Uma vez por mês
o Prof. Vitor Guita traz-nos à memória, recordações do passado
Se um centenário faz
admiração a muita gente, dois centenários fazem admiração a muitos mais.
Ainda não tínhamos acabado de
alinhavar as Memórias do mês de Abril, onde destacamos os invejáveis 100 anos
de Lourenço António Chucha, e já um amigo nosso nos alertava para a existência,
no Ciborro, de um outro felizardo que, ainda há pouco, ultrapassara um século
de vida. Um caso para deixar qualquer mortal boquiaberto! Os estimados leitores
já irão perceber porquê.
Num destes cálidos fins-de-semana
de Maio, metemo-nos com o amigo Zé Bexiga, a caminho da Aldeia do Ciborro.
Marcámos encontro com o Senhor Barrela, o ciborrense que festejou em Março, o
seu 100º aniversário.
- Deve estar lá em baixo, no café – afirmavam uns.
Mora lá bem para cima, na Rua das Alfaias – diziam outros.
Nem queríamos acreditar. Cem
anos a subirem e a descerem aquelas ruas ingremes, que até a nós
desencorajavam?
Fomos ate lá. Num banco
sombrio, à beira do passeio, deparámo-nos com um cenário cada vez mais comum
por esse Alentejo fora: quatro ou cinco idosos ali sentados, numa conversa
supostamente lenta, gestos vagarosos e o olhar fixo no horizonte ou, sabe.se lá
noutra coisa mais vaga e distante. Num primeiro relance custamos a distinguir
qual era o afortunado centenário. Porem mal pronunciamos o nome Barrela,, um
deles levantou-se, foi num pulo fechar a porta da casa e, noutro pulo, estava
de novo ao pé de nós. Só visto! Parecia ter vinte anos.
Descemos até ao centro da
aldeia. Connosco veio também Manuel Mateus, um dos companheiros habituais do
nosso entrevistado e que conta já noventa e três primaveras.
Um de um lado, outro doutro,
de repente demos connosco a pensar que nos acompanhavam quase duzentos anos de
vida, de saberes, de experiências, de histórias para contar.
Sentamo-nos à mesa de um dos
cafés, preparamo-nos para tomar notas e sobretudo para ouvir. Numa voz branda,
sem uma única falta de memória, começaram A brotar mil e umas recordações.
António Manuel são os seus
dois únicos nomes de baptismo. Na aldeia é geralmente conhecido por Barrela, às
vezes por Montinho. Alcunhas que tem a ver com o trabalho e com um dos lugares
habitados pelo pai.
Foi no Monte do Olival,
próximo da Parreira, a cerca de 2Km do Ciborro, que o pequeno António Manuel
viu a luz do dia. 11 de Março é a data do nascimento, embora nos papéis apareça
o dia 14. O monte tinha apenas quatro casas: duas pertenciam a Coruche e duas
ao Concelho de Montemor. Os do lado de Coruche preferiam pertencer a Montemor.
Faziam menos quilómetros para se baptizarem e, mais tarde, para tratarem das
burocracias.
Filho
de feitor teve que saltar por várias herdades: Monte Chapelar, Barrosa…
Quanto
a escola? Nem pensar. A professora da Barrosa ainda o ensinou a fazer o nome e
a contar. O suficiente para não se enganar nem o enganare nos negócios. Não
havia conta que não conseguisse fazer.
O
jovem Barrela começou a trabalhar cedo, aí por volta dos 15 anos. Ainda novo,
meteu-se no negócio da cortiça e das carvoarias. Vendeu muitas toneladas de
cortiça e carvão. A determinada altura, vieram as searas de milho e tomate,
muitas delas na região de Vila Franca.
Mais
tarde, foi rendeiro e acompanhou muita mudança que entretanto aconteceu no
mundo agrícola. Durante anos, especialmente no inverno, a caça foi uma das suas
ocupações favoritas. Também um bom negócio.
Com
cerca de 16 anos conheceu a futura mulher, que tinha menos um ano de idade. A
moça andava a escolher carvão para ele.
Embora
não se considere um namoradeiro, ainda conquistou mais umas quantas raparigas.
Não é que a beleza o favorecesse, mas era filho do feitor.
Entretanto
veio a tropa. Juntou-se no Quartel de Beja com o montemorense Lourenço A.
Chucha. Afinal eram os dois da mesma colheita de 1917.
Cartas
de amor, quem as não tem? Quem lia as missivas escritas pela irmã da namorada
era um sargento, que cumpria a tarefa a troco de uns enchidos e de umas mantas
de toucinho. O soldado Barrela tinha o que queria do superior.
Após
14 anos de namoro, aconteceu o casamento. A cerimónia civil teve lugar na
aldeia e a boda no Monte da Barrosa. O cortejo fez-se em carros de parelha, e à
mesa juntou-se um moitão de gente para comer borrego, galinhas, patos…
Para
animar o baile veio um conhecido acordeonista e a função realizou-se em casa da
professora Esmeralda.
Desde
o primeiro instante em que vimos o amigo Barrela, sentimos vontade de lhe
perguntar a razão de vestir de preto. A viuvez bateu-lhe à porta há 14 anos.
Vive sozinho e, segundo nos confidenciou, lá em casa faz trabalho de homem e
mulher.
A
partir de agora, estimado leitor leia aquilo que está escrito, mas não faça
muito do que é relatado. Não queremos ser acusados de irresponsabilidade ou
fazer a apologia de más práticas dietéticas. Também não pretendemos fugir à
realidade. O Sr. Barrelas é, de facto, uma excepção.
Como
já foi referido, é o centenário que se ocupa da casa, nomeadamente da cozinha.
A mor das vezes, a comida e temperada com banha e toucinho e quer-se bem
condimentada. A água é bebida em pequena quantidade. O tinto também mata a
sede. Tudo ou quase tudo ao contrário do que os médicos recomendam. O nosso
centenário vai de vez em quando à revisão, quando o Sr. Doutoro chama. Com
muita outra gente, faz exames e análises. Está
tudo bem! Está tudo bem!
Quanto
a deixar fazer exames rectais, já é outra conversa. Quem manda no corpinho é
ele.
A
determinada altura, o centenário Barrela propôs que continuássemos a desafiar a
memória, mas à volta de um petisco.
Estrada
abaixo, lá fomos à procura da petisqueira. De bengala cruzada atrás das costas,
para endireitar a espinha, o velho ciborrense impressionava pela ligeireza no
andar, pela ironia das palavras, pelo orgulho com que falava da filha e da neta
biológica. Como dizia o filósofo: Só é
velho quem está sempre a pensar nisso”.
Saímos
de um primeiro café e logo entramos noutro e noutro… vieram uma apetitosas
moelinhas, fatias de lombo de porco frito, umas ameijoas a saber a picante, pão,
queijo, azeitonas, jarros de vinho…António Barrela mandava vir e o amigo Manuel
Mateus ajudava à missa.
Com
aquele jeito tão alentejano, o centenário levava à boca pequenos pedaços de pão
e, no bico da navalha, finíssimas lâminas de queijo. Tudo com uma precisão cirúrgica,
sem o mínimo tremor.
Começava
a fazer-se tarde. Tínhamos de regressar a Montemor. Por vontade do ciborrense ainda
subíamos à sua casa, provavelmente para beber mais um copo e ver o galo de
estimação que já pesa uns bons quilos e que o bisneto não deixa abater. O galo
é dele e do bisavô. Não se mata..
Estas
Memórias do mês de Maio deram-nos um gozo muito particular, especialmente pelos
paralelismos e pelas diferenças que encontramos entre dois homens centenários.
Ambos pertencem ao mundo da ruralidade; tanto um como outro conheceram as
mulheres no trabalho no campo; cruzaram-se na tropa…Porem, Lourenço Chucha
tinha-nos confessado em Abril, que o segredo da longevidade era uma vida
regrada, sem excessos no tabaco e na bebida. Agora, em Maio aparece o amigo
Barrela a revelar-nos os seus pecados, em particular o da gula. Vamos lá
entender isto?...
Como
não temos veia poética, decidimos terminar estas Memórias com um excerto da
autoria de Júlio Roberto, um eborense que foi filósofo, humanista, poeta ecologista.
Acima de tudo um grande comunicador. Ouvimo-lo em conferência, há bastantes
anos, em Évora e aqui em Montemor.
Júlio
Roberto, grande defensor dos bons hábitos alimentares, não acharia muita graça às
práticas dos hábitos alimentares atrás referidas, mas rejubilaria ao ver um
homem de cem anos, com tanta energia e alegria de viver.
Aqui
fica pois, o dito excerto, que constitui um verdadeiro hino à velhice, e que
por razões de espaço, transcrevemos em Prosa:
A
Um Velho
“Quando te trato por velho não estou a pensar que a
tua alma esteja gasta, nem que a tua juventude tenha morrido.
No teu corpo como no meu, o tempo vai passando, as rugas
vão surgindo e seremos como uma árvore que já deu flor e fruto, teve a
primavera, há-de vir o outono e o inverno, como na vida de todos os seres.
É bom ser jovem? Pois é.
Mas ser velho é mau? Acho que não.
A juventude não tem tempo, nem idade. Ela está no
nosso coração, no nosso interesse pelo mundo que nos rodeia, no nosso amor à
vida e aos outros seres, sejam eles os humanos, os animais ou a natureza inteira
[…]
Está
na hora de acabar. Até um dia destes.
Vitor Guita
In: Montemorense. Transcrição permitida pelo Autor
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