terça-feira, 6 de outubro de 2015

MEMÓRIAS CURTAS - Um artigo do prof. Vitor Guita

Já aconteceu, em Verões anteriores, aproveitarmos o período de férias, longe de Montemor, para irmos à procura de memórias de outras terras e de outras gentes. Foi assim, anos atrás quando registamos relatos de pescadores da Costa Vicentina ou de quem trabalhou na seca do figo, nos almeixares do Barlavento Algarvio.
Desta vez, viajamos até à Beira Alta e instalamo-nos algures entre a Serra do Caramulo e a Serra da Estrela. Quem percorre aquelas paragens depara-se frequentemente com cenários dantescos. A cada passo veem-se vastas áreas montanhosas cobertas pelo manto negro deixado pelo fogo. É como se a natureza fosse obrigada a carregar-se de luto.
Fogos á parte, em Viseu esperava-nos o fantástico e cristalino mundo do Museu do Quartzo e, em Santar, parámos para comtemplar belos vinhedos a perder de vista. Chegados a Cabanas de Viriato, pudemos ver com os nossos próprios olhos a recuperação que está a ser feita na famosa casa do Passal, onde viveu Aristides de Sousa Mendes. Tardou, mas foi! Se agora cá estivesse o Cônsul português em Bordéus estaria certamente na linha da frente dos que defendem o acolhimento da vaga de refugiados que entra diariamente na Europa. Fazemos lembrar que, durante a Segunda Guerra Mundial, o cônsul passou vistos a cerca de trinta mil refugiados judeus e de outras nacionalidades, livrando-os de morrer ás mãos das forças alemãs. As voltas que a história dá!... A Alemanha tem sido até agora, o principal país de acolhimento de quem foge da guerra. Naquela altura Sousa Mendes teve que desobedecer ás ordens de Salazar. A desobediência custou-lhe perseguições, a destruição da carreira e da sua vida pessoal.
Mas, centremo-nos no foco principal destas Memórias Curtas. Em fins de Agosto, num dos nossos passeios diários, fomos até à Aldeia da Urgeiriiça, terra de minas e mineiros. O viajante mais atento dificilmente deixará escapar alguns contrastes flagrantes. De um lado da via-férrea, a mata verdejante e o conforto do magnífico hotel, que contou, outrora, com forte presença de empresários e técnicos ingleses. Do outro lado da linha esbarramos com o espaço inóspito, cercado de rede de arame, que foi polo importante da exploração de urânio.
Á primeira vista, aquilo que resta das plataformas e das oficinas de tratamento químico mais faz lembrar um campo de concentração. Depois, à medida que entramos no bairro mineiro, vai-se sentindo uma progressiva humanização, que não consegue esconder a decadência a que chegou a exploração uranífera.
A nossa grande expectativa com esta deslocação à Urgeiriça era podermos falar com alguém que nos transmitisse a recordação viva do que foi a vida arriscada e sofrida de quem trabalhou na extração do uranio. Cedo nos apercebemos de que tínhamos pela frente tarefa difícil. Os velhos mineiros já desapareceram todos ou quase todos. Soubemos que um deles falecera ainda há pouco tempo com doença pulmonar grave.
Não quisemos insistir no tema. Pela reação de boa parte das pessoas que abordámos, ficámos com a sensação de que o assunto é controverso e incómodo. Parece tratar-se de uma daquelas questões do passado que não estão a completamente resolvida no presente. A polémica em torno da exploração do urânio instalou-se há alguns anos, especialmente a partir da altura em que se passou a relacionar aquela actividade mineira com certos perigos para o ambiente e com determinadas doenças profissionais.
Dada a dificuldade de obtermos testemunhos vivos, na primeira pessoa, socorremo-nos de um livro publicado recentemente e posto à venda em livrarias e cafés daquela zona. O livro tem como título: A vida dos Trabalhadores do Uranio – “trabalho ruim”. Intrigou-nos, acima de tudo, a expressão colocada entre aspas.
Segundo a referida publicação, a exploração das minas da Urgeiriça começou no primeiro quartel do século XX, mais exactamente em 1913. Inicialmente a concessão foi atribuída aos ingleses. Só muitos anos mais tarde é que a extração e o aproveitamento do uranio passaram para administração portuguesa. Foram os tempos da Junta de Energia Nuclear.
Em ambiente de guerra convencional e, depois, da guerra fria, o uso do urânio esteve associado a interesses militares, geopolíticos e energéticos, despertando a cobiça de grandes potências mundiais, sobretudo ingleses e americanos. Ganhou com isso o regime do Estado Novo, que tirou dividendos económicos das taxas de exportação e algum protagonismo em matéria de política internacional.
Para os trabalhadores, o labor nas minas de urânio constituía uma das poucas alternativas ao trabalho do campo, geralmente mal pago. Os primeiros mineiros vieram de lugares vizinhos, sem experiência de trabalho no fundo das minas, expostos a doenças muitas vezes fatais. Não havia muito por onde escolher. “Nada mais punha comer na mesa a não ser o urânio”.
Com o incremento da actividade mineira, veio gente de outros pontos do país, especialmente do Norte e Centro, à procura do ganha-pão que não encontrava nas suas terras. “A vida era negra. Não havia que comer, não havia que calçar, não se sabia ler, era só trabalhar no campo”.  Muita gente palmilhava longas distâncias, outros faziam intermináveis quilómetros de bicicleta, todos com o fito num salário um pouco melhor. Havia quem sonhasse com um relógio de pulso ou em juntar uns tostões até ir para a tropa.
Os que vinham de terras mais longínquas, uns solteiros, outros com mulheres e filhos, ficavam instalados em grandes barracões, com tarimbas de madeira cobertas de palha. Depois surgiram as casernas equipadas com camas de ferro e enxergas. As condições de conforto e higiene deixavam muito a desejar. Havia quem procurasse casas nas povoações mais próximas, de preferência com um bocadito de terra que assegurasse a subsistência. “Jesus! o que foi a vida” – desabafava a esposa de um mineiro.
A determinada altura, foi construída no bairro mineiro a chamada “casa dos malteses” que albergava pessoal vindo de muito longe Dormia-se em palha, e as refeições eram muito minguadas e as roupas encharcadas na mina eram postas a secar em longos estendais.
Havia os que iam trabalhar sem o devido aconchego no estomago. No fim do trabalho alguns rumavam à vila de Canas de Senhorim, enchendo tabernas onde afogavam a solidão e outros azedumes da alma. Não raras vezes arrumavam-se conflitos entre os da vila e os “malteses”
O ritmo do trabalho imposto pelos capatazes era violento. Não se podia protestar. Arriscava-se por vezes , “resmungar entre dentes”. Por muito bom que fosse o trabalhador, não podia ser insubmisso, sob pena de ficar marcado ou acusado de agitador.
Notícias postas a circular na imprensa inglesa denunciavam a situação precária dos mineiros portugueses e alertavam para os riscos do trabalho em ambiente de poeiras radioactivas e de radão. Na década de 1950, aconteceram transformações importantes na Urgeiriça, nomeadamente a construção de casas para trabalhadores e a criação de outros equipamentos de índole social, assistencial e cultural. Chegaram a ser perto de mil e quinhentos homens mais as respectivas famílias.
Apesar das melhorias, grassava o descontentamento. Os salários baixos conduziam á constante saída e entrada dos mineiros. A partir da década sede sessenta, com o forte surto da emigração para França e outos países da Europa, chegou-se ao ponto em que já nem o aumento dos salários nem a melhoria ds condições sociais conseguiam impedir o êxodo dos trabalhadores. A produção começou a estar comprometida. Além da insatisfação dos trabalhadores do fundo da mina, o protesto alastrou aos que trabalhavam no exterior, como carpinteiros e eletricistas.
A revolução de 1974 trouxe efeitos políticos e sociais imediatos. A administração da empresa sofreu profundas mudanças e aumentou o poder reivindicativo e a capacidade organizativa de quem trabalhava.
Entretanto no início de 1990, as cotações do mercado internacional do urânio começaram a baixar. A gestão da empresa mineira levantou acesa controvérsia sucedendo-se os despedimentos e múltiplas negociações. Por volta do ano 2.000 foi decidido terminar a actividade e fechar as minas da Urgeiriça. Para encerrar o dossier das minas de urânio, deram-se passos no intuito de recomendar exames médicos a antigos trabalhadores e familiares, assim como procurar defender, através de legislação o seu futuro. Será que ficou tudo resolvido?
O relato que aqui deixamos podia ser acompanhado de nomes, siglas e números bem mais precisos e exaustivos. Não é esse o nosso objectivo. Quisemos tão-somente, deixar aqui registada parte das impressões de uma viagem, a que se somaram memórias, muitas delas histórias que fizeram parte da História.
Até breve

Vitor Guita
Extraído do mensário “O Montemorense”- Setembro 2015 – Publicação autorizada pelo Autor









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