segunda-feira, 24 de julho de 2017

AS MEMÓRIAS DO HELDER

                       As eiras

 Quando dos “Ofícios”, em rubricas denominadas “Recordar o Passado”, senti desejo de escrever acerca das eiras.
 Está implícito, que escrever sobre as eiras, terá que se falar na debulha, nas sementeiras, nas mondas, nas ceifas.
E porque não nos celeiros?
Nos celeiros artesanais, muitas vezes limitados a pequenos baús ou a grandes caixões, onde se guardava, especialmente, o trigo para a feitura da farinha, que depois de amassada e cozida se transformava no saboroso pão.
 Havia os celeiros estatais onde os lavradores e os fazendeiros iam meter o trigo, que o mercado livre não o podia comercializar.  
No monte do meu avô paterno existia um grande caixão, onde se guardava o trigo para se fazer a farinha.
Por altura da feira de são Francisco, no Redondo, a minha avó comprava peros de Esmolfe e guardava-os dentro do trigo, o que dava um cheiro muito agradável ao irem amadurecendo. Pensei que obtinha o mesmo resultado com os peros bravos, os “soromenhos”, claro que iam amadurecendo muito lentamente, mas cheiro não deitavam.
As eiras componham-se de rectângulos ou círculos, umas com chão tratado e coberto de alvenaria, de piso liso, tratado com cal, feita de desperdício de pedra mármore, que depois de cozida, se comprava nos fornos do Bairro Branco, perto de Borba. Outras térreas, previamente trabalhadas para ficarem lisas e situadas em terreno direito.
Em Terena, no Rossio, recordo-me perfeitamente das eiras.
No Verão, aquele recinto, enchia-se de cereal ainda na palha e em molhos, armazenados em “farrascais” á espera de serem debulhados.
A eira da “tia” Inês Coelha e a do “tio” Zé Macedo eram as maiores.
Jamais me esquecerei do episódio que lhe irei dar, de imediato, conhecimento.
 O “tio” Reco era o carreiro de uma parelha de mulas, na casa do senhor do Zé Macedo e fazia o carrego do trigo para a eira. Atrás do carro, carregado de molhos de trigo, numa carrada bem feita, em forma de triângulo, trazia um grande lagarto pendurado, pelo pescoço, por um fio. Observando o lagarto, seguia uma cadela, muito pequena de nome pombinha.    
      Não creio se o lagarto se desprendesse e caísse, a cadela tivesse coragem de o apanhar, mas certo foi a dura impressão que me ficou e, talvez tenha contribuído, para uma minha melhor aceitação do meio que nos rodeia.
Findo o carrego do cereal seguia-se a debulha. Os molhos eram abertos e espalhados e harmoniosamente espalhados pela eira. Se o tempo estava húmido, esperava por um dia mais quente, assim o cereal desprendia-se melhor da espiga e a palha era melhor cortada pelas facas do trilho. Este utensílio consistia em três ou quatro grandes rolos de madeira, com muitos objectos cortantes espetados na mesma, as facas, mas com o corte virado para o chão, ao mesmo tempo que a palha era cortada o cereal desprendia-se da espiga.
A palha servia de alimento para os animais e de inverno, também se lhes dava algum cereal, ração composta quase sempre, de aveia com uma pequena porção de favas misturadas.
      O movimento do trilho puxado pelas bestas, em singelo ou em parelhas, provocava um agradável ritual a qualquer observador.
      As bestas, primeiro a passo, depois a trote, obedecendo ás ordenações do seu carreiro, que de contente cantava, intervalando o cante com o mando.

                                                                                                                                                           Gira, gira, trilho gira / gira á roda sem canseira / trigo da palha tira / haja pão na nossa eira.
 As cantigas de improviso não se afastavam muito do sentido desta quadra.
 As canções tradicionais portuguesas, como o Malhão, o Passar da Ribeirinha, o Alecrim aos Molhos, também andavam muito na boca dos carreiros, por esta altura.
Não podia deixar de referenciar aqui, duas quadras, oriundas da Aldeia das Hortinhas, na freguesia de Terena, pelo seu salutar sentido crítico:
  “Tia Jaquina” Aperadora / lavradora da Aldeia / não me dei-a mais rechina /  já  
       tenho a barriga cheia. 
  
Oh aldeia das Hortinhas és pequena, tens valor / tens Salazar e Craveiro / e   
        também Deus Nosso senhor.
 E assim numa falsa alegria se ia enganando e distraindo muitas privações e amarguras da vida.
  Dir-se-ia, que entre o animal bípede e os quadrúpedes existia uma perfeita sintonia, ma simbiose que ambos iriam usufruir, dada pelo culminar do esforço de cada um.                     
Agora ali na eira ambos tinham a sua compensação.
 Nos dias de pouca “maré”, vento, tornava-se quase impossível a limpeza do calcador, havendo alguns dias, ser necessário esperar pelo dia seguinte.
Aparecido o vento, com forquilhas de pau e de dentes muito largos, chamada balde, separava-se a palha mais leve.
 A moinha e a palha mais miúda eram separadas com forquilhas de seis e cinco dentes, ambas também de pau, e finalmente com a pá de “jar”, o cereal, trigo, aveia, cevada ou favas ficavam limpos.
 A limpeza das favas era, ao princípio, a mais rápida.
 Os restos, os cachos, mistura de troços e algumas favas, na maioria as mais mal criadas é que levavam muito tempo a separar. Utilizavam-se ancinhos grandes e de dentes largos, também de pau, nalguns destes os dentes eram pregos. Por vezes era necessário escolhe-las à mão.
    
 Outro acto que merece realce, não só pelo seu esforço e arte, era a malhagem do centeio.
 Observei poucas vezes este ritual, mas o pouco vi gravou-se-me na memória.
 Dois homens, de pé ou sentados no chão, frente a frente, alternando as bancadas, no cereal posto a sua frente, com dois malhos. Cada malho era composto de dois paus, quase sempre de eucalipto, ligados numa das extremidades, por duas correias que lhe permitiam uma perfeita articulação, possibilitando, a um dos paus, uma pancada horizontal, em cima do centeio, assim a separando a palha da semente.
Um barril, feito nas olarias do Redondo ou nas de Aldeia de Mato, era o recipiente comum nas eiras e usado para conservar a água mais fresca A palha guardava-se em “almenaras”, cobertas de colmo ou de piorno, de ano para ano, quando abundante chegava a durar para dois.
   A preceder esta finalização, havia outros trabalhos que para ela concorriam.

                     AS SEMENTEIRAS
Ás primeiras águas surgiam os primeiros arranjos da terra, os alqueives cuja preparação não requeria muito cuidado. Não se devia lavrar a terra mole para não se levantarem “leivas”, pequenos blocos de terra muito mole, que depois de endurecida, custavam a desfazer-se e só com o gradeamento se desfazia.
Muitas vezes era preciso esperar pelo “oreamento” da terra.
Depois as sementeiras, onde, normalmente esperava pela sessão da terra, altura em que esta permitia o arranjo final para levar a semente.
Esta também tinha as suas regras ao ser semeada. Primeiro o cauteloso arranjo da terra, depois uma adubação de fundo e em seguida, nas belgas, previamente marcadas, ia-se semeando. Quando o trigo ou outro cereal, por qualquer motivo nascia mal, levava um adubo de cobertura.  

                                                                   AS MONDAS
 Surgiam as mondas, tarefa que consistia em tirar as ervas daninhas no caso do trigo ou cavar e tirar as ervas no caso dos favais
Trabalho executado manualmente, quase sempre por mulheres, de cócoras e de sol a sol. Trabalho penoso praticado no Inverno, ao frio, pisando a geada.
                                                                 AS CEIFAS
 Depois nos meses de Junho e Julho vinham as ceifas, aqui, embora também houvesse mulheres a ceifar, predominavam os homens.
Havia, no trajo, um contraste entre estes e as mulheres.
Estas, com alfinetes, faziam das saias mais compridas, calças e por baixo do chapéu de palha e de abas largas enrolavam a cabeça num grande lenço que lhe cobria a cabeça e o rosto, ficando-lhes apenas os olhos e o nariz, á vista. Os homens ceifavam em mangas de camisa.
Os “plainitos”, usados par a protecção das canelas eram comuns aos homens e ás mulheres. Estes usavam uma protecção braçal  que se chamava “manguito”, formado de lona ou de cabedal. A parte do corpo mais vulnerável no acto de ceifar, são os dedos.
Para sua protecção usava-se canudos feitos de cana, excepto no dedo indicador que se
metia uma dedeira feita de cabedal e para não sair do dedo atava-se ao pulso, cujo objectivo era dar ao dedo uma flexibilidade capaz de permitir fazer, do próprio cereal um atilho, que atava os molhos, que juntos em pequenas medas, chamadas “ relheiros”.

Os homens protegiam as pernas com safões de lona.
O objecto com que se cortava o cereal chamava-se foice, tinha o cabo em madeira e lâmina em aço com pequenas estrias.
Tinham fama as foices de Safara, terra do baixo Alentejo.  
A enorme transpiração que este trabalho provocava, tornava a sede em inimigo para com os ceifeiros, sendo necessário criar-se a figura de um “aguadeiro”, que de cântaro na mão, dava, espaçadamente, água ao rancho ceifeiro.
 Entre os rapazes, devido às eiras, instalou-se o hábito - dormir nas eiras. –
 Confesso que foi uma prática que usei apenas uma vez apenas para experimentar.    
 Com o advento industrial, apareceram as debulhadoras.
  Primeiro movimentadas, á distancia, por um tractor, cuja correia acoplada às duas máquinas fazia trabalhar a debulhadora. Para separar a moinha, invólucro onde se encontrava a semente, era ainda acoplada outra máquina, chamada de “fagulheiro.”    
Estas máquinas também conheceram o seu declínio.
O aparecimento de uma debulhadora, não só com locomoção própria, mas também separando o cereal da palha, atirou aquelas para o desuso.
A evolução do tempo vai matando a tradição, sendo necessário conservar aquilo que destas tarefas nos vai restando, como legados às novas gerações.

Hélder Salgado
15-12-2010.

    




1 comentário:

Anónimo disse...

Interessante, muito interessante, este texto do Hélder.
Sobretudo para que na nossa memória não fiquem apenas estas movas tecnologias agrícolas.
Cumprimentos!