Já aconteceu, em Verões
anteriores, aproveitarmos o período de férias, longe de Montemor, para irmos à
procura de memórias de outras terras e de outras gentes. Foi assim, anos atrás
quando registamos relatos de pescadores da Costa Vicentina ou de quem trabalhou
na seca do figo, nos almeixares do Barlavento Algarvio.
Desta vez, viajamos até à
Beira Alta e instalamo-nos algures entre a Serra do Caramulo e a Serra da
Estrela. Quem percorre aquelas paragens depara-se frequentemente com cenários
dantescos. A cada passo veem-se vastas áreas montanhosas cobertas pelo manto
negro deixado pelo fogo. É como se a natureza fosse obrigada a carregar-se de
luto.
Fogos á parte, em Viseu
esperava-nos o fantástico e cristalino mundo do Museu do Quartzo e, em Santar,
parámos para comtemplar belos vinhedos a perder de vista. Chegados a Cabanas de
Viriato, pudemos ver com os nossos próprios olhos a recuperação que está a ser
feita na famosa casa do Passal, onde viveu Aristides de Sousa Mendes. Tardou,
mas foi! Se agora cá estivesse o Cônsul português em Bordéus estaria certamente
na linha da frente dos que defendem o acolhimento da vaga de refugiados que
entra diariamente na Europa. Fazemos lembrar que, durante a Segunda Guerra
Mundial, o cônsul passou vistos a cerca de trinta mil refugiados judeus e de
outras nacionalidades, livrando-os de morrer ás mãos das forças alemãs. As
voltas que a história dá!... A Alemanha tem sido até agora, o principal país de
acolhimento de quem foge da guerra. Naquela altura Sousa Mendes teve que
desobedecer ás ordens de Salazar. A desobediência custou-lhe perseguições, a
destruição da carreira e da sua vida pessoal.
Mas, centremo-nos no foco
principal destas Memórias Curtas. Em fins de Agosto, num dos nossos passeios
diários, fomos até à Aldeia da Urgeiriiça, terra de minas e mineiros. O
viajante mais atento dificilmente deixará escapar alguns contrastes flagrantes.
De um lado da via-férrea, a mata verdejante e o conforto do magnífico hotel,
que contou, outrora, com forte presença de empresários e técnicos ingleses. Do
outro lado da linha esbarramos com o espaço inóspito, cercado de rede de arame,
que foi polo importante da exploração de urânio.
Á primeira vista, aquilo que
resta das plataformas e das oficinas de tratamento químico mais faz lembrar um
campo de concentração. Depois, à medida que entramos no bairro mineiro, vai-se
sentindo uma progressiva humanização, que não consegue esconder a decadência a
que chegou a exploração uranífera.
A nossa grande expectativa com
esta deslocação à Urgeiriça era podermos falar com alguém que nos transmitisse
a recordação viva do que foi a vida arriscada e sofrida de quem trabalhou na
extração do uranio. Cedo nos apercebemos de que tínhamos pela frente tarefa
difícil. Os velhos mineiros já desapareceram todos ou quase todos. Soubemos que
um deles falecera ainda há pouco tempo com doença pulmonar grave.
Não quisemos insistir no
tema. Pela reação de boa parte das pessoas que abordámos, ficámos com a
sensação de que o assunto é controverso e incómodo. Parece tratar-se de uma
daquelas questões do passado que não estão a completamente resolvida no
presente. A polémica em torno da exploração do urânio instalou-se há alguns
anos, especialmente a partir da altura em que se passou a relacionar aquela
actividade mineira com certos perigos para o ambiente e com determinadas
doenças profissionais.
Dada a dificuldade de
obtermos testemunhos vivos, na primeira pessoa, socorremo-nos de um livro
publicado recentemente e posto à venda em livrarias e cafés daquela zona. O
livro tem como título: A vida dos Trabalhadores do Uranio – “trabalho ruim”.
Intrigou-nos, acima de tudo, a expressão colocada entre aspas.
Segundo a referida
publicação, a exploração das minas da Urgeiriça começou no primeiro quartel do
século XX, mais exactamente em 1913. Inicialmente a concessão foi atribuída aos
ingleses. Só muitos anos mais tarde é que a extração e o aproveitamento do
uranio passaram para administração portuguesa. Foram os tempos da Junta de
Energia Nuclear.
Em ambiente de guerra
convencional e, depois, da guerra fria, o uso do urânio esteve associado a
interesses militares, geopolíticos e energéticos, despertando a cobiça de
grandes potências mundiais, sobretudo ingleses e americanos. Ganhou com isso o
regime do Estado Novo, que tirou dividendos económicos das taxas de exportação
e algum protagonismo em matéria de política internacional.
Para os trabalhadores, o
labor nas minas de urânio constituía uma das poucas alternativas ao trabalho do
campo, geralmente mal pago. Os primeiros mineiros vieram de lugares vizinhos,
sem experiência de trabalho no fundo das minas, expostos a doenças muitas vezes
fatais. Não havia muito por onde escolher. “Nada
mais punha comer na mesa a não ser o urânio”.
Com o incremento da actividade
mineira, veio gente de outros pontos do país, especialmente do Norte e Centro,
à procura do ganha-pão que não encontrava nas suas terras. “A vida era negra. Não havia que comer, não
havia que calçar, não se sabia ler, era só trabalhar no campo”. Muita gente palmilhava longas distâncias,
outros faziam intermináveis quilómetros de bicicleta, todos com o fito num
salário um pouco melhor. Havia quem sonhasse com um relógio de pulso ou em
juntar uns tostões até ir para a tropa.
Os que vinham de terras mais
longínquas, uns solteiros, outros com mulheres e filhos, ficavam instalados em
grandes barracões, com tarimbas de madeira cobertas de palha. Depois surgiram
as casernas equipadas com camas de ferro e enxergas. As condições de conforto e
higiene deixavam muito a desejar. Havia quem procurasse casas nas povoações
mais próximas, de preferência com um bocadito de terra que assegurasse a
subsistência. “Jesus! o que foi a vida” –
desabafava a esposa de um mineiro.
A determinada altura, foi
construída no bairro mineiro a chamada “casa dos malteses” que albergava
pessoal vindo de muito longe Dormia-se em palha, e as refeições eram muito
minguadas e as roupas encharcadas na mina eram postas a secar em longos
estendais.
Havia os que iam trabalhar
sem o devido aconchego no estomago. No fim do trabalho alguns rumavam à vila de
Canas de Senhorim, enchendo tabernas onde afogavam a solidão e outros azedumes
da alma. Não raras vezes arrumavam-se conflitos entre os da vila e os
“malteses”
O ritmo do trabalho imposto
pelos capatazes era violento. Não se podia protestar. Arriscava-se por vezes ,
“resmungar entre dentes”. Por muito bom que fosse o trabalhador, não podia ser
insubmisso, sob pena de ficar marcado ou acusado de agitador.
Notícias postas a circular na
imprensa inglesa denunciavam a situação precária dos mineiros portugueses e
alertavam para os riscos do trabalho em ambiente de poeiras radioactivas e de
radão. Na década de 1950, aconteceram transformações importantes na Urgeiriça,
nomeadamente a construção de casas para trabalhadores e a criação de outros
equipamentos de índole social, assistencial e cultural. Chegaram a ser perto de
mil e quinhentos homens mais as respectivas famílias.
Apesar das melhorias,
grassava o descontentamento. Os salários baixos conduziam á constante saída e
entrada dos mineiros. A partir da década sede sessenta, com o forte surto da
emigração para França e outos países da Europa, chegou-se ao ponto em que já
nem o aumento dos salários nem a melhoria ds condições sociais conseguiam impedir
o êxodo dos trabalhadores. A produção começou a estar comprometida. Além da
insatisfação dos trabalhadores do fundo da mina, o protesto alastrou aos que
trabalhavam no exterior, como carpinteiros e eletricistas.
A revolução de 1974 trouxe
efeitos políticos e sociais imediatos. A administração da empresa sofreu
profundas mudanças e aumentou o poder reivindicativo e a capacidade
organizativa de quem trabalhava.
Entretanto no início de 1990,
as cotações do mercado internacional do urânio começaram a baixar. A gestão da
empresa mineira levantou acesa controvérsia sucedendo-se os despedimentos e múltiplas
negociações. Por volta do ano 2.000 foi decidido terminar a actividade e fechar
as minas da Urgeiriça. Para encerrar o dossier das minas de urânio, deram-se
passos no intuito de recomendar exames médicos a antigos trabalhadores e familiares,
assim como procurar defender, através de legislação o seu futuro. Será que
ficou tudo resolvido?
O relato que aqui deixamos
podia ser acompanhado de nomes, siglas e números bem mais precisos e
exaustivos. Não é esse o nosso objectivo. Quisemos tão-somente, deixar aqui
registada parte das impressões de uma viagem, a que se somaram memórias, muitas
delas histórias que fizeram parte da História.
Até breve
Vitor Guita
Extraído do mensário “O Montemorense”- Setembro 2015 –
Publicação autorizada pelo Autor
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