segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

MEMÓRIAS CURTAS

Uma vez por mês o Prof, Vitor Guita traz-nos à memória,                                             recordações do passado

O Natal, a Passagem de Ano e os Reis já lá vão.
Esta quadra festiva traz-nos à lembrança uma infinidade de acontecimentos passados, de experiências vividas, de personagens que marcaram a nossa infância e juventude.
Algumas dessas recordações são meramente pessoais; outras já fazem parte da memória colectiva.
Para muitos montemorenses, este ciclo de festividades só terminava no fim de Janeiro, mais exactamente no dia de aniversário do Circulo Montemorense, vulgarmente conhecido por 29 da Pedrista.
Para os que tinham possibilidades, o Natal e o baile do 29 eram pretextos para irem ao alfaiate mandar fazer fato novo.
Lá em casa tínhamos a sorte de ter uma mãe que era mestra a cortar e a coser, que nos fundilhava as calças, levantava e baixava bainhas ou cerzia à mão rasgões aparentemente irrecuperáveis Esta inclinação para o corte e costura veio-lhe, em grande parte do avô Casimiro Carapinha, que tinha uma alfaiataria em Évora, na Rua de Avis.
A loja do Carapinha era frequentada por uma parte da elite eborense, sendo que muitos dos clientes eram fervorosos defensores dos ideais republicanos.
Mas não queremos desviar-nos do objectivo principal destas nossas Memórias de Janeiro.
Decidimos, hoje, falar de um outro alfaiate que deixou marca em Montemor: Referimo-nos a Joaquim Marques, grande profissional na sua arte e um homem multifacetado. Muitos dos nossos leitores lembrar-se-ão da distinta figura do alfaiate da Rua Nova, cavaqueando com os amigos num dos passeios soalheiros do Largo Almansor ou fazendo a sua habitual “flanerie” ao longo da Avenida Maginot.
Para esquissar-lhe o retrato, basta imaginar um bigode farto, uma elegante bengala e a originalíssima capa, cujo modelo oscilava entre o capote alentejano e um estilo muito “british”. Quanto a temperamento é que o alfaiate não tinha nada de fleuma britânica. A imagem dominante que guardamos de Joaquim Marques é a de um homem de personalidade forte, de voz acalorada, que gostava de fazer ouvir os seus pontos de vista.
Conhecemos-lhe também o seu lado muito afável.
A partir dos nossos quinze anos, altura em que começamos a trabalhar e a olhar de forma mais adulta para as miúdas, acalentamos o sonho de um dia poder envergar um fato talhado pelo alfaiate do alto da Rua Nova. Nem que fosse só um casaco! Durante semanas andamos a namorar uma peça de tweed cor de tijolo, sedutoramente exposta na montra. Aliás a montra da alfaiataria era ponto obrigatório de paragem para muitas e muitos montemorenses Os mais vaidosos não resistiam a mirar-se na superfície envidraçada, mas era o recheio da montra, o requinte da decoração, que mais impressionava os sentidos dos transeuntes: fotografias de grande qualidade, a famosíssima Adam e outras revistas da moda, cachimbos e relógios de bolso que eram autênticas relíquias. Houve um tempo em que a montra serviu de galeria para os quadros do pintor Moraes, um artista que viveu durante algum tempo em Montemor. A par destes extraordinários motivos de interesse, a ampla vitrine exibia lindíssimas peças de tecido: o famoso Príncipe de Gales, os Pied-de-poule, o Tropical Inglês e uma variedade de padrões espigados en tons de castanho, cinza ou azul. Uma autêntica perdição!
Segundo apurámos, Joaquim Marques era cliente da Nobilis, considerada a melhor ou uma das melhores marcas de fazenda para homens. A fábrica situava-se em Portalegre e o número de metros de cada padrão era limitado, o que garantia aos clientes uma certa exclusividade.
Muitos destes detalhes foram-nos revelados pelo Quim Marques, filho mais velho do nosso biografado. Estivemos há dias em sua casa, numa animada e por vezes emocionante conversa, sentados ao calor da lareira e reconfortados com um vinho tinto de excelente qualidade. Desejávamos saber mais acerca do que foi o percurso de vida do alfaiate.
Joaquim Marques nasceu em Famalicão da Serra, uma pequena povoação a 18 Km da cidade da Guarda. Como acontecia com grande parte da miudagem da região Beirã, o pequeno Marques aprendeu a ajudar à Missa em latim e estudou música. Não havia por ali aldeia que não tivesse a sua banda filarmónica.
Provavelmente por ser o menos robusto dos irmãos, escapou à vida do campo, tendo partido, aos dezasseis anos, para casa de uns primos que viviam em Lisboa. Segundo entendemos os familiares trabalhavam para a Câmara de Lisboa e tinham por hábito visitar exposições, assistir a espectáculos, o que foi despertando o petite cultura do jovem beirão.
Surgiu entretanto a oportunidade de aprender o ofício de alfaiate. Joaquim Marques rodou por algumas das melhores alfaiatarias de Lisboa. Uma delas, especializada em fardas militares, ficava ali para os lados da Rua do Ouro, muito próximo da agência Havas.
Decorria o ano de 1938 quando J Marques veio para Montemor, trazendo na bagagem o diploma profissional!
O dono da alfaiataria Lisbonense, situada no topo da Rua Nova, ficara sem alfaiate e foi-lhe recomendado alguém de grande qualidade, que aprendera o ofício na capital.
Joaquim Marques veio a título experimental. O provisório tornou-se definitivo e a experiência durou uma vida. Montemor viria a ser a terra onde trabalhou, casou, teve filhos e arranjou amigos. De empregado J. Marques passou a patrão, tendo a alfaiataria passado para o nº 102 da Rua Nova, no espaço contiguo á relojoaria/ourivesaria do sogro, António Maria Gonçalves.
Durante anos, ali esteve, tirando medidas, riscando com giz, cortando com a pesada tesoura as peças que entregaria às costureiras. 
Por detrás de um grande alfaiate, estão sempre grandes costureiras! Depois vinham as provas, o passar a ferro, os últimos retoques. Das suas mãos saíram fraques, paletós, jaquetões, fardas militares, casacas de cavaleiro e tantas outras indumentárias. Um das imagens de marca eram as famosas capas, fruto da criatividade do alfaiate. J. Marques chegou a fazer casacas para as mais altas figuras do Estado e outra gente graúda.
A alfaiataria da Rua Nova era lugar de tertúlia. Juntavam-se ali juízes, delegados do Ministério Publico, veterinários, pessoal bancário, lavradores, outros montemorenses, muitos deles benfiquistas. Falava-se de tudo um pouco, incluindo a situação política. Apesar de pertencerem a campos opostos, todos se toleravam. No tempo da Guerra, por exemplo, chegaram a fazer apostas sobre o eventual vencedor do grande conflito mundial. Uns, mais germanófilos, torciam pelo triunfo dos alemães. Outros, mais anglófilos, apostavam na vitória dos Aliados.
O Marques alfaiate era um homem multifacetado. A fotografia era um dos seus passatempos predilectos. Com a sua Leica, foi recolhendo imagens de Montemor e das suas gentes. Um tesouro imenso que, estamos certos disso, está em boas mãos. Joaquim Marques não se limitava a captar imagens. No interior da loja, junto ao gabinete de provas, existia uma camara escura, onde ele próprio revelava e ampliava as belas fotos. São assim os verdadeiros fotógrafos.
Também a musica e o teatro fizeram parte dos interesses culturais do alfaiate, sobretudo no Circulo Montemorense, onde teve uma participação muito activa Integrou a orquestra da Pedrista, ora como cantor, ora como contrabaixista. No teatro entrou em diversas representações, tendo ficado famosa a sua participação na revista o Cascabulho, onde interpretava, com a sua pronúncia do Norte, o papel de cavaleiro tauromáquico.
É com uma passagem dessa revista que nos despedimos, estimado leitor.
Sou o rei das cortesias
Na praça canto de galo
Mas às vezes o bicho vem danado
E passa p´ró outro lado
Por debaixo do cavalo

Até breve
Vitor Guita – Janeiro 2017
In “O Montemorense” – transcrição autorizada pelo Autor



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