terça-feira, 4 de junho de 2013

MEMÓRIAS CURTAS - Rubrica mensal a cargo do Prof Vitor Guita

Desta vez, as Memórias Curtas fogem do tom a que habituámos quem nos lê regularmente. Uma mudança de tema, de vez em quando, pode ser estimulante. O amigo leitor ajuizará.
                Alguns, por certo, esperariam que, em Maio, revisitássemos a feira tradicional ou que, por ser Primavera, nos deixássemos seduzir pela exuberância dos cheiros e das cores ou pelo trabalho silencioso nas hortas vicejantes. Lá iremos um dia destes. Hoje, não estamos para aí virados.
                Pensámos partilhar convosco memórias de leituras e de livros que nos acompanham há décadas. Alguns dormem connosco à cabeceira da cama. Pensando bem, os livros, nas suas mais diversas versões, continuam a ser grandes tesouros da nossa memória colectiva. É bom arejá-los, com alguma frequência, para os pôr a falar.
                Esta ideia, um tanto ou quanto inesperada, surgiu há dias, enquanto arquitectávamos o que escrever neste mês de Maio. Envoltos em livros, de um lado, e com a televisão ligada, do outro, sentimo-nos, a dado passo, bombardeados pelas notícias que saíam do pequeno ecrã: violentos atentados à bomba e mulheres sequestradas em território americano; derrocada fatal em fábrica no Bangladesh… Uma calamidade! As notícias internas também não se afastavam muito da desgraça: desemprego galopante, corrupção, austeridade, cortes e mais cortes….
                Às duas por três, demos connosco a contemplar e a imaginar futuros cenários para aquela quantidade imensa de livros, que fomos adquirindo ao longo da vida. São o nosso ouro! Com as voltas que o mundo dá, ainda acabamos por aí, armados em alfarrabistas.

                Aproximámo-nos da estante e deixámos deslizar os dedos pelas lombadas polícromas, como quem passa as mãos pelo teclado de um piano. A dado momento, o dedo indicador emperrou num dos livros que estava um pouco mais saliente. Saiu na rifa O Sermão do Bom Ladrão, escrito, no séc. XVII, pelo Padre António Vieira. Abrimos numa página, ao acaso, para lermos um excerto.

                Há cerca de 350 anos, na Misericórdia de Lisboa, o grande orador português, o conselheiro íntimo do rei D. João IV, pregava as seguintes palavras:
                “Navegava o Imperador Alexandre Magno em uma poderosa armada pelo Mar Eritreu a conquistar a Índia, e como fosse trazido à sua presença um pirata que por ali andava roubando os pescadores, repreendeu-o muito Alexandre de andar em tão mau ofício; porém, ele, que não era medroso nem lerdo, respondeu assim: - Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador? - Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza; o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres. […]”
                Folheámos umas quantas páginas. Um pouco mais à frente, o padre jesuíta continuava a sua pregação, dizendo:
                “Suponho finalmente que os ladrões de que falo não são aqueles miseráveis, a quem a pobreza e vileza de sua fortuna condenou a este género de vida, porque a mesma sua miséria, ou escusa, ou alivia o seu pecado, como diz Salomão […] O ladrão que furta para comer, não vai, nem leva ao Inferno; os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões, de maior calibre e de mais alta esfera, os quais debaixo do mesmo nome e do mesmo predicamento, distingue muito bem S. Basílio Magno […] Não são só ladrões, diz o santo, os que cortam bolsas ou espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa: os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. – Os outros ladrões roubam um homem: estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco: estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados: estes furtam e enforcam: Diógenes, que tudo via com mais aguda vista que os outros homens, viu que uma grande tropa de varas e ministros de justiça levavam a enforcar uns ladrões, e começou a bradar: - Lá vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos. – Ditosa Grécia, que tinha tal pregador!”
                Arrumámos o livro do Padre António Vieira no respectivo lugar. O discurso do pregador ainda hoje agita as consciências. Houve quem lhe chamasse visionário.
                Entretanto, os nossos dedos continuaram a sua caminhada, estante fora. Desta vez, detiveram-se numa antologia de textos escritos por Alexandre Herculano, o grande historiador e um dos precursores do movimento romântico em Portugal. Cândido Beirante, nosso antigo professor na Faculdade de Letras de Lisboa, foi um dos responsáveis pela antologia.
Em 1851, perante a situação desastrosa em que se encontrava Portugal, Alexandre Herculano deixou-nos algumas reflexões, de que seleccionamos um pequeno excerto:
                “Estamos pobres, somos ignorantes, vivemos na corrupção e no aviltamento. Em civilização material estanciamos dois furos abaixo da Turquia, e outros tantos acima dos Hotentotes. Agitamo-nos no círculo estreito de revoluções incessantes e estéreis; a legalidade tornou-se um impossível, a acção governativa um problema insolúvel.
                Dir-se-ia, ao considerar tudo isto, que somos de uma origem diferente dos outros povos da Europa. […]
                É a questão de sabermos se havemos de ficar eternamente sem vias de comunicação, sem crédito e sem instrução pública; se os capitais do país hão-de continuar a esterilizar-se no giro improdutivo da agiotagem, em vez de serem fontes de produção e de riqueza pública; se o imposto há-de continuar a chegar cerceado de metade à mão do Governo, e ser de novo reduzido a um terço pela peneira dos agiotas, antes de vir distribuir-se em magros salários pelos servidores do Estado; se os ministros hão-se ser pagos pelo Estado para trabalhar em favor da nação, ou subsidiados pela agiotagem para favorecer os seus interesses; se há-de haver um governo independente, ou se havemos de ficar eternamente enfeudados aos agiotas, ao contrato do tabaco; se hão-de governar os homens mais probos e inteligentes dos partidos, ou alguns parvenus insolentes que se enriquecem à custa das concessões extorquidas a um Governo sólido e venal, e a uma Câmara servil, desmoralizada e inepta.”
                As leituras continuavam pesadas. Apontámos o nosso olhar para um dos volumes de As Farpas, escritas a meias por Eça de Queirós e Ramalho Ortigão. Esperávamos encontrar ali uma linguagem crítica, mas menos austera, cheia de ironia ou mesmo de comicidade. Ao abrir o livro, calhou-nos um dos textos do autor de Os Maias:

                “Há muitos anos a política em Portugal apresenta este singular estado:
                Doze ou quinze homens sempre os mesmos, alternadamente, possuem o poder, perdem o poder, reconquistam o poder, trocam o poder… O poder não sai duns certos grupos, como uma péla que quatro crianças, aos quatro cantos da sala, atiram umas às outras, pelo ar, numa explosão de risadas.
                Quando quatro ou cinco daqueles homens estão no poder, esses homens são, segundo a opinião e os dizeres de todos os outros que lá não estão, - os corruptos, os esbanjadores da fazenda, a ruína do país, e outras injúrias pequenas, mais particularmente dirigidas aos seus carácteres e às suas famílias.
                Os outros, os que estão no poder são, segundo a sua própria opinião e os seus jornais – os verdadeiros liberais, os salvadores da causa pública, os amigos do povo, os interesses do país e a pátria.
Mas, cousa notável!
                Os cinco que estão no poder, fazem tudo o que podem – intrigam, trabalham, para continuar a ser os esbanjadores da fazenda e a ruína do país, durante o maior tempo possível! E os que não estão no poder movem-se, conspiram, cansam-se para deixar de ser – o mais depressa que puderem – os verdadeiros liberais e os interesses do país! […]
                Ora como todos os ministros são tirados deste grupo de doze ou quinze indivíduos, não há nenhum deles que não tenha sido por seu turno esbanjador da fazenda e ruína do país.”
                Por fim, um dos volumes da obra de Raul Brandão sobressaía no meio dos outros, como que a despertar a nossa atenção. Não resistimos à tentação de o folhear e ler uma pequena passagem. No primeiro quartel do séc. XX, o dramaturgo definia Portugal como “um bacanal de percevejos num colchão podre.” Olhando a circunstância histórica em que vivia, desiludido com a classe dirigente, Raul Brandão escreveu nas suas Memórias:
                “A nossa época é horrível porque já não cremos – e não cremos ainda. O passado desapareceu, de futuro nem alicerces existem. E aqui estamos nós sem tecto, entre ruínas, à espera.”
                Bem! É melhor não pôr mais livros a falar. Voltaremos um dia destes.

Vitor Guita


2 comentários:

Anónimo disse...

Muito bem!

Gostei imenso de voltar a ler o que esses homens inteligentes escreveram, apesar de não nos trazerem novidades.
Isto serve para podermos avaliar quão pouco inteligentes somos.
Aparecem pessoas que procuram esclarecer-nos e o que é que nós fazemos? Ouvimos e lemos e ficamos no deixa andar, porque afinal isto sempre assim foi e continuará a ser, pois quem somos nós para mudificar as coisas?
E assim os xicoexpertos eternizam-se no Poder. É como se o país e nós todos fossemos propriedade deles. Somos escravos, é o que somos.
E andamos nós a acreditar que Portugal foi um dos primeiros países a abolir a escravatura... Além de escravos também somos muito ingénuos...
Ou seremos parvos?...

Anónimo disse...

Obrigado Prof. Victor Guita. Bela lição nos deu.
Ao comentador das 17:30 quero dar apoio naquilo que diz.
E acrescentar que também somos masoquistas. Pois se há tanto tempo os conhecemos e há tanto tempo os temos identificados, porque insistimos em votar neles?

Somos parvos, positivamente e definitivamente.