Um médico mesmo a calhar...
Certo dia que não consigo situar bem no
tempo, mas já de calor e
mistura de odores denunciando ser
Primavera, regressava à aldeia vindo do monte dos Cardeais, onde tinha ido
consultar um doente, quando me surgiu aquele homem gesticulando, à frente do
automóvel, com ar de grande aflição.
Os travões da minha velha “arrastadeira”
chiaram também aflitivamente, conseguindo estancar a viatura quase a roçar o
desconhecido.
Saí do carro irritado e praguejando mas
logo me contive ao ver o homem de mãos postas em preces de auxílio por todas as
alminhas da minha família.
Ainda de pé atrás e máscara de mal
disposto, indaguei se tinha combinado aposta de ficar vivo depois do meu carro
lhe passar por cima.
Parecendo não me ter ouvido, ou pelo
menos não ser importante dar-me resposta, apontou-me a berma da estrada onde se
encontrava uma carroça e uma velha burra, que pastava por perto, fazendo-me
saber que ali se encontrava sua mulher em trabalhos de dar à luz o seu quinto
filho.
«O
senhor tem que me valer –
repetia-me insistentemente, procurando quebrar o meu pasmo pelo inesperado - na aldeia há um médico… e no seu automóvel
chegamos a tempo do doutor a ajudar a parir.»
Jovem licenciado em medicina, saído da
faculdade uns meses antes, viera iniciar-me na profissão substituindo o velho
colega do partido médico local, gravemente doente.
Só, com meia dúzia de livros de clínica e
uma caixa de ferros polivalente, tive que me socorrer de tudo o que aprendera,
e do que não aprendera, para tratar aquela boa gente isolada por muitos
quilómetros de caminhos velhos.
No
meu pequeno consultório à luz do candeeiro a petróleo, em casa dos doentes, ou
em montes afastados, lá fui tratando febres e outras maleitas, drenando
abcessos, suturando feridas, extraindo algum queixal ou ajeitando um ou outro
osso fracturado...
Mas partos…, felizmente, ninguém nas
redondezas, até à data, me chamara para assistir, a um que fosse.
O que muito me convinha, diga-se em abono
da verdade, pois era assunto médico que, embora com razoável preparação
teórica, me metia respeito e receio de praticar naqueles ermos.
Safara-me até então a velha Maria
Antónia, diplomada por anos de experiência a atender a partos na aldeia e
preferida pelas mulheres, em tão melindrosa ocasião.
Mas naquele momento, na berma de uma
estrada, com uma criança na hora de vir a este mundo no interior de uma
carroça, não havia Maria Antónia que me valesse.
Aturdido com a surpresa do “acontecimento
campestre insólito”, ouvi gemidos vindos do interior da carripana.
Fiquei nervoso mas procurei que o
homem não se apercebesse.
Ele mais parecia ser quem estava prestes
a parir!
Subitamente, enquanto olhávamos especados
um para o outro, em “longa” indecisão do que fazer, fômos accionados por um
grito lancinante da mulher…, logo seguido de um choro melodioso de bébé.
Despertos daquela meia hipnose e
atrapalhação em que tínhamos ficado, corremos em direcção à carroça,
estimulados que ficámos pelos sons anunciadores do que tinha acontecido.
Entre as pernas da mulher estava um lindo
rapazinho que não esperara que o médico o ajudasse a nascer, quem sabe
adivinhando a falta de experiência do clínico em matéria de partos.
O homem sorriu em agradecimentos e
despachou-me com satisfação: «a sua
companhia foi uma benção…, atalhou-me o nervoso miudinho que a gente sente
nestas alturas».
Quando reiniciei a marcha em direcção à
povoação, sorrateiramente incógnito, ainda o ouvi gritar-me com timbre de
grande contentamento: «o doutor nem cá
fez falta!».
AC
Ilustração de Francisco Bilou
3 comentários:
Simplesmente perfeito!
Cumprimentos para o autor.
Excelente, AC... nos contos como peixe na água!
Abraço
PERFEITO retrato de Vidas.
Para guardar.
Abraço
Tói da Dadinha
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