segunda-feira, 5 de junho de 2017

MEMÓRIAS CURTAS

Uma vez por mês o Prof. Vitor Guita traz-nos à memória, recordações do passado

Se um centenário faz admiração a muita gente, dois centenários fazem admiração a muitos mais.
Ainda não tínhamos acabado de alinhavar as Memórias do mês de Abril, onde destacamos os invejáveis 100 anos de Lourenço António Chucha, e já um amigo nosso nos alertava para a existência, no Ciborro, de um outro felizardo que, ainda há pouco, ultrapassara um século de vida. Um caso para deixar qualquer mortal boquiaberto! Os estimados leitores já irão perceber porquê.
Num destes cálidos fins-de-semana de Maio, metemo-nos com o amigo Zé Bexiga, a caminho da Aldeia do Ciborro. 
Marcámos encontro com o Senhor Barrela, o ciborrense que festejou em Março, o seu 100º aniversário.
- Deve estar lá em baixo, no café – afirmavam uns.
Mora lá bem para cima, na Rua das Alfaias – diziam outros.
Nem queríamos acreditar. Cem anos a subirem e a descerem aquelas ruas ingremes, que até a nós desencorajavam?
Fomos ate lá. Num banco sombrio, à beira do passeio, deparámo-nos com um cenário cada vez mais comum por esse Alentejo fora: quatro ou cinco idosos ali sentados, numa conversa supostamente lenta, gestos vagarosos e o olhar fixo no horizonte ou, sabe.se lá noutra coisa mais vaga e distante. Num primeiro relance custamos a distinguir qual era o afortunado centenário. Porem mal pronunciamos o nome Barrela,, um deles levantou-se, foi num pulo fechar a porta da casa e, noutro pulo, estava de novo ao pé de nós. Só visto! Parecia ter vinte anos.
Descemos até ao centro da aldeia. Connosco veio também Manuel Mateus, um dos companheiros habituais do nosso entrevistado e que conta já noventa e três primaveras.
Um de um lado, outro doutro, de repente demos connosco a pensar que nos acompanhavam quase duzentos anos de vida, de saberes, de experiências, de histórias para contar.
Sentamo-nos à mesa de um dos cafés, preparamo-nos para tomar notas e sobretudo para ouvir. Numa voz branda, sem uma única falta de memória, começaram A brotar mil e umas recordações.
António Manuel são os seus dois únicos nomes de baptismo. Na aldeia é geralmente conhecido por Barrela, às vezes por Montinho. Alcunhas que tem a ver com o trabalho e com um dos lugares habitados pelo pai.
Foi no Monte do Olival, próximo da Parreira, a cerca de 2Km do Ciborro, que o pequeno António Manuel viu a luz do dia. 11 de Março é a data do nascimento, embora nos papéis apareça o dia 14. O monte tinha apenas quatro casas: duas pertenciam a Coruche e duas ao Concelho de Montemor. Os do lado de Coruche preferiam pertencer a Montemor. Faziam menos quilómetros para se baptizarem e, mais tarde, para tratarem das burocracias.
Filho de feitor teve que saltar por várias herdades: Monte Chapelar, Barrosa…
Quanto a escola? Nem pensar. A professora da Barrosa ainda o ensinou a fazer o nome e a contar. O suficiente para não se enganar nem o enganare nos negócios. Não havia conta que não conseguisse fazer.
O jovem Barrela começou a trabalhar cedo, aí por volta dos 15 anos. Ainda novo, meteu-se no negócio da cortiça e das carvoarias. Vendeu muitas toneladas de cortiça e carvão. A determinada altura, vieram as searas de milho e tomate, muitas delas na região de Vila Franca.
Mais tarde, foi rendeiro e acompanhou muita mudança que entretanto aconteceu no mundo agrícola. Durante anos, especialmente no inverno, a caça foi uma das suas ocupações favoritas. Também um bom negócio.
Com cerca de 16 anos conheceu a futura mulher, que tinha menos um ano de idade. A moça andava a escolher carvão para ele.
Embora não se considere um namoradeiro, ainda conquistou mais umas quantas raparigas. Não é que a beleza o favorecesse, mas era filho do feitor.
Entretanto veio a tropa. Juntou-se no Quartel de Beja com o montemorense Lourenço A. Chucha. Afinal eram os dois da mesma colheita de 1917.
Cartas de amor, quem as não tem? Quem lia as missivas escritas pela irmã da namorada era um sargento, que cumpria a tarefa a troco de uns enchidos e de umas mantas de toucinho. O soldado Barrela tinha o que queria do superior.
Após 14 anos de namoro, aconteceu o casamento. A cerimónia civil teve lugar na aldeia e a boda no Monte da Barrosa. O cortejo fez-se em carros de parelha, e à mesa juntou-se um moitão de gente para comer borrego, galinhas, patos…
Para animar o baile veio um conhecido acordeonista e a função realizou-se em casa da professora Esmeralda.
Desde o primeiro instante em que vimos o amigo Barrela, sentimos vontade de lhe perguntar a razão de vestir de preto. A viuvez bateu-lhe à porta há 14 anos. Vive sozinho e, segundo nos confidenciou, lá em casa faz trabalho de homem e mulher.
A partir de agora, estimado leitor leia aquilo que está escrito, mas não faça muito do que é relatado. Não queremos ser acusados de irresponsabilidade ou fazer a apologia de más práticas dietéticas. Também não pretendemos fugir à realidade. O Sr. Barrelas é, de facto, uma excepção.
Como já foi referido, é o centenário que se ocupa da casa, nomeadamente da cozinha. A mor das vezes, a comida e temperada com banha e toucinho e quer-se bem condimentada. A água é bebida em pequena quantidade. O tinto também mata a sede. Tudo ou quase tudo ao contrário do que os médicos recomendam. O nosso centenário vai de vez em quando à revisão, quando o Sr. Doutoro chama. Com muita outra gente, faz exames e análises. Está tudo bem! Está tudo bem!
Quanto a deixar fazer exames rectais, já é outra conversa. Quem manda no corpinho é ele.
A determinada altura, o centenário Barrela propôs que continuássemos a desafiar a memória, mas à volta de um petisco.
Estrada abaixo, lá fomos à procura da petisqueira. De bengala cruzada atrás das costas, para endireitar a espinha, o velho ciborrense impressionava pela ligeireza no andar, pela ironia das palavras, pelo orgulho com que falava da filha e da neta biológica. Como dizia o filósofo: Só é velho quem está sempre a pensar nisso”.
Saímos de um primeiro café e logo entramos noutro e noutro… vieram uma apetitosas moelinhas, fatias de lombo de porco frito, umas ameijoas a saber a picante, pão, queijo, azeitonas, jarros de vinho…António Barrela mandava vir e o amigo Manuel Mateus ajudava à missa.
Com aquele jeito tão alentejano, o centenário levava à boca pequenos pedaços de pão e, no bico da navalha, finíssimas lâminas de queijo. Tudo com uma precisão cirúrgica, sem o mínimo tremor.
Começava a fazer-se tarde. Tínhamos de regressar a Montemor. Por vontade do ciborrense ainda subíamos à sua casa, provavelmente para beber mais um copo e ver o galo de estimação que já pesa uns bons quilos e que o bisneto não deixa abater. O galo é dele e do bisavô. Não se mata..
Estas Memórias do mês de Maio deram-nos um gozo muito particular, especialmente pelos paralelismos e pelas diferenças que encontramos entre dois homens centenários. Ambos pertencem ao mundo da ruralidade; tanto um como outro conheceram as mulheres no trabalho no campo; cruzaram-se na tropa…Porem, Lourenço Chucha tinha-nos confessado em Abril, que o segredo da longevidade era uma vida regrada, sem excessos no tabaco e na bebida. Agora, em Maio aparece o amigo Barrela a revelar-nos os seus pecados, em particular o da gula. Vamos lá entender isto?...
Como não temos veia poética, decidimos terminar estas Memórias com um excerto da autoria de Júlio Roberto, um eborense que foi filósofo, humanista, poeta ecologista. Acima de tudo um grande comunicador. Ouvimo-lo em conferência, há bastantes anos, em Évora e aqui em Montemor.
Júlio Roberto, grande defensor dos bons hábitos alimentares, não acharia muita graça às práticas dos hábitos alimentares atrás referidas, mas rejubilaria ao ver um homem de cem anos, com tanta energia e alegria de viver.
Aqui fica pois, o dito excerto, que constitui um verdadeiro hino à velhice, e que por razões de espaço, transcrevemos em Prosa:
                                                                   A Um Velho
“Quando te trato por velho não estou a pensar que a tua alma esteja gasta, nem que a tua juventude tenha morrido.
No teu corpo como no meu, o tempo vai passando, as rugas vão surgindo e seremos como uma árvore que já deu flor e fruto, teve a primavera, há-de vir o outono e o inverno, como na vida de todos os seres.
É bom ser jovem? Pois é.
Mas ser velho é mau? Acho que não.
A juventude não tem tempo, nem idade. Ela está no nosso coração, no nosso interesse pelo mundo que nos rodeia, no nosso amor à vida e aos outros seres, sejam eles os humanos, os animais ou a natureza inteira […]
Está na hora de acabar. Até um dia destes.
Vitor Guita
In: Montemorense. Transcrição permitida pelo Autor




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