quarta-feira, 22 de julho de 2015

CINE CLUBE DOMINGOS MARIA PEÇAS - HOMENAGEM - Fase V

                                            DO CINEMATÓGRAFO PARA A PÓLIS
A VIDA É UM TEATRO? 
De “A Regra do Jogo” para Varoufakis…, por Henrique José Lopes

Revi mais uma vez o filme “A Regra do Jogo” do francês Jean Renoir. Datado de 1939, foi talvez o filme na história do cinema que mais se “transferiu” do inferno para o céu, se a expressão for permitida. Explicando melhor, muito mal-amado a quando da sua estreia, foi ganhando com o passar dos anos um estatuto que o levou a ser considerado a partir de meados da década de 50 do século passado até aos dias de hoje, um dos melhores e mais importantes filmes alguma vez realizados. Para muitos e não são poucos, trata-se da mais importante obra de todo o cinema europeu.
Se os Estados Unidos têm na sua história cinematográfica uma obra revolucionária chamada Citizen Kane (O mundo a Seus Pés, titulo dado no mercado português) de Orson Wells de 1941 (para muitos o melhor filme alguma vez feito), a Europa e a França em particular, encontra o seu paralelo em “A Regra do Jogo” dois anos antes. A importância desta obra resulta do seu virtuosismo impar, como disse o critico e historiador de cinema, Claude Beylie “a câmara parece estar em todo o lado ao mesmo tempo” e também da poderosa narrativa, cuja mensagem permanece atual e parece ganhar cada vez mais força com o passar dos anos.
Esta obra-prima absoluta (nunca é mais de o afirmar e acrescento num assombro de cinefilia, que quem não viu “a regra do jogo não viu até hoje plenamente cinema) motivou tumultos aquando das suas primeiras exibições, foi inclusivamente retirado das salas de cinema francesas em resultado de considerarem que este objeto fílmico desmoralizava os valores fundamentais da sociedade francesa de então.
Aquilo que fascina em “A Regra do Jogo” é a forma como Renoir nos mostra, mesmo tendo por fundo uma sociedade francesa dos anos 30, como patrões (vivem no piso superior) e empregados (vivem no piso inferior), cada uns à sua maneira e em diferentes escalas sofrem dos mesmos males, com as suas regras, as suas rivalidades e os seus mundos. A regra do jogo é sem sombra de dúvida, o mais espantoso retrato de divisão de classes alguma vez transposto para o cinema.
Mas esta obra vai mais longe e questiona-nos permanentemente na vertigem do seu virtuosismo (o uso da profundidade de campo, os movimentos de câmara, nomeadamente os travellings) sobre o mundo e forma como nos comportamos nele. Exemplo disso é uma cena (admirável), quando o marquês e os seus amigos representavam um pequeno teatro para outros amigos convidados, a um dado momento perante o caos no ambiente, pede ao seu mordomo “Corneille, mande parar esta comédia!”, ao que o seu empregado retorquiu: “Qual delas, senhor marquês?”. Não conheço exemplo mais assombroso em toda a história do cinema de uma forma tão assertiva que nos demonstre como a vida e o espetáculo (o teatro) tantas vezes se misturam e se confundem como nesta obra magistral de Renoir.
Outa cena magistral e que nos leva uma pertinente narrativa da encenação do mundo em que vivemos, é nos dada pelas palavras do personagem Octave (o parasita simpático e frequentador de casas da alta sociedade, como aquela do seu amigo marquês e onde se desenrola praticamente toda a ação do filme interpretado pelo próprio Renoir): “Vivemos numa época em que toda a gente mente: os prospetos dos farmacêuticos, os governos, a rádio, o cinema, os jornais…Sendo assim como querem que nós, os simples particulares, não façamos o mesmo?”.
Mas genial o filme de Renoir vai mais longe e até as questões das relações amorosas entre homens e mulheres nos são dadas de uma forma sem preconceitos e sem meias palavras. A uma dada altura uma personagem feminina afirma: ”as pessoas demasiado sinceras estão condenadas”.  A encenação, a sedução, as futilidades e fragilidades das vidas amorosas, raramente tinham sido mostradas com tanta lucidez e arte como neste filme. 
Será isto uma inevitabilidade da natureza humana? Ou como escreveu Ortega y Gasset: “O homem é o homem e suas circunstâncias”? Transferindo (mais uma vez) para o mundo da politica (sem dúvida fascinante…com as suas virtudes e limites), não será desafio para o homem na vida politica: o da busca da verdade (contrariando as palavras do personagem Octave)? As pessoas demasiado sinceras estão realmente condenadas?…
É simbolicamente neste sentido que emerge Varoufakis, agora ex ministro das finanças grego. 
Saiu de cena com classe. A sua superioridade intelectual era natural, o seu conhecimento, o seu carisma e o seu lado informal colidiam permanentemente com a “engravatada” mentalidade do sistema e de quem o dirige. O ex ministro das finanças grego parece estar de facto de bem com a vida. Não precisou de fazer “permanentes”. É possível resolver os problemas das pessoas e dos países sem andar no luxo…, ser-se uma pessoa normal. Mais sentido faz quando muita gente anda já no lixo, ou dito de outro modo, no limiar da pobreza.
                Neste sentido, podemos afirmar que Varoufakis não quis que fosse por ele que esses planos se confundissem. Contrariamente ao personagem Octave que sempre viveu à custa do sistema, o ex ministro das finanças revelou não precisar de isso para nada. Contrariamente a muitos que necessitam do sistema para sobreviver. No seu estilo desarmante, Yanis Varoufakis afirmou:  "Vou vestir a aversão dos credores com orgulho". E foi também ele que disse que Portugal (referindo – se indiretamente, mas com “pontaria certeira” ao governo português”) que estava a ser mais alemão que a própria Alemanha.
                Lembro-me sempre de uns curtos versos de um poema do José Mário Branco do seu disco “Resistir é Vencer”: O papão do anão/ É o anão do próprio anão”. O penoso resultado continua à vista: um Passos Coelho continuando sem habilidade a dirigir um País …e um Presidente da República que não consegue disfarçar a matematização primária do seu pensamento … do tipo quem de 19 tira…um… ficam 18.
O filme de Renoir esteve perdido durante a 2.ª guerra mundial, sobreviveu e a sua remontagem deu-se pela força da sua tremenda humanidade e mensagem. Como que a nos interpelar para dizer de vez: “mandem parar de vez esta comédia”! …

Henrique Lopes 
In Folha de Montemor- Julho 2015 – Transcrição com autorização do Autor



1 comentário:

artemiso peças disse...

PARABÉNS MAIS UMA EXTRAORDINÁRIA CRÓNICA