Desta vez, as Memórias Curtas fogem do tom a que habituámos
quem nos lê regularmente. Uma mudança de tema, de vez em quando, pode ser
estimulante. O amigo leitor ajuizará.
Alguns,
por certo, esperariam que, em Maio, revisitássemos a feira tradicional ou que,
por ser Primavera, nos deixássemos seduzir pela exuberância dos cheiros e das
cores ou pelo trabalho silencioso nas hortas vicejantes. Lá iremos um dia
destes. Hoje, não estamos para aí virados.
Pensámos
partilhar convosco memórias de leituras e de livros que nos acompanham há
décadas. Alguns dormem connosco à cabeceira da cama. Pensando bem, os livros,
nas suas mais diversas versões, continuam a ser grandes tesouros da nossa
memória colectiva. É bom arejá-los, com alguma frequência, para os pôr a falar.
Esta
ideia, um tanto ou quanto inesperada, surgiu há dias, enquanto arquitectávamos
o que escrever neste mês de Maio. Envoltos em livros, de um lado, e com a
televisão ligada, do outro, sentimo-nos, a dado passo, bombardeados pelas notícias
que saíam do pequeno ecrã: violentos atentados à bomba e mulheres sequestradas
em território americano; derrocada fatal em fábrica no Bangladesh… Uma
calamidade! As notícias internas também não se afastavam muito da desgraça:
desemprego galopante, corrupção, austeridade, cortes e mais cortes….
Às duas
por três, demos connosco a contemplar e a imaginar futuros cenários para aquela
quantidade imensa de livros, que fomos adquirindo ao longo da vida. São o nosso
ouro! Com as voltas que o mundo dá, ainda acabamos por aí, armados em
alfarrabistas.
Aproximámo-nos
da estante e deixámos deslizar os dedos pelas lombadas polícromas, como quem
passa as mãos pelo teclado de um piano. A dado momento, o dedo indicador
emperrou num dos livros que estava um pouco mais saliente. Saiu na rifa O
Sermão do Bom Ladrão, escrito, no séc. XVII, pelo Padre António Vieira. Abrimos
numa página, ao acaso, para lermos um excerto.
Há
cerca de 350 anos, na Misericórdia de Lisboa, o grande orador português, o
conselheiro íntimo do rei D. João IV, pregava as seguintes palavras:
“Navegava
o Imperador Alexandre Magno em uma poderosa armada pelo Mar Eritreu a
conquistar a Índia, e como fosse trazido à sua presença um pirata que por ali
andava roubando os pescadores, repreendeu-o muito Alexandre de andar em tão mau
ofício; porém, ele, que não era medroso nem lerdo, respondeu assim: - Basta,
senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em
uma armada, sois imperador? - Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é
grandeza; o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os
Alexandres. […]”
Folheámos
umas quantas páginas. Um pouco mais à frente, o padre jesuíta continuava a sua
pregação, dizendo:
“Suponho
finalmente que os ladrões de que falo não são aqueles miseráveis, a quem a
pobreza e vileza de sua fortuna condenou a este género de vida, porque a mesma
sua miséria, ou escusa, ou alivia o seu pecado, como diz Salomão […] O ladrão
que furta para comer, não vai, nem leva ao Inferno; os que não só vão, mas
levam, de que eu trato, são outros ladrões, de maior calibre e de mais alta
esfera, os quais debaixo do mesmo nome e do mesmo predicamento, distingue muito
bem S. Basílio Magno […] Não são só ladrões, diz o santo, os que cortam bolsas
ou espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa: os ladrões que
mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis
encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a
administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e
despojam os povos. – Os outros ladrões roubam um homem: estes roubam cidades e
reinos; os outros furtam debaixo do seu risco: estes sem temor, nem perigo; os
outros, se furtam, são enforcados: estes furtam e enforcam: Diógenes, que tudo
via com mais aguda vista que os outros homens, viu que uma grande tropa de
varas e ministros de justiça levavam a enforcar uns ladrões, e começou a
bradar: - Lá vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos. – Ditosa Grécia,
que tinha tal pregador!”
Arrumámos
o livro do Padre António Vieira no respectivo lugar. O discurso do pregador
ainda hoje agita as consciências. Houve quem lhe chamasse visionário.
Entretanto,
os nossos dedos continuaram a sua caminhada, estante fora. Desta vez, detiveram-se
numa antologia de textos escritos por Alexandre Herculano, o grande historiador
e um dos precursores do movimento romântico em Portugal. Cândido
Beirante , nosso antigo professor na Faculdade de Letras de
Lisboa, foi um dos responsáveis pela antologia.
Em 1851, perante a situação desastrosa em que se encontrava
Portugal, Alexandre Herculano deixou-nos algumas reflexões, de que
seleccionamos um pequeno excerto:
“Estamos
pobres, somos ignorantes, vivemos na corrupção e no aviltamento. Em civilização
material estanciamos dois furos abaixo da Turquia, e outros tantos acima dos
Hotentotes. Agitamo-nos no círculo estreito de revoluções incessantes e
estéreis; a legalidade tornou-se um impossível, a acção governativa um problema
insolúvel.
Dir-se-ia,
ao considerar tudo isto, que somos de uma origem diferente dos outros povos da
Europa. […]
É a
questão de sabermos se havemos de ficar eternamente sem vias de comunicação,
sem crédito e sem instrução pública; se os capitais do país hão-de continuar a
esterilizar-se no giro improdutivo da agiotagem, em vez de serem fontes de
produção e de riqueza pública; se o imposto há-de continuar a chegar cerceado
de metade à mão do Governo, e ser de novo reduzido a um terço pela peneira dos
agiotas, antes de vir distribuir-se em magros salários pelos servidores do
Estado; se os ministros hão-se ser pagos pelo Estado para trabalhar em favor da
nação, ou subsidiados pela agiotagem para favorecer os seus interesses; se
há-de haver um governo independente, ou se havemos de ficar eternamente
enfeudados aos agiotas, ao contrato do tabaco; se hão-de governar os homens
mais probos e inteligentes dos partidos, ou alguns parvenus insolentes que se
enriquecem à custa das concessões extorquidas a um Governo sólido e venal, e a
uma Câmara servil, desmoralizada e inepta.”
As
leituras continuavam pesadas. Apontámos o nosso olhar para um dos volumes de As
Farpas, escritas a meias por Eça de Queirós e Ramalho Ortigão. Esperávamos
encontrar ali uma linguagem crítica, mas menos austera, cheia de ironia ou
mesmo de comicidade. Ao abrir o livro, calhou-nos um dos textos do autor de Os
Maias:
“Há
muitos anos a política em Portugal apresenta este singular estado:
Doze ou
quinze homens sempre os mesmos, alternadamente, possuem o poder, perdem o
poder, reconquistam o poder, trocam o poder… O poder não sai duns certos
grupos, como uma péla que quatro crianças, aos quatro cantos da sala, atiram
umas às outras, pelo ar, numa explosão de risadas.
Quando
quatro ou cinco daqueles homens estão no poder, esses homens são, segundo a
opinião e os dizeres de todos os outros que lá não estão, - os corruptos, os
esbanjadores da fazenda, a ruína do país, e outras injúrias pequenas, mais
particularmente dirigidas aos seus carácteres e às suas famílias.
Os
outros, os que estão no poder são, segundo a sua própria opinião e os seus
jornais – os verdadeiros liberais, os salvadores da causa pública, os amigos do
povo, os interesses do país e a pátria.
Mas, cousa notável!
Os
cinco que estão no poder, fazem tudo o que podem – intrigam, trabalham, para
continuar a ser os esbanjadores da fazenda e a ruína do país, durante o maior
tempo possível! E os que não estão no poder movem-se, conspiram, cansam-se para
deixar de ser – o mais depressa que puderem – os verdadeiros liberais e os
interesses do país! […]
Ora
como todos os ministros são tirados deste grupo de doze ou quinze indivíduos,
não há nenhum deles que não tenha sido por seu turno esbanjador da fazenda e
ruína do país.”
Por
fim, um dos volumes da obra de Raul Brandão sobressaía no meio dos outros, como
que a despertar a nossa atenção. Não resistimos à tentação de o folhear e ler
uma pequena passagem. No primeiro quartel do séc. XX, o dramaturgo definia
Portugal como “um bacanal de percevejos num colchão podre.” Olhando a circunstância
histórica em que vivia, desiludido com a classe dirigente, Raul Brandão
escreveu nas suas Memórias:
“A
nossa época é horrível porque já não cremos – e não cremos ainda. O passado
desapareceu, de futuro nem alicerces existem. E aqui estamos nós sem tecto,
entre ruínas, à espera.”
Bem! É
melhor não pôr mais livros a falar. Voltaremos um dia destes.
Vitor Guita
2 comentários:
Muito bem!
Gostei imenso de voltar a ler o que esses homens inteligentes escreveram, apesar de não nos trazerem novidades.
Isto serve para podermos avaliar quão pouco inteligentes somos.
Aparecem pessoas que procuram esclarecer-nos e o que é que nós fazemos? Ouvimos e lemos e ficamos no deixa andar, porque afinal isto sempre assim foi e continuará a ser, pois quem somos nós para mudificar as coisas?
E assim os xicoexpertos eternizam-se no Poder. É como se o país e nós todos fossemos propriedade deles. Somos escravos, é o que somos.
E andamos nós a acreditar que Portugal foi um dos primeiros países a abolir a escravatura... Além de escravos também somos muito ingénuos...
Ou seremos parvos?...
Obrigado Prof. Victor Guita. Bela lição nos deu.
Ao comentador das 17:30 quero dar apoio naquilo que diz.
E acrescentar que também somos masoquistas. Pois se há tanto tempo os conhecemos e há tanto tempo os temos identificados, porque insistimos em votar neles?
Somos parvos, positivamente e definitivamente.
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