Terça, 13 Dezembro 2016
Bertolucci, um dos monstros do cinema
mundial, esteve debaixo de fogo recentemente, na opinião pública que fala agora
mais alto do que nunca, por ter revelado com alguns equívocos como foi filmada
a famosa cena de sexo entre Maria Schneider e Marlon Brando em «Último Tango em
Paris». Um clássico da Sétima Arte que, já agora, aconselho.
Maria Schneider teve,
como tantas outras estrelas famosas e alguns cidadãos comuns, uma vida
emocionalmente instável, já fora dos palcos ou do ecrã, e que em 2007 parece
ter-se justificado com esta história de não consentimento prévio de todos os
detalhes de rodagem de uma cena de sexo. E a polémica - que no relato de
Bertolucci diz ter sido uma intenção de espontaneidade ao não dar previamente a
conhecer a Schneider o uso, chamemos-lhe assim, criativo de uma barra de
manteiga nessa dita cena de sexo - cresceu para uma cena de autêntica violação
grupal em que esta Maria virou cordeiro sacrificial de figuras maiores da
Sétima Arte. A mim, a história destas três pessoas e os seus factos,
verdadeiros ou recriados, interessam-me tanto como a vida sexual do próximo, o
que quer dizer zero. O que me aguçou a curiosidade foi a manteiga enquanto
metáfora, e perceber que o que tanto parece ser altruísmo, neste caso em prol
da Arte e dos seus praticantes, pode, por vezes, transformar-se em,
chamemos-lhe isso mesmo, sacanice nos vários possíveis significados que tem o
termo. Procurei então referências a este besunto, ainda que apressadamente, e
encontrei uma historieta edificante que partilho convosco.
“Conta-se que certa vez duas moscas
caíram num copo de leite. A primeira, forte e valente, nadou até à borda do
copo, mas como a superfície era muito lisa e ela tinha as asas molhadas, não
conseguiu sair. Acreditando que não havia saída, desanimou, parou de nadar e
afundou. A outra, apesar de não ser tão forte, era tenaz. Continuou a
debater-se por tanto tempo que, aos poucos, o leite ao seu redor, com toda
aquela agitação, se transformou num pequeno nódulo de manteiga. A mosca
conseguiu, com muito esforço, subir e dali levantar vôo para um lugar seguro.”
Se a história parasse aqui, esta seria seguramente um elogio à persistência que
leva ao sucesso. No entanto, assim não é. “Tempos depois a mosca tenaz, por
descuido ou acidente, caiu novamente num copo. Com a experiência adquirida,
começou a debater-se na esperança de que, no devido tempo, se salvaria. Outra
mosca, ao passar por ali e vendo a aflição da companheira, pousou na beira do
copo e gritou: "Há uma palhinha ali, nada até lá e sobe". A
mosca tenaz não lhe deu ouvidos, continuou a debater-se até que, exausta, se
afundou no copo cheio... de água.”
Ficaríamos muito mais dos que os
aproximadamente três minutos de uma crónica a discutir as diferentes lições a
retirar da historieta. Poderíamos ainda gastar muito mais tempo a substituir as
moscas e os copos por pessoas e situações (auto)biografáveis. E podíamos,
talvez, voltar a Maria Schneider, Marlon Brando e o “deus” Bertolucci, não sem
algum picante-vintage completamente enevoado por uma atenta contemporaneidade à
violência doméstica como crime público. Ou até, esticando mais a conversa,
sobre a possível e discutível conflitualidade entre a estética e a ética, e o
quanto para apreciadores das Artes é preciso conhecer bem as suas “gramáticas”.
O que eu vou lendo nesta historieta é
que circunstâncias diferentes pedem reacções e atitudes diferentes, o que não
contribui para uma suposta coerência primária, mas pode constituir-se um
excelente quebra-cabeças de dois sentidos: para quem tem as atitudes e para
quem, usando as celulazinhas cinzentas, as saiba interpretar. Dá trabalho, mas
também dá muito mais gozo.
Até para a semana.
Cláudia Sousa Pereira
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