quarta-feira, 29 de março de 2017

MEMÓRIAS DO LUÍS DE MATOS

         Pequena homenagem ao meu primo Alberto
Éramos praticamente da mesma idade. Ele com menos um ano do que eu. Nos nossos tempos de meninos brincávamos e fazíamos as nossas diabrices, sempre juntos. Desde esse tempo que nasceu uma cumplicidade para o resto vida. Fazíamos os nossos próprios brinquedos. Não podíamos passar um sem o outro. Naquela época, não havia brinquedos. Eram as crianças que tinham que os fazer, o que nos dava gozo. Fazíamos as nossas próprias espingardas de cana para brincar às guerras. Saltávamos as paredes das tapadas e quintais para nos escondermos atrás das mesmas, para daí atingirmos o nosso amigo ou imaginário inimigo. “Estás preso”, gritávamos e aparecíamos com ar triunfante.
Quando chegava o Natal, lá íamos nós ao musgo para o Presépio da Escola Primária. O musgo era retirado dos troncos das centenárias oliveiras do cerrado ou das paredes de xisto. Como conhecíamos muito bem o terreno que pisávamos, já sabíamos onde poderíamos ir buscar o melhor musgo. Não só porque nos dava um grande prazer mas porque queríamos apresentar o melhor que havia. Penso que queríamos que a nossa participação no Presépio fosse ao mais alto nível. Naturalmente, quem sabe se era até para contentarmos um pouco o professor Cláudio. Nessa época havia muito musgo, pois havia muita humidade. Havia anos que chovia todo o Inverno. As invernias eram grandes. Chovia meses seguidos. Lembro-me bem que chovia ininterruptamente entre os meses de Novembro e Fevereiro. Os homens não podiam trabalhar no campo para ganhar o sustento da família. Hoje, devido à incúria do homem e ao progresso, está a provocar ao aquecimento global do planeta, é o que se vê.
Vou empregar um termo muito usual.
Um mouro de trabalho. Este termo assenta perfeitamente no meu primo Alberto. Trabalhou dia e noite, como se costuma dizer. A maior parte das vezes sempre acompanhado pela sua mulher, a Joana. De madrugada, ainda mal se via, lá estavam eles a ordenhar as primeiras quinze vacas leiteiras que entretanto tinham mandado vir da Holanda. Ao princípio as vacas eram ordenhadas à mão lá na horta, e tinham que ir entregar o leite ao depósito nas Hortinhas, na sua carrinha Mazda vermelha que possuía. Mais tarde, reforçaram a dose com mais cinquenta que importaram do país das tulipas e mudaram-se para o Monte Outeiro, também de sua propriedade, porque lá na Horta já não havia espaço. Adquiriram um moderno equipamento de ordenha mecânica. Mas os trabalhos nunca acabavam, antes pelo contrário. A vida era muito dura. O Alberto era novo, tinha força, tinha saúde. Acabada a ordenha, de uma maneira geral tomava o pequeno almoço, punha o tractor a trabalhar e lá ia ele lavrar as suas terras ou de alguém que lhe pedia que fosse lavrar ou semear uma courela ou olival.
Recordo-me no início de ter as vacas, fui passar um ou dois dias com ele lá ao monte, Outeiro, onde residiam. Sempre acompanhei de perto como ele, a Joana e os filhos (quando não estavam a estudar) trabalhavam na sua actividade agrícola.
Num desse dias, estava a família reunida à hora do jantar. Vai um café e um Wisky e mais outro. A conversa estava animada.
Bem, amanhã tenho que ir para Évora, disse-lhe.
Já? Ainda só cá estás há dois dias!
Sim, que a minha vida não é a tua, desabafei.
Não. Amanhã vás ajudar-me a carregar fardos, que os gaiatos estão na escola, no outro dia vamos apanhar peixe para fazermos uma caldeta e depois já te podes ir embora.
Nem pensar. Carregar fardos? Então não vez que não tenho força para isso, compadre?
Diz-me ele:
Pronto está bem, com um ar um pouco triste mas sempre com um sorriso. Mas tens que me levar o tractor para Évora.
Olha! Então eu não digo que o rapaz não está bom da cabeça? Já não bebes mais. À não bebes não.
Sim. Levas o tractor à Lagril para fazerem a revisão.
Era Verão, mas as manhãs eram frescas.
Disse-lhe:
Tu estás maluco. Então não sabes que nunca conduzi um tractor na minha vida? Já viste que tenho que estar às nove horas no trabalho, levo duas horas até Évora, deixar o tractor na oficina, ir a pé para casa, tomar banho e estar a horas no trabalho? A que horas é que tenho de partir aqui do monte?
Tudo isto era verdade, dizia-me ele. E continuou.
Então não tens a carta de pesados?
Sim, mas nunca conduzi um tractor, não tenho prática. E voltou à carga.
Deixa-te de brincadeira. Aquilo não tem nada que saber. Empresto-te o meu blusão para não teres frio. Olha, levas também um boné para não teres frio à careca. Vás, deixas o tractor na oficina que eu depois combino para o ir buscar.
Bom, a muito custo, lá me convenceu.
Mas, por outro lado, eu também queria ter o prazer de fazer uma viagem de tractor. Queria saber como era conduzir aquele pequeno monstro. Pensei. Então se vou para Évora, que diabo, porque carga d’agua não hei-de fazer este pequeno jeito ao meu primo? Para mais é um gajo que até gosto como se fosse o irmão, que nunca tive? Acertámos então que levaria o tractor para Évora. Fomos deitar. Por volta das cinco da manhã enfiei os sapatos castanhos que tinha levado para a viagem, calça vincada, camisa de manga curta, blusão bem forte para me proteger do frio, boné da Caixa Agrícola e assim iniciei a viagem numa linda figura. Está-se mesmo a ver pelas minhas vestes. Despedimo-nos. Subi para o tractor pronto a receber a última lição de condução e tratei de me pôr a caminho em direcção Hortinhas, Orvalhos, Foros da Fonte Seca, Redondo e finalmente Évora. Em toda a viagem raspei um frio desgraçado, apesar do blusão que me havia emprestado ter dado muito jeito, mas não foi o suficiente. Foi uma viagem emocionante e única. Uma boa experiência, também. Porque é que ele havia de perder tempo, quando tinha lá tanto trabalho no monte?
Entretanto, passaram-se cerca de vinte anos. Nós nunca pensamos na doença, mas quando ela vem a sério, não há nada a fazer. O Alberto era o irmão que eu gostaria de ter tido.
Não houve cura para o teu mal. Estejas onde estiveres, os herdeiros do teu trabalho, manterão o fruto na oliveira e a bolota na azinheira. Os teus campos continuarão a produzir cereal e o teu rebanho continuará a ser alimentado e a reproduzir-se.
Algum tempo antes de lhe aparecer aquela maldita doença, ainda tínhamos brincadeiras com se fôssemos crianças. Não daquelas de brincar às espingardas mas de outra já mais próprias para a nossa idade, ou pensávamos nós que o eram. As nossas mulheres, filhos e outros familiares que por ventura estivessem presentes nos inúmeros convívios familiares, achavam muita graça. Era uma amizade genuína e diria até, legítima de uma vida. Sempre acompanhei o seu sofrimento. Mas, já na fase final da sua doença, quando lhe pegava na mão e ele me a apertava, ao mesmo tempo que me fazia carícias na mão, como a querer falar sem poder e eu, beijando-o na face ou na cabeça, já sem cabelo como eu, devido à idade e as lágrimas a caírem-me ininterruptamente, tal como neste momento, que tenho dificuldade em ver o teclado do computador. Era um grande sofrimento. Sem o querer perturbar, mas dizem que ele se devia aperceber. Ninguém podia imaginar o sofrimento e a dor que me ia na alma e que me vai marcar para o resto dos meus dias. Nunca poderei esquecer aqueles tristes momentos. Alguns poderão dizer: Mas que gajo de manteiga. A esses, simplesmente, digo: Estou-me nas tintas para vocês. É o que sinto, e pronto. Ao escrever estas simples palavras, são a melhor homenagem, sentida, que posso fazer ao meu querido primo Alberto, meu irmão.
Finalmente, para a sua esposa. Obrigado por tudo, Joana. Esposa e Mãe. Grande Mulher.
Bem haja!

Luís de Matos

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