Pequena
homenagem ao meu primo Alberto
Éramos praticamente da mesma
idade. Ele com menos um ano do que eu. Nos nossos tempos de meninos brincávamos
e fazíamos as nossas diabrices, sempre juntos. Desde esse tempo que nasceu uma
cumplicidade para o resto vida. Fazíamos os nossos próprios brinquedos. Não
podíamos passar um sem o outro. Naquela época, não havia brinquedos. Eram as
crianças que tinham que os fazer, o que nos dava gozo. Fazíamos as nossas
próprias espingardas de cana para brincar às guerras. Saltávamos as paredes das
tapadas e quintais para nos escondermos atrás das mesmas, para daí atingirmos o
nosso amigo ou imaginário inimigo. “Estás preso”, gritávamos e aparecíamos com
ar triunfante.
Quando chegava o Natal, lá
íamos nós ao musgo para o Presépio da Escola Primária. O musgo era retirado dos
troncos das centenárias oliveiras do cerrado ou das paredes de xisto. Como
conhecíamos muito bem o terreno que pisávamos, já sabíamos onde poderíamos ir
buscar o melhor musgo. Não só porque nos dava um grande prazer mas porque
queríamos apresentar o melhor que havia. Penso que queríamos que a nossa
participação no Presépio fosse ao mais alto nível. Naturalmente, quem sabe se
era até para contentarmos um pouco o professor Cláudio. Nessa época havia muito
musgo, pois havia muita humidade. Havia anos que chovia todo o Inverno. As
invernias eram grandes. Chovia meses seguidos. Lembro-me bem que chovia
ininterruptamente entre os meses de Novembro e Fevereiro. Os homens não podiam
trabalhar no campo para ganhar o sustento da família. Hoje, devido à incúria do
homem e ao progresso, está a provocar ao aquecimento global do planeta, é o que
se vê.
Vou empregar um termo muito
usual.
Um mouro de trabalho. Este
termo assenta perfeitamente no meu primo Alberto. Trabalhou dia e noite, como
se costuma dizer. A maior parte das vezes sempre acompanhado pela sua mulher, a
Joana. De madrugada, ainda mal se via, lá estavam eles a ordenhar as primeiras
quinze vacas leiteiras que entretanto tinham mandado vir da Holanda. Ao princípio
as vacas eram ordenhadas à mão lá na horta, e tinham que ir entregar o leite ao
depósito nas Hortinhas, na sua carrinha Mazda vermelha que possuía. Mais tarde,
reforçaram a dose com mais cinquenta que importaram do país das tulipas e
mudaram-se para o Monte Outeiro, também de sua propriedade, porque lá na Horta
já não havia espaço. Adquiriram um moderno equipamento de ordenha mecânica. Mas
os trabalhos nunca acabavam, antes pelo contrário. A vida era muito dura. O
Alberto era novo, tinha força, tinha saúde. Acabada a ordenha, de uma maneira
geral tomava o pequeno almoço, punha o tractor a trabalhar e lá ia ele lavrar
as suas terras ou de alguém que lhe pedia que fosse lavrar ou semear uma
courela ou olival.
Recordo-me no início de ter
as vacas, fui passar um ou dois dias com ele lá ao monte, Outeiro, onde
residiam. Sempre acompanhei de perto como ele, a Joana e os filhos (quando não
estavam a estudar) trabalhavam na sua actividade agrícola.
Num desse dias, estava a
família reunida à hora do jantar. Vai um café e um Wisky e mais outro. A
conversa estava animada.
Bem, amanhã tenho que ir para
Évora, disse-lhe.
Já? Ainda só cá estás há dois
dias!
Sim, que a minha vida não é a
tua, desabafei.
Não. Amanhã vás ajudar-me a
carregar fardos, que os gaiatos estão na escola, no outro dia vamos apanhar
peixe para fazermos uma caldeta e depois já te podes ir embora.
Nem pensar. Carregar fardos?
Então não vez que não tenho força para isso, compadre?
Diz-me ele:
Pronto está bem, com um ar um
pouco triste mas sempre com um sorriso. Mas tens que me levar o tractor para
Évora.
Olha! Então eu não digo que o
rapaz não está bom da cabeça? Já não bebes mais. À não bebes não.
Sim. Levas o tractor à Lagril
para fazerem a revisão.
Era Verão, mas as manhãs eram
frescas.
Disse-lhe:
Tu estás maluco. Então não
sabes que nunca conduzi um tractor na minha vida? Já viste que tenho que estar
às nove horas no trabalho, levo duas horas até Évora, deixar o tractor na
oficina, ir a pé para casa, tomar banho e estar a horas no trabalho? A que horas
é que tenho de partir aqui do monte?
Tudo isto era verdade,
dizia-me ele. E continuou.
Então não tens a carta de
pesados?
Sim, mas nunca conduzi um
tractor, não tenho prática. E voltou à carga.
Deixa-te de brincadeira.
Aquilo não tem nada que saber. Empresto-te o meu blusão para não teres frio.
Olha, levas também um boné para não teres frio à careca. Vás, deixas o tractor
na oficina que eu depois combino para o ir buscar.
Bom, a muito custo, lá me
convenceu.
Mas, por outro lado, eu
também queria ter o prazer de fazer uma viagem de tractor. Queria saber como
era conduzir aquele pequeno monstro. Pensei. Então se vou para Évora, que
diabo, porque carga d’agua não hei-de fazer este pequeno jeito ao meu primo? Para
mais é um gajo que até gosto como se fosse o irmão, que nunca tive? Acertámos
então que levaria o tractor para Évora. Fomos deitar. Por volta das cinco da
manhã enfiei os sapatos castanhos que tinha levado para a viagem, calça
vincada, camisa de manga curta, blusão bem forte para me proteger do frio, boné
da Caixa Agrícola e assim iniciei a viagem numa linda figura. Está-se mesmo a
ver pelas minhas vestes. Despedimo-nos. Subi para o tractor pronto a receber a
última lição de condução e tratei de me pôr a caminho em direcção Hortinhas,
Orvalhos, Foros da Fonte Seca, Redondo e finalmente Évora. Em toda a viagem
raspei um frio desgraçado, apesar do blusão que me havia emprestado ter dado
muito jeito, mas não foi o suficiente. Foi uma viagem emocionante e única. Uma
boa experiência, também. Porque é que ele havia de perder tempo, quando tinha
lá tanto trabalho no monte?
Entretanto, passaram-se cerca
de vinte anos. Nós nunca pensamos na doença, mas quando ela vem a sério, não há
nada a fazer. O Alberto era o irmão que eu gostaria de ter tido.
Não houve cura para o teu
mal. Estejas onde estiveres, os herdeiros do teu trabalho, manterão o fruto na
oliveira e a bolota na azinheira. Os teus campos continuarão a produzir cereal
e o teu rebanho continuará a ser alimentado e a reproduzir-se.
Algum tempo antes de lhe
aparecer aquela maldita doença, ainda tínhamos brincadeiras com se fôssemos
crianças. Não daquelas de brincar às espingardas mas de outra já mais próprias
para a nossa idade, ou pensávamos nós que o eram. As nossas mulheres, filhos e
outros familiares que por ventura estivessem presentes nos inúmeros convívios
familiares, achavam muita graça. Era uma amizade genuína e diria até, legítima
de uma vida. Sempre acompanhei o seu sofrimento. Mas, já na fase final da sua
doença, quando lhe pegava na mão e ele me a apertava, ao mesmo tempo que me
fazia carícias na mão, como a querer falar sem poder e eu, beijando-o na face
ou na cabeça, já sem cabelo como eu, devido à idade e as lágrimas a caírem-me
ininterruptamente, tal como neste momento, que tenho dificuldade em ver o
teclado do computador. Era um grande sofrimento. Sem o querer perturbar, mas
dizem que ele se devia aperceber. Ninguém podia imaginar o sofrimento e a dor
que me ia na alma e que me vai marcar para o resto dos meus dias. Nunca poderei
esquecer aqueles tristes momentos. Alguns poderão dizer: Mas que gajo de
manteiga. A esses, simplesmente, digo: Estou-me nas tintas para vocês. É o que
sinto, e pronto. Ao escrever estas simples palavras, são a melhor homenagem,
sentida, que posso fazer ao meu querido primo Alberto, meu irmão.
Finalmente, para a sua
esposa. Obrigado por tudo, Joana. Esposa e Mãe. Grande Mulher.
Bem
haja!
Luís de Matos
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