Mal chegava o Verão, era tempo de se cumprirem alguns
rituais lá em casa: trocar a lã quente dos colchões pela palha de milho; pôr a
refrescar o vinho e as melancias no poço que ficava por baixo de uma das
divisões do rés-do-chão…
Em casa dos nossos avós, de chão de terra, calcava-se o
barro para nivelar o piso gasto ao longo do ano. Caiavam-se também com cal
branca as paredes de serapilheira, atrás das quais o avô Zé Guita tinha o banco
de carpinteiro e guardava as ferramentas de abegão: enxós, trados, serras…
Digamos que as paredes eram o pladur daquele tempo.
Porem, uma das práticas para nós mais apetecidas acontecia
em Julho ou Agosto, no dia em que se emalava a trouxa para ir de férias, rumo à
praia. Se a carga era muita, pedia-se a ajuda de um moço de fretes ou de um
carro de praça que nos levasse à estação.
A propósito de carros de praça, na nossa última crónica/
memória deixámos em suspenso uma conversa que encetamos com António Ezequiel
Ferreira. Provavelmente poucos dos nossos estimados leitores conseguirão
identifica-lo pelo nome próprio. Todavia se falarmos do Tói dos carros de
praça, muita gente o reconhecerá. Estivemos longos minutos a falar com ele em
sua casa, ali para os lados de S. Domingos. Apesar dos quase 89 anos, a sua
memória está bem fresca, diríamos mesmo prodigiosa. Recuámos umas décadas no
tempo para sabermos um pouco mais da sua história de vida, na expectativa de
recolhermos elementos que nos ajudassem também a fazer o retrato de uma época.
Perdidos os pais muito cedo, o amigo Tói foi criado pela avó
e por uma tia, na Fazenda do Moinho do Bispo. Aos 12 anos já trabalhava atrás
do balcão, na taberna do seu tio João do Cantinho, primeiro na rua do Poço do
Passo e depois na rua da Horta das Bacias. A casa era muito afreguesada. As
estações da Setubalense e da Ribatejana, no largo que ficava ali bem perto,
ajudavam a engrossar a clientela. Alem disso, João do Cantinho sabia do
negócio. A cara que está atrás do balcão conta muito para o sucesso de uma casa!
O Tói foi para ali trabalhar a troco de comer, de vestir, a
que se juntavam mais uns 7$50 semanais, que davam para ir ao cinema. Aos 20
anos, desejoso de independência, pediu o primeiro ordenado. A resposta negativa
fê-lo abandonar a taberna e partir para a aventura.
Foi com três contos e quinhentos emprestados pela tia que o
jovem Tói partiu para Évora, a fim de tirar a carta de condução, que lhe havia
de custar três contos de réis. Aos vinte e um anos, já tinha na mão a carta nº
673, que ainda hoje deixa admirados os guardas da Brigada de Transito, sempre que lhe pedem os
documentos.
A vida afigurava-se difícil. Foi ensinando, entretanto,
outros a conduzir e, no tempo em que alguns dos mais ricos tinham o seu próprio
chofer, alimentava fundadas esperanças de conseguir trabalho. Finalmente surgiu
a oportunidade de trabalhar como condutor numa das casas ricas de Montemor.
Cedo conquistou a simpatia do patrão, que lhe passou a chamar Toninho, não lhe
impôs o uso de farda e o convidava a sentar-se à mesa, como se fosse da
família. Passados dois anos e meio, um escusado mal-entendido levá-lo-ia ao
despedimento.
Como diz o povo, há males que vêm por bem. Com a mira no
negócio dos carros de aluguer comprou, por trinta contos, um Chrysler a
Domingos António Carrasquinho. Avançou com algum pouco dinheiro que tinha, sem
necessidade de fiador. A palavra de honra ainda tinha algum peso.
Sucede que o possante carro sorvia 14 litros de gasolina em
cada cem quilómetros que percorria. Os taxistas já veteranos na profissão
achavam que ele não se ia governar. Recorde-se, que na praça, trabalhavam
homens como João Bomba, Sílvio Sarrança, Alberto Salgueiro, Francisco
Carrasquinho e outros que lhe sucederam. Apesar do diagnóstico negativo, o
facto é que, com mais habilidade, ou menos habilidade, o negócio lá foi
correndo de feição. Pelo caminho teve que pedir dinheiro a juros, e até a
namorada lhe emprestou um conto de réis para substituir os pneus carecas e
meter um carburador Solex.
A troco do velho Chysler e de mais uns tostões que
entretanto amealhou, comprou um Consul preto, novinho em folha. Setenta e dois
contos foi quanto custou o automóvel (aproximadamente 360 euros). Para
conseguir fechar o negócio, propôs ao stand fazer a hipoteca do carro e seguro
contra todos os riscos.
Com um veículo novo nas mãos, lançou-se ao trabalho de dia e
de noite. Pagou o automóvel num instante. Como no poupar é que está o ganho, ao
fim do dia de trabalho deixava o carro na vila, direito ao Moinho do Bispo e ia
a pé para casa.
Os bons resultados levaram-no a pensar no desejado
casamento. Após doze anos de namoro foi ter com o padre, chamaram-se as quatro
indispensáveis testemunhas e lá se deu o nó. Não houve lugar a boda. A única
extravagância foi uma viagem a Fátima, com paragem e almoço em Santarém,
A ementa consistiu num caldo verde e carapaus fritos. Tudo
por 25$00 (12,5 centimos).
Com a vida a andar de vento em popa, o motorista adquiriu um
novo Consul, a que se seguiu um Mercedes 180 a gasóleo, com poucos quilómetros
de rodagem. A clientela não parava de aumentar. Foram anos loucos, a correr de
um lado para outro, nomeadamente para Badajoz e Bragança. Chegaram a ser 8
horas para lá e outras tantas para cá. Nos anos 60, vivia-se um período de
forte emigração. Em Bragança havia de aparecer alguém com uma rosa na lapela do
casaco e a levantar o dedo. Era o homem que se encarregaria de passar os
emigrantes para o outro lado da fronteira.
No início dos anos 70, o amigo Tói adquiriu um Mercedes
1900. Uma bomba! Alem disso, da situação de ter de pedir dinheiro a juros,
passou ele a poder emprestar aos outros. Era prática mais ou menos corrente
naquela época, em vez de se ir ter com o Banco, pedir.se dinheiro a juros a
particulares.
De acordo com o que nos foi relatado, tudo era conseguido à
custa de uma vida regrada e muito trabalho. Em altura de feiras, chegavam a ser
4 dias e 4 noites sem ir à cama. Dormia-se no carro, tomava-se um café no
Fragoso e estava-se pronto para nova corrida.
Por vezes, apareciam quatro ou cinco gaiatões a bater-lhe à
porta, à meia-noite, para irem até à Feira de S. João, ou a algum bailarico nos
arredores. Quando eram cinco, um deles tinha de baixar-se, caso surgisse alguma
autoridade. Histórias do arco-da-velha.
Também com os médicos da terra se passaram episódios dignos
de registo Regra geral, os senhores doutores ainda imbuídos do espirito do João
Semana nunca diziam que não, fosse a que horas fossem, sempre que eram
solicitados. Em noites de invernia, campos fora lá ia o médico e o taxista.
Penava-se que só Deus sabe! Carros atascados nos ribeiros e
nos terrenos lamacentos; o médico a ter que saltar por cima do capot; pedidos
de ajuda nos montes mais próximos para desatascar o carro; canzarrões a
ladrarem ameaçadoramente; por vezes uma espingarda apontada… por fim lá chegava
um carro de parelha para puxar o automóvel.
Houve um certo dia em que, para se desviar de uma lebre, o
táxi ficou encalhado nos carris do caminho-de-ferro, ali para os lados da
Gouveia. Ai, o medo do comboio que devia estar a passar! Foram feitos avisos
angustiados para a Torre da Gadanha. Ufff! Com meia dúzia de pedregulhos, lá se
conseguiu levantar o carro.
Alem das viagens com os médicos, foram realizadas muitas
outras com oficiais da justiça.
Abandonada a praça de táxis, o amigo Tói, sempre que a
doença da esposa o permitia, ia fazendo serviços para empresas e outras pessoas
da vila.
A vida sedentária, dias-a-fio sentado ao volante do carro,
não lhe roubou a boa forma física que ainda mantem e o enorme gosto de
comunicar.
Bem! Pela nossa parte, com táxis ou sem eles, é tempo de
irmos descansar uns dias. Até Setembro.
Vitor Guita
In “Montemorense”
Julho 2015 – transcrição autorizada pelo Autor
2 comentários:
Que relato mais gostoso! Ena, pá!
Gostei imenso deste comentário.
Parabéns e muita saúde ao amigo TOI
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