O crepúsculo dos
intelectuais?
«Como podem os intelectuais, que reflectem, agem, criam, investigam,
educam, formam, ser indiferentes à opressão, às tensões, às injustiças, às
brutalidades, no mundo que os envolve, como se vivessem numa “torre de marfim”?»
Jorge Sarabando
(in “A Batalha da Memória”)
Numa análise que faz aos tempos que agora vivemos (e que
denomina de “A Civilização do Espectáculo”), Mário Vargas Llosa constata que um
facto singular da sociedade contemporânea é o eclipse de uma personagem, que há
séculos e até há relativamente poucos anos, desempenhava um papel importante na
vida das nações: o intelectual - opinando que a denominação de “intelectual”
só surgiria no século XIX, durante o caso Dreyfus (em França) e as polémicas
lançadas por Emile Zola com o seu célebre “Eu Acuso!”, escrito em defesa
daquele oficial judeu falsamente acusado de traição à pátria por uma conjura de
altos comandos anti-semitas do exército francês. Porém, ainda que o termo
“intelectual” só se popularizasse a partir de então, a verdade é que a
participação de homens de pensamento e criação na vida pública, nos debates
políticos, religiosos e de ideias, remontam aos alvores do Ocidente: presentes
na Grécia de Platão e na Roma de Cícero, no Renascimento de Montaigne e
Maquiavel, no Iluminismo de Voltaire e de Diderot, no Romantismo de Lamartine e
Victor Hugo e em todos os períodos históricos que nos conduziriam à
modernidade. E igualmente constatamos que um bom número de destacados
escritores e pensadores, paralelamente ao seu trabalho académico ou criativo,
influiu com os seus escritos, pronunciamentos e tomadas de posição no acontecer
político e social (Bertrand, Russell, Sartre, Camus, Alberto Moravia, Vitorini,
Günter Grass, Ortega e Gasset, Unamuno
- entre outros) -
intervenções que se registariam nas várias democracias europeias; da
mesma forma constatando que, nos nossos dias, teremos de admitir que o
intelectual se esfumou dos debates políticos: embora seja verdade que alguns
ainda assinam manifestos, enviam cartas aos jornais, se envolvem em
polémicas - mas nada disso tem repercussões sérias no
andamento da sociedade, cujos assuntos económicos, institucionais, culturais se
decidem pelo poder político e administrativo e pelos poderes (denominados) fácticos -
entre os quais os intelectuais primam pela sua ausência.
Amargurados e conscientes da dolorosa situação a que a
sociedade os reduziu, a maioria dos intelectuais optou pela discrição ou pela
abstenção do debate público. Confinados à sua disciplina ou afazeres
particulares, os intelectuais viram as costas ao que, há 50 anos, se chamava
“compromisso cívico” ou moral do escritor para com a sociedade. Há excepções, é
certo: porém, também existem casos de exibicionismo, de promoção (mais que a
defesa de um valor).
E que levaria à volatização e apagamento do intelectual?
Consideramos vários factores: entre os quais, o compromisso e simpatias para
com os regimes totalitários (como encontramos em alguns intelectuais
comprometidos com o nazismo, o fascismo, o salazarismo, o franquismo e o regime
soviético e chinês - regimes de horrores humanos que determinados
intelectuais silenciaram: como sucedeu com o Gulag soviético ou o Holocausto) -
constituindo, contudo, uma ousadia a luta travada pelo “neo-realismo”
português perante a censura (que culminaria no encerramento da Associação
Portuguesa de Escritores), bem como é de realçar o papel (de apoio à Cultura e
à Escrita) vivenciado pelo Editor - que correu riscos (de prisão ou perdas
monetárias em resultado de apreensão de edições completas) - a
lembrar o auge do nazismo hitleriano; e o cortejo de escritores largamente
censurados entre nós é infindo - desde
Aquilino a Mário Zambujal (passando por Redol, Cardoso Pires, Manuel da
Fonseca, Manuel Ribeiro, Abel Botelho, Mário Castrim, Cezarini, Ary dos Santos,
Jorge de Sena, Fernando Namora, Vergílio Ferreira, José Gomes Ferreira,
Sttau-Monteiro, Manuel Alegre, etc.).
A própria literatura jornalística era ferozmente perseguida.
Dessa violência desumana, damos um breve exemplo, face a um desabafo de Mário
Soares a um repórter do “Diário de Lisboa”
- que se propunha entrevistá-lo;
diz-lhe Mário Soares: «Desculpe. Mas antes de começar a responder às suas
perguntas, desejo pôr uma questão prévia: valerá a pena dar-lhe uma entrevista
sobre o momento político actual (1968) quando sei, com toda a probalidade, que
a censura a vai cortar ou, pelo menos, mutilar profundamente? Infelizmente, a
dolorosa experiência dos últimos tempos (e nomeadamente no que a mim próprio se
refere) não me permite alimentar quaisqueres ilusões a esse respeito... Pesei esta desagradável eventualidade e,
apesar de tudo, disponho a responder-lhe. Porquê? Porque acho ser meu direito
fazê-lo, neste momento, como português interessado pela coisa pública e isento
de qualquer interesse pessoal. Mais do que isso: porque acho ser meu dever ...»
Outra condicionante dos intelectuais, encontramo-la na
pressão exercida pelos grandes empórios económicos; a tal respeito, diz-nos
Claude Julien (in “Le Monde
Diplomatique”): «A imprensa, todos o sabem, é livre. Esta liberdade continua a
ser uma das maiores conquistas - e uma das garantias - da
democracia. Mas, para lá do princípio, que é verdadeiramente feito, nos nossos
dias, dessa liberdade? O jugo do dinheiro será menos pesado que o do rei ou do
tirano? A Imprensa é livre. Também o sabem alguns grupos gigantes que nunca
perdem a oportunidade de alargar o seu império. A sua fome é insaciável.
Chamam-lhe liberdade. Liberdade de empresa, bem entendido. Mas toda a liberdade
que restringe ou viola a dos outros deixa de ser um direito e torna-se um
abuso.»
Sobre o totalitarismo salazarista (a um tempo político,
social, cultural e económico), e que era reforçado pela censura da Imprensa,
diz-nos Fernando Rosas: «A violência preventiva era um esteio essencial, da
segurança e da durabilidade do regime. Na desmobilização, no medo, na
interiorização da obediência, numa sociedade onde o peso social e cultural da
ruralidade se prolongou bem para além do seu peso económico, ou seja, na
eficácia real dessa violência preventiva assentou em larga medida o “saber
durar” salazarista»; criando uma clientela intelectual, uma mentalidade atávica
e obediente (pelo medo e pelo obscurecimento) -
e perseguindo ferozmente os descontentes que se manifestassem (entre
eles, um largo escol de intelectuais): e felizmente que surgem descontentes
neste processo dialéctico (a vivenciar a antítese) - uma
vez que «o exercício da “hegemonia” como processo construtivo tem de ser obra
de homens cultos, na dupla e relacional acepção dos indivíduos activos e
conscientes aos quais a cultura ... confere, por integração e extensão de
conhecimentos capazes de assegurar a sua mais radical autonomia, a sua
imprescindibilidade.» (in “Bento de
Jesus Caraça - um império intelectual entre emancipação e a
Cultura” - de Luís Augusto Costa Dias).
Henri-Jean Martin diz-nos que o livro já não exerce o mesmo
poder que tinha anteriormente, deixou de ser o mestre dos nossos raciocínios ou
dos nossos sentimentos face aos novos meios de informação e de comunicação de
que hoje em dia dispomos. Com estes golpes na Cultura (a rarefacção dos
intelectuais e o desaparecimento crescente dos livros), duvido que a “ Cultura
do espectáculo”, consiga sublimar (só por si) o nosso desejo de “crescer”
enquanto Ser Humano. Confiemos, no entanto, que a Humanidade - com
a Ciência, a Cultura e a Educação que a caracterizam -
saiba humanizar a Pessoa - numa Sociedade livre, culta, desenvolvida:
que dignifique o Homem.
José Alexandre Laboreiro
Publicado in Folha de Montemor edição outubro 2014. Publicado com a
devida autorização do Autor
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