segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

ARTIGO DO DRº LABOREIRO


              O crepúsculo dos intelectuais?

«Como podem os intelectuais, que reflectem, agem, criam, investigam, educam, formam, ser indiferentes à opressão, às tensões, às injustiças, às brutalidades, no mundo que os envolve, como se vivessem numa “torre de marfim”?»

Jorge Sarabando
(in “A Batalha da Memória”)

Numa análise que faz aos tempos que agora vivemos (e que denomina de “A Civilização do Espectáculo”), Mário Vargas Llosa constata que um facto singular da sociedade contemporânea é o eclipse de uma personagem, que há séculos e até há relativamente poucos anos, desempenhava um papel importante na vida das nações: o intelectual  -  opinando que a denominação de “intelectual” só surgiria no século XIX, durante o caso Dreyfus (em França) e as polémicas lançadas por Emile Zola com o seu célebre “Eu Acuso!”, escrito em defesa daquele oficial judeu falsamente acusado de traição à pátria por uma conjura de altos comandos anti-semitas do exército francês. Porém, ainda que o termo “intelectual” só se popularizasse a partir de então, a verdade é que a participação de homens de pensamento e criação na vida pública, nos debates políticos, religiosos e de ideias, remontam aos alvores do Ocidente: presentes na Grécia de Platão e na Roma de Cícero, no Renascimento de Montaigne e Maquiavel, no Iluminismo de Voltaire e de Diderot, no Romantismo de Lamartine e Victor Hugo e em todos os períodos históricos que nos conduziriam à modernidade. E igualmente constatamos que um bom número de destacados escritores e pensadores, paralelamente ao seu trabalho académico ou criativo, influiu com os seus escritos, pronunciamentos e tomadas de posição no acontecer político e social (Bertrand, Russell, Sartre, Camus, Alberto Moravia, Vitorini, Günter Grass, Ortega e Gasset, Unamuno  -  entre outros)  -  intervenções que se registariam nas várias democracias europeias; da mesma forma constatando que, nos nossos dias, teremos de admitir que o intelectual se esfumou dos debates políticos: embora seja verdade que alguns ainda assinam manifestos, enviam cartas aos jornais, se envolvem em polémicas  -  mas nada disso tem repercussões sérias no andamento da sociedade, cujos assuntos económicos, institucionais, culturais se decidem pelo poder político e administrativo e pelos poderes (denominados) fácticos  -  entre os quais os intelectuais primam pela sua ausência.
Amargurados e conscientes da dolorosa situação a que a sociedade os reduziu, a maioria dos intelectuais optou pela discrição ou pela abstenção do debate público. Confinados à sua disciplina ou afazeres particulares, os intelectuais viram as costas ao que, há 50 anos, se chamava “compromisso cívico” ou moral do escritor para com a sociedade. Há excepções, é certo: porém, também existem casos de exibicionismo, de promoção (mais que a defesa de um valor).
E que levaria à volatização e apagamento do intelectual? Consideramos vários factores: entre os quais, o compromisso e simpatias para com os regimes totalitários (como encontramos em alguns intelectuais comprometidos com o nazismo, o fascismo, o salazarismo, o franquismo e o regime soviético e chinês  -  regimes de horrores humanos que determinados intelectuais silenciaram: como sucedeu com o Gulag soviético ou o Holocausto)  -  constituindo, contudo, uma ousadia a luta travada pelo “neo-realismo” português perante a censura (que culminaria no encerramento da Associação Portuguesa de Escritores), bem como é de realçar o papel (de apoio à Cultura e à Escrita) vivenciado pelo Editor  -  que correu riscos (de prisão ou perdas monetárias em resultado de apreensão de edições completas)  -  a lembrar o auge do nazismo hitleriano; e o cortejo de escritores largamente censurados entre nós é infindo -  desde Aquilino a Mário Zambujal (passando por Redol, Cardoso Pires, Manuel da Fonseca, Manuel Ribeiro, Abel Botelho, Mário Castrim, Cezarini, Ary dos Santos, Jorge de Sena, Fernando Namora, Vergílio Ferreira, José Gomes Ferreira, Sttau-Monteiro, Manuel Alegre, etc.).
A própria literatura jornalística era ferozmente perseguida. Dessa violência desumana, damos um breve exemplo, face a um desabafo de Mário Soares a um repórter do “Diário de Lisboa”  -  que se propunha entrevistá-lo; diz-lhe Mário Soares: «Desculpe. Mas antes de começar a responder às suas perguntas, desejo pôr uma questão prévia: valerá a pena dar-lhe uma entrevista sobre o momento político actual (1968) quando sei, com toda a probalidade, que a censura a vai cortar ou, pelo menos, mutilar profundamente? Infelizmente, a dolorosa experiência dos últimos tempos (e nomeadamente no que a mim próprio se refere) não me permite alimentar quaisqueres ilusões a esse respeito...  Pesei esta desagradável eventualidade e, apesar de tudo, disponho a responder-lhe. Porquê? Porque acho ser meu direito fazê-lo, neste momento, como português interessado pela coisa pública e isento de qualquer interesse pessoal. Mais do que isso: porque acho ser meu dever ...»
Outra condicionante dos intelectuais, encontramo-la na pressão exercida pelos grandes empórios económicos; a tal respeito, diz-nos Claude Julien (in “Le Monde Diplomatique”): «A imprensa, todos o sabem, é livre. Esta liberdade continua a ser uma das maiores conquistas  -  e uma das garantias  -  da democracia. Mas, para lá do princípio, que é verdadeiramente feito, nos nossos dias, dessa liberdade? O jugo do dinheiro será menos pesado que o do rei ou do tirano? A Imprensa é livre. Também o sabem alguns grupos gigantes que nunca perdem a oportunidade de alargar o seu império. A sua fome é insaciável. Chamam-lhe liberdade. Liberdade de empresa, bem entendido. Mas toda a liberdade que restringe ou viola a dos outros deixa de ser um direito e torna-se um abuso.»
Sobre o totalitarismo salazarista (a um tempo político, social, cultural e económico), e que era reforçado pela censura da Imprensa, diz-nos Fernando Rosas: «A violência preventiva era um esteio essencial, da segurança e da durabilidade do regime. Na desmobilização, no medo, na interiorização da obediência, numa sociedade onde o peso social e cultural da ruralidade se prolongou bem para além do seu peso económico, ou seja, na eficácia real dessa violência preventiva assentou em larga medida o “saber durar” salazarista»; criando uma clientela intelectual, uma mentalidade atávica e obediente (pelo medo e pelo obscurecimento) -  e perseguindo ferozmente os descontentes que se manifestassem (entre eles, um largo escol de intelectuais): e felizmente que surgem descontentes neste processo dialéctico (a vivenciar a antítese)  -  uma vez que «o exercício da “hegemonia” como processo construtivo tem de ser obra de homens cultos, na dupla e relacional acepção dos indivíduos activos e conscientes aos quais a cultura ... confere, por integração e extensão de conhecimentos capazes de assegurar a sua mais radical autonomia, a sua imprescindibilidade.» (in “Bento de Jesus Caraça  -  um império intelectual entre emancipação e a Cultura”  -  de Luís Augusto Costa Dias).
Henri-Jean Martin diz-nos que o livro já não exerce o mesmo poder que tinha anteriormente, deixou de ser o mestre dos nossos raciocínios ou dos nossos sentimentos face aos novos meios de informação e de comunicação de que hoje em dia dispomos. Com estes golpes na Cultura (a rarefacção dos intelectuais e o desaparecimento crescente dos livros), duvido que a “ Cultura do espectáculo”, consiga sublimar (só por si) o nosso desejo de “crescer” enquanto Ser Humano. Confiemos, no entanto, que a Humanidade  -  com a Ciência, a Cultura e a Educação que a caracterizam  -  saiba humanizar a Pessoa  -  numa Sociedade livre, culta, desenvolvida: que dignifique o Homem. 

José Alexandre Laboreiro    
Publicado in Folha de Montemor edição outubro 2014. Publicado com a devida autorização do Autor


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