de ovos” com que a Tia Ana nos brindava nas tardes e noites
de estudo colectivo.
Havia apenas uma “coisa” com que a Tia Ana “embirrava”
,e muito a desgostava: o eu vir dos Arquizes todo suado depois das jogatanas da
bola. Detestava a bola! Segundo me diziam havia-lhe falecido um filho a jogar à
bola no Redondo. Nunca cheguei a confirmar.
Quando regressei da comissão de serviço na Guiné encontrei
a Ti Ana no asilo do Alandroal. Todos os dias a visitava e lhe dava a esperança
(que sempre acalentou) de a retirar de lá. Tentei. Até arranjei uma casinha
perto de onde eu residia, mas nunca consegui concretizar-lhe a vontade pois
ninguém aceitou ir tomar conta dela.
Tio Manuel
Cego – Um pobre cego, acolhido pela
família Garcia a quem foi disponibilizada uma pequena casinha de uma só divisão
ao fundo da horta. Apoiado num pau, atravessava diariamente todo o jardim para
ir buscar as refeições à cozinha situada no primeiro andar. Tinha que subir
duas escadarias uma delas com cerca de 30 degraus. Nunca me constou que tenha
dado qualquer queda.
É aqui recordado porque foi o Ti Manel Cego que me
ensinou a nadar. Deus privou-o da visão, mas em compensação deu-lhe o dote de
se tornar um excelente nadador.
E foi precisamente a nadar que o mesmo faleceu. Numa
quente noite de Verão, depois do jantar e talvez para se refrescar foi tomar
banho num tanque na horta do Bexiga, e segundo se disse na altura, uma constão
(termo utilizado na altura) levou-o deste mundo.
Tio
Sebastião – o Tio Sebastião foi um
louceiro, natural do Redondo, que frequentemente se deslocava ao Alandroal.
Com um burro carregado de tachos, tarefas, panelas e
afins chegava pela tardinha, descarregava o animal e ía á janta. Regressava à
cocheira onde pernoitava, para logo pela manhã começar a volta pela Vila
vendendo a sua loiça. Só abalava depois de tudo vendido.
Recordo-o aqui pelas histórias que sabia contar e pela
companhia que nos fazia quando em noites de calor o serão era passado à soleira
da porta ou mesmo à porta da cocheira onde iria dormir.
Contava-se (não sei se verdade ou mentira), que um dia
enquanto foi “enxugar” um copo na taberna do Eduardo, deixou o burro à porta, carregado de loiça, um
“malandro” qualquer deitou o “murrão” do cigarro para a orelha do animal, que
desatou a espernear de tal forma partindo a loiça toda.
Nunca mais ouvi falar de tal personagem. Talvez um dos
nossos amigos leitores do Redondo possa adiantar mais qualquer coisa a
propósito deste homem exemplo das dificuldades passadas nesse tempo.
E por fim vou relembrar a personagem que deu origem a
estas memórias.
O Martinho dos
Sorvetes – segundo averiguei o Martinho foi empregado de taberna e mais tarde por
desavenças com o patrão instalou-se por conta própria explorando esse mesmo
ramo. No entanto não é esse o motivo por que hoje é aqui recordado.
Conforme a alcunha indica o Martinho tornou-se numa figura
sempre aguardada com muita ansiedade, por se dedicar, nos meses de Verão à
venda de gelados.
Longe estava ainda o tempo em que o gelado se
fabricava e comercializava nos moldes em que hoje o adquirimos, podemos guardar
em casa e consumir sempre que desejarmos. Na altura o gelado tinha fabrico
próprio, só era acessível em gelatarias (que nunca existiram no Alandroal).
Por isso o Martinho inventou uma espécie de carroça,
devidamente adaptada e nas tardes de Verão percorria as ruas da Vila vendendo o
que por ali se designava com “servete”, “sorvete” ou mesmo “gelado”, pelo preço
de 5 tostões. Noutras localidades e em veículos mais sofisticados e invólucros
de vários tamanhos o produto tinha outras designações como “esquimó”, “rájá” –
mas sempre apregoado como fresquinho – que o era na verdade, e acompanhado de
outras guloseimas como nogats, chupa-chupas, barquilhos, etc. .
Uma alegria para a rapaziada que aguardava
ansiosamente a passagem do Martinho com os seus 5 tostões, para colmatar não só
a sede, mas também consolar a vista com o colorido dos conservantes na massa
gelada do produto.
E com esta conversa toda, não é que me está a apetecer
um “corneto”! … Vou ali ao frigorífico buscar um…. Modernices… Como os tempos
mudaram!
Chico Manuel
Agosto 2017
2 comentários:
Companheiro
Estive há poucos dias em casa do falecido David Cantoneiro, para falar à Natalina que não via desde menina - hoje encontrei-a - estava o irmão o maestro Joaquim Alferes, o Quim do David,que teve a gentileza de me oferecer o seu livro de memórias pessoais, entre algumas recordações veio à baila o Martinho dos sorvetes e surgiu uma interrogação como é que ele transportava o carrinho dos gelados para outras localidades. Esteve estabelecido na casa onde hoje está o ZÉ do Alto, ao pé das Finanças.
Não nos lembrarmos do nome da filha, recordando-me eu na festa de Setembro, em casa do meu padrinho João Francisco,ter jantado com ela.
Se te recordares do nome agradecia.
Claro que me recordo do tio Manuel ceguinho, muito melhor doo que da tia Ana Feijoa.
Um abraço
Helder
O Martinho dos Sorvetes teve dois filhos. Um transviou-se. Mas o outro, o
Joaquim Manuel Basílio, com queda para a hotelaria, deu em gerente da
Residencial Tejo, ali para as bandas da Av. Infante Santo, em Lisboa.
Empresário activo e muito conhecido nesta zona, logo lhe haveria de dar
para transformar o terraço da Residencial num local de encontro e de
grandes conversas entre os alandroalenses que,por ali,iam aterrando.
Assim foi acontecendo.
Até que um dia, subitamente, partiu cedo.
Na brincadeira, trazia do Alandroal, a alcunha do "Menina de Lecre". Coisa
com que muito afinava e com bastante razão. Isto porque tinha sempre um
tratamento especial fosse para que menina fosse. Encantava-as!
E, depois até partilhava esses encantos com os amigos como
só o Sr. Basílio o sabia fazer e donzelar. Coisas tão boas como os
sorvetes do pai (que tanto fumava beiças quanto,em paralelo,nos aviava
gelados). Por aí, não havia Azae. Mas,por aqui, também nunca houve azar.
A sorte e uma certa alegria de viver eram,afinal,a sua imagem de marca!
ANB
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