quinta-feira, 3 de novembro de 2016

VASCULHAR O PASSADO

– Uma vez por mês Augusto Mesquita recorda-nos pessoas, monumentos, tradições usos e costumes de outros tempos.

 Há 410 anos,Manuel Severim de Faria visitou Montemor-o-Novo

            Antes de Pier Maria Baldi ter executado em 1668, uma gravura da vila de Montemor-o-Novo, a primeira ilustração da Vila Notável, já Manuel Severim de Faria, passara por cá, em 27 de Outubro 1606, e registou no papel as impressões de tal viagem.
 Nessa altura, já existiam mais de 800 fogos no sopé do monte, enquanto o velho burgo se encontrava já praticamente despovoado.
            A duas léguas e meia de Évora, passou por Patalim, venda no caminho, à beira da fresca ribeira, “a qual mandaram edificar os morgados da família Carvalho Patalim, de que a venda e herdades daquele sítio tomaram o nome, por lhes pertencer”. Daqui a Montemor-o-Novo teve de andar mais duas léguas e meia.
            Chegado à nossa Vila, redigiu notas muito curiosas. Pelo seu valor histórico, e porque a nós montemorenses nos diz muito, pois relata um pouco da nossa história, julgo valer a pena, transcrever a totalidade do texto.
            “Montemor Villa notável de Portugal foi edificada por el Rey D. Sancho o primeiro e por estar situada no maior monte de aquelle território se chamou Monte Mor e por o diferençarem de outro monte mor mais antiguo que está junto a Coimbra, he chamado vulgarmente o Novo. He esta villa mui povoada e fresca por causa de duas ribeiras que a cercam e a fazem mui abundante principalmente de maçãns e doutros géneros de fruitas das quaes há aqui grande carregação para fora. Faz alem disto não pouco conhercida esta Villa o excellente barro de que he dotada, do qual lavram muitos púcaros postos que de feições grosseiras, de cheiro excellente, e muy pedrados que fazem o beber mui fresco e assi da mão deverão. Do mesmo barro fazem contas de muito preço, e outras coisas curiosas. Tem dous mil vezinhos, e hetermo passante de sete mil arados de terra; tem três freguesias e dous mosteiros hum dos frades de S. Francisco e outro de freiras de S. Domingos; tem o hospital de grande renda. Os Chefes dos Masquarenhas são alcaides – mores desta Villa e lhe rende a alcaidaria huns annos por outros, mil cruzados. Foi natural desta terra o P. Joaõ de Deos, autor da Religiaõ dos hospitaleiros de seu nome e se veneram inda hoje as cazas onde elle nasceo. Aqui sesteamos.
            De Montemor às Silveiras saõ duas legoas.
            As Vendas Novas são edificadas modernamente no princípio de El-Rey D. Sebastiaõ: caem no termo de Montemor e a Villa deu aos que as edificaram, sertos arados de terra que os habitadores cultivam, no que se vê quanto importa a habitaçaõ e agricultura dos campos, porque, sendo este sitio o mais áspero da charneca e os maiores oreais, dos quais antes de habitados se naõ colhia fruito algum, os vemos agora abundantes de muitas árvores de fruto cuberto de vinhas e de hortas, as quaes regam com algumas fontes que naquelle sitio há. Aqui está em grande parte levantada uma estalagem, fabrica moderna mandada edificar pella magestade de Phelippe primeiro de Portugal, a qual, acabada, será huma das insignes de Espanha. Pello que a experiência tem mostrado na culutivação deste sitio, se deixa bem ver de quanto proveito e importância fora para o Reyno, povoarse esta charnequa, trazendo para isto colónias dentre Duro e Minho como por vezes se tem praticado. Aqui fizemos noite e acabamos a primeira jornada.”
            Tendo pernoitado em Vendas Novas, saiu no dia seguinte, a caminho de Pegões. Por já não nos interessar a nós montemorenses acompanhá-lo, Banha de Andrade refere que aparte de algumas incorrecções, como a de Montemor apenas dispor de três freguesias, anotemos a curiosidade de outras notícias, nomeadamente o censo, o elogio da fruta e dos púcaros, e a informação de que a Casa onde nasceu João Cidade era objecto de veneração.
     Quem foi Manuel Severim de Faria autor deste texto? Foi um sacerdote católico, historiador, arqueólogo, numismata, genealogista e escritor. É também considerado o primeiro jornalista português.
            Terá nascido em 1584, em dia desconhecido do mês de Fevereiro, na freguesia de Santa Justa da cidade de Lisboa.
     Manuel Severim de Faria foi para a cidade de Évora ainda criança, e ali foi educado por um tio, Baltasar de Faria Severim, Cónego e Chantre da Sé de Évora. Frequentou a Universidade de Évora, vindo a ser Mestre em Artes e Doutor em Teologia, para além de ter recebido as várias ordens sagradas católicas. Seu tio Baltasar renunciou repentinamente, ao lugar de chantre da Sé de Évora, em 1609, possivelmente porque não quis colocar-se ao serviço de Filipe I, que quereria vê-lo como seu embaixador em Roma. Baltasar de Faria tornou-se, assim, frade na Cartuxa de Évora, da qual tinha sido um dos fundadores e onde viria, mais tarde, a ser prior, para além de ocupar outros cargos, como visitador da sua Ordem.
            Manuel Severim de Faria, então com 25 anos, sucedeu, assim, a seu tio no Cabido da Sé de Évora, adquirindo o direito de receber somas elevadas, fruto de disposições eclesiásticas que lhe asseguraram diversas rendas e outros benefícios. Devido à sua formação escolástica e forma de ser, Severim de Faria pôde aplicar as avultadas verbas a que tinha acesso na aquisição de uma das mais famosas e bem apetrechadas bibliotecas do seu tempo.
            Manuel Severim de Faria era um curioso e estudioso, interessando-se pela história nos seus múltiplos aspectos, sendo hoje considerado um autor de referência para a genealogia da família real, bem como no âmbito da numismática e arqueologia. Fruto dos seus contactos locais e nacionais, obteve um acervo de peças romanas de considerável dimensão, nomeadamente no que a moedas romanas diz respeito. Também tinha inúmeros exemplares de moedas dos reinos godos e mouros e dos reis de Portugal, sobre as quais escreveu vários estudos, que se tornaram imprescindíveis e inúmeras vezes citados, nacional e internacionalmente. Ainda na sua vertente de historiador, efectuou vários estudos genealógicos sobre os reis de Portugal e várias famílias nobres. Escreveu as primeiras biografias de Camões, João de Barros, Diogo do Couto e outros personagens relevantes do seu tempo.
            O labor intelectual de Severim de Faria não lhe permitiram manter-se afastado da política, sujeito de sucessivas discórdias e conflitos. Deverá ter-se em conta que à época reinavam em Portugal a dinastia filipina, com tudo o que tal implicava de tensões, seja no plano interno, seja por via das suas intervenções em conflitos europeus.
            Assim, a sua intervenção política deu-se naturalmente por via da escrita. Em 1624 Severim de Faria publicou a obra “Discursos de vários políticos”, na qual advogou, nomeadamente, a transferência da sede da corte de Madrid para Lisboa.
            Sentindo-se cansado pelos anos e afectado por várias maleitas, renunciou em favor do seu sobrinho Manuel Faria de Severim, primeiramente como Cónego, em 1633, e posteriormente como Chantre, em 1642, no dia seguinte a ter terminado o Índex do Cartório do Cabido da Sé de Évora.
            Manuel Severim de Faria faleceu em 1655, aos 71 anos de idade, ficando sepultado, por seu desejo expresso, junto a seu tio Baltasar, na Cartuxa de Évora. Com a extinção das ordens religiosas, decretada em 1834, e com a demolição do antigo Convento de São Domingos de Évora para a construção no local de uma nova praça, os cidadãos locais pretenderam preservar a memória de um outro religioso eborense famoso, André de Resende, organizando-se para a trasladação dos seus restos mortais para a Sé de Évora. Na sequência foi recordado Manuel Severim de Faria, e por forma a sua memória não correr igual risco, uma vez que a Cartuxa de Évora se encontrava abandonada, a 30 de Julho de 1839 os seus restos mortais, juntamente com os de Baltasar Faria de Severim, foram trasladados para a Sé Catedral de Évora, onde actualmente se encontra o seu túmulo.
            Do extenso rol de trabalhos literários realizados, a obra mais conhecida e referenciada de Manuel Severim de Faria é, contudo, o livro “Noticias de Portugal”, compilação de vários textos, designados por “Discursos”, onde se debruça sobre os mais variados temas, como sejam a “Milícia”, a “Nobreza”, a “Moeda”, as “Universidades”, a “Evangelização”, a “Carreira das Naus” e a “Peregrinação”, aos quais se juntam, ainda, várias biografias dos Cardeais portugueses até então.
            Publicado em 1655, no ano da sua morte, o livro “Noticias de Portugal”, do qual retiramos as impressões acima referidas, foi revisto por Joaquim Veríssimo Serrão, (Academia Portuguesa de História) em 1974, recebendo o nome de “Viagens em Portugal”.
Augusto Mesquita
In Folha Montemor - Out 2016 - transcrição autorizada pelo Autor




Sem comentários: