Leitora amiga sabendo que o Al Tejo dedica um carinho
especial à poesia, e que sempre temos destacado a poesia feita pelos poetas da
nossa terra fez-nos chegar às mãos um pequeno caderno incluindo poemas de uma
tal Maria Rosa Ruzado, natural do Alandroal e ainda com descendentes a lá
residirem.
Segundo informações recolhidas tem mais de 120 anos e pela
poesia que o mesmo encerra, nota-se que viveu uma vida de sofrimento e desgostos
na qual a desgraça e a morte estão sempre presentes.
Ao mesmo tempo que transcrevemos a sua poesia iremos colocar
as páginas do referido “caderninho” , no intuito de dar mais realismo a tudo o
que lhe ia no pensamento e na alma.
Devido à natureza mórbida de que se revestem os versos
anexos, aconselhamos a pessoas mais sensíveis a não lerem a obra que se segue.
Também porque os versos aqui divulgados não se inserem na
linha porque este espaço se norteia, iremos proceder á sua publicação de uma só
vez.
A transcrição que se segue chamou a nossa atenção não só
pelo tempo decorrido
e altura em que foi
escrita, mas também na expectativa de haver alguém interessado no estudo do
intelecto de quem os escreveu.
Digo adeus aos meus
parentes
Digo adeus aos meus
conhecidos
Digo adeus aos meus
pais
Digo adeus aos meus
irmãos queridos.
Despeçome da minha
terra
E dos campos em redore
A minha desgraça é maior
De que fome, peste e guerra;
É pior do que uma fera
O meu mal de indolentes
Adeus amigos decentes
Com lágrimas os vou lembrando
Eu me despeço chorando
Digo adeus aos meus
parentes
Choro a minha triste sorte
Vivo no mundo sem ventura
Se o meu mal não tem cura
Deus me deia a mim a morte
A minha dor é tão forte
O meu coração dá gemidos
Eu recupero os meus sentidos
Para fazer meu despedimento
E com pena e sentimento
Digo adeus aos meus
conhecidos.
Adeus villa do
Alandroal
Adeus minha terra mimosa
Para minha miséria lastimosa
Deus deia remédio ao meu mal
A mim só a miséria me vale
E o meu coração dá ais
Os meus golpes são mortaes
De todos me desuniu
Eu me vou a despedir
Digo adeus aos meus
pais.
Na hora da minha abalada
Já estou sentindo a triste dor
Eu a toudos tenho
amor
Que deixo nesta terra amada; a mim me acuda a mãe sagrada
Aos meus ais enternecidos
Os meus tristes gemidos
A toudos darão paixão
De luto se veste o meu coração
Digo adeus aos meus
irmãs queridos
Fim
Despedimento a Manuel
Cainó
A minha miséria está em ser
Que é mais amargosa que o fel
Adeus amigo Manuel
Que eu inda te
desejava ver;
Eu te queria agradecer
Inda te queria
abraçar
Eu queria-te recompensar
Os passos que por mim deste
E no campo mais celeste
Dês te ade acompanhar.
Fim
Motte
Sou no mundo uma
infeliz
Nesta minha enfermidade
Sou no mundo uma
desgraçada
Com dezoito anos de
idade.
Digo mal à minha vida
Que governo será o meu
Vejome preza das mãos de Deus
Já dei fim à minha lida.
Sou uma pessoa perdida
A minha sorte assim o quis
Mais valia nunca ser Luís (?)
Para ter esta infeliz sorte
Aqui me salvaram da morte
Mas sou no mundo uma
infeliz
Levar os dias a chorar
Pensando no meu triste mal
Vejoma no triste hospital
Para tantos trabalhos passar
Por fim desgraçada ficar
Deitando mãos à caridade
Ó Senhor da Piedade
E Senhora do Rosário
A mim me sirvam de amparo
Nesta minha
enfermidade
Ó cidade de Lisboa
Thomarate costas voltar
E a minha terra avistar
Que o meu peito abençoa
Meu coração é uma lagoa
De tormentos que aqui tenho passado
Vejome em miserável estado
Que entoam os meus ais
Peço dias de vida aos meus pais
Sou no mundo um
desgraçado
Aqui destes desgraçados entes
Eu me despeço em geral
Adeus empregados do hospital
Adeus toudos os doentes
Aqui toudos são padecentes
Toudos sofremos da crueldade
Eu com bastante vontade
As costas lhe quero voltar
Uma perna cá vim deixar
Com dezoito anos de
idade.
Fim
Motte
Desse tristonho
hospital
O fúnebre cortejo sai
Chorando por quem
morreu
Nem uma pessoa vai
Na funerária carruagem
Em tosca sarapilheira
Lá vai a pobre custureira
N´outra ora adorada imagem;
Da sua camaradagem
Ninguém se vê ao portal
Sofreu o golpe fatal
Sem ter perdão no seu erro
Por fim lá sai o enterro
Desse tristonho
hospital
Nem o seu vil sedutor
Ao ato comparece
De certo se esqueceu
Da victima do seu amor;
Sem um gemido de dor
Nem simplesmente um ai
Sem beijos de mãe nem pai
A morte levou Cecília
Sem um ente de família
O fúnebre cortejo sai
Depois de transpor a porta
O carro desapareceu
Lá vai mas ninguém conhece
Quem é a infeliz morta;
Decerto o carro transporta
Essa que a vida perdeu
Se esse golpe sofreu
Na mais triste desventura
Já mais uma creatura
Chorando por quem
morreu.
Ouviuse no cemitério
O triste som da sineta
A provisória carreta
Que entra no portal funério
Na qual observando o mistério
O corpo do carro sae
Cecília na vala cae
Finda ali martírios seus
Ao dar o último adeus
Nem uma pessoa vai
Fim
Motte
Quem o nome de mãe
tem
Nunca passa sem
cantar
Quantas vezes a mãe
canta
Com vontade de
chorar.
A mãe deve saber
Com seu coração de dor
Que o fruto do primeiro amor
Fez sua mãe padecer;
Antes do filho ela ter
Passou dores como ninguém
Com muitas lágrimas também
Vai lavando o seu rosto
Passa um cruel desgosto
Quem o nome de mãe
tem
Com o filho nos seus braços
Nunca vive descançada
Anda sempre sobresaltada
A fim de lhe seguir os passos
No seu peito tem os traços
Com que o filho faz calar
Mas se ella o ouvir chorar
Para o berço vai correndo
E para o ir entretendo
Nunca passa sem
cantar
Mesmo quando o está lavando
E quando o está vestindo
De beijos o vai cobrindo
Para o ir alimentando;
Pega no filho brincando
Pela amisade ser tanta
Com sua dor na garganta
Vai chorando mil mágoas
Com os olhos arrasados de lágrimas
Quanta vezes a mãe
canta
O filho depois de criado
Já da mãe não quer saber
Diz-lhe que ganhe para comer
Deixa a bem abandonada
Segue pelo caminho errado
A desgraça vai thomar
Mas se prezo chega a estar
Lá na prisão sem ninguém
Então se lembra da mãe
Com vontade de
chorar.
Fim
Irmão para Irmã
Motte
Que fazes irmã
querida
Numa casa tolerada
Creada com tanto mimo
Para seres tão
desgraçada.
Quando daqui me ausentei
De pouca idade ficaste
E para o bem que precisaste
Em bom lugar te deixei;
Agora que regressei
Digo mal à minha vida
Vejo-te mulher perdida
A tantos vícios entregue
D´entro deste frio albergue
Que fazes irmã
querida.
Se ainda a morte me poupar
Para tornar ao meu paiz
Foi para ver esta infeliz.
Que o meu nome mascarrou
Nem as cinzas respeitou
Da nossa mãe adorada
Deixei-te tão bem guardada
N´aquelle santo lugar
E agora te venho achar
Numa casa tolerada
Mais valia que a morte
Em pequena te roubasse
Para que eu não observasse
Agora tão triste sorte
Meu sentimento é tão forte
Pois perco a quem mais estimo
Suspiro choro e lastimo
A sorte d´uma irmã minha
Para isso seu pai a tinha
Creado com tanto mimo
Se o nosso pai fosse vivo
Não sei hoje o que faria
Oh! De paixão morreria
Ou era pai vingativo
Não sei qual foi o motivo
De sorte tão mal fadada
Tu irmã tão bem creada
Com tanto mimo e cuidado
Seduziu-te algum malvado
Para seres tão
desgraçada.
2ª Irmã para
Irmão
Perdoa querido irmão
Se o teu nome
mascarrei
Não tenho ninguém por
mim
Nesta vida acabarei
Quando daqui te ausentaste
Fiquei de menor idade
Querias minha felicidade
Em bom lugar me deixaste:
Agora que regressaste
Virei-me na prostituição
Sou a ré da maldição
Maldição sobre mim cae
Pelas cinzas do nosso pae
Perdoa-me querido
irmão
Nessa casa abençoada
Passei eu os primeiros anos
Os vadios e as mundanas
Chamavam-me desgraçada;
Com promessas enganada
Meu santo lugar deixei
Cahi não me levantei
Envolverame na desgraça
Que queres irmão que eu faça
Se o teu nome
mascarrei
Nunca mais para mim olharam
Os falsos adoradores
E alguns caluniadores
Nunca mais de mim trataram
Esses que tanto gritavam
Para ver meu triste fim
Fizeram tanto motim
Enquanto fui recolhida
E agora que estou perdida
Não tenho ninguém
para mim
Eu conheço o mal que fiz
Em praticar tais vexames
Fieime em falares infames
Que me fizeram infeliz
Se a minha sorte hoje quis
Algum remédio acharei
Irmão já que te encontrei
Faz de mim o que entenderes
Que se tu não me valeres
Nesta vida acabarei.
3º Resposta de Irmão para Irmã
Levantate irmã
querida
Que inda é ocasião
Eu serei o teu abrigo
Que é dever de um bom
irmão
Quando o nosso pai morreu
Inda antes da sua morte
Para tratar da tua sorte
Alguns conselhos me deu
Em seu lugar fiquei eu;
Para olhar pela tua vida
Se hoje estás arrependida
De dares tão feio passo
Segura-te a este braço
Levantate irmã
querida
……………………….
………………………
………………………….
Mágoas que um irmão passa
Tem pouca comparação
Se quizeres o meu perdão
Pelo mal que cometteste
Vens achar o que perdeste
Que inda é ocasião
Se não quizeres ouvir
Os conselhos que eu te dou
Depressa para longe vou
Nunca mais cá hei-de vir.
Tu não podes existir
Cercada de tanto perigo
Não regeites vem comigo
Que terás melhor futuro
Ponho-te em lugar seguro
Eu serei o teu abrigo
A minha honra e o meu brio
Este é que é o dever que eu tinha
De erguer uma irmã minha
Da desgraça em que cahio
Foi isto que o pai pedio
Que te desse proteção
Faço a minha obrigação
Qumbrindo o que prometi
Foi de olhar por ti
Que é dever de um bom
irmão
Epilogo
Adeus irmãs na
desgraça
Já cá não eide voltar
Um irmão igual ao meu
Custa muito a
encontrar
Hoje se acabou para mim
Tão vergonhosa vivença
Já minha triste presença
Servia de botequim
Tudo quanto é ruim
Neste lugar se passa
Aquela dor me trespassa
Minha alma está em tormento
Por ser meu despedimento
Adeus irmãs na
desgraça
Daqui me fugio a virtude
Dentro desta espelunca medonha
Aqui se perde a vergonha
Honra decoro e saúde
Até hoje inda não pude
Esta vivenda deixar
Hoje mevou levantar
Do abismo em que cahi
Vou agarrar o que perdi
Já cá não eide voltar
Adeus irmãs desgraçadas
Sois filhas da desfurtuna
Por não haver uma calunna
Onde estejão encostadas;
Órfãs abandonadas
Que pai e mãe lhes morreu
Sendo pobre como eu
Para esta casa a morrer vêm
Mas é porque não teem
Um irmão igual ao meu
Fica-te ó casa infamante
Já não sou tua inquilina
A tua proteção divina
Me secorreu neste instante
Esta vida estravagante
Para mim veio acabar
Irmão voute acompanhar
Fugimos daqui depressa
Que alma nobre como essa
Custa muito a
encontrar
FIM
Nota:
As considerações de duas poetisas que normalmente colaboram no Al Tejo:
Lisette:
As considerações de duas poetisas que normalmente colaboram no Al Tejo:
Lisette:
Li esta
“maravilha rara” que fizeste o favor de dar a conhecer.
Fiquei deslumbrada e enternecida, com o testemunho tão simples,
mas tão profundo e tão sofrido, desta “menina-mulher” de 18 anos.
Alguém deveria, tal como tu dizes, fazer um estudo aprofundado,
desta personalidade e daquilo que ela, à sua maneira, tentou dizer ao mundo
através de palavras simples mas tão cheias de conteúdo.
É uma relíquia que já guardei e que irei ler e reler, pois é uma
história de vida que nos faz pensar e nos transporta ao tempo em que teve lugar
e que nos leva a concluir, que esta menina-mulher, foi uma vítima inconformada
que usou a palavra, através da poesia, como forma de minimizar o sofrimento em
que viveu.
É realmente uma maravilha.
Obrigada Chico.
Ausenda:
Estas poesias são de uma profundidade admirável, embora chocante,manifestam um sofrimento atroz.
A senhora que sentiu necessidade de transpor para o papel o que lhe ia na alma, revela cultura, sensibilidade e bastante coragem.
Fiquei, verdadeiramente, impressionada!
Ausenda
Estas poesias são de uma profundidade admirável, embora chocante,manifestam um sofrimento atroz.
A senhora que sentiu necessidade de transpor para o papel o que lhe ia na alma, revela cultura, sensibilidade e bastante coragem.
Fiquei, verdadeiramente, impressionada!
Ausenda
9 comentários:
Lindíssima poesia.
Muita desta "sabedoria poética" se perdeu e a alguma ainda se consegue ter acesso, como demonstrado agora pelo Al Tejo, com as minhas felicitações.
O tempo decorrido, os nomes, as situações ilustram bem o que se passou (passa-se ainda) no âmago de muitas famílias.
Diria, sinistras vivências de tempos idos de miséria que, ninguém o desejando,estão de volta.
Aqui, junto a nós, elas florescem "pesarosamente semelhantes".
A Segurança Social, as Instituições de Solidariedade Social, as Organizações para-Militares e o anónimo cidadão tem, devem ter, uma participação activa para a sua "sinalização" e para o seu EFICAZ ACOMPANHAMENTO e...APOIO.
Interessando-me imenso pelo relacionamento dos nomes não deixarei, se para tanto......., de indagar o Ruzado (Rosado) que poderá advir dos vizinhos de Espanha e o Cainó (lá das zonas dos Pomarinhos).
É que um e outro apelidos se encontram, um pouco mais tarde que 120 anos.
Trabalhemos, trabalhemos e exijamos soluções aos parceiros (toda a sociedade em que nos inserimos).
Não nos fiquemos pelo comentário fútil da esplanada, actuemos ENQUANTO É TEMPO.
Perante a leitura "destes horríveis desabafos" não me permitiu a sensibilidade, nem a emoção, ficar calado.
Irei á Fonte da Vila, em vésperas do S.João
A. Fontes Coelho
É pá!
Isto é mesmo à campa.
O Manuel Cainó era o marido da Ana Canhota e moravam no Pomarinho.
Após a morte do marido, a Ana veio morar para a sua casa na vila, perto da casa da Mónica. (Onde morou a Perpétua) Se fossem vivos, deveriam ter cerca de 120 anos...
Estas poesias são de uma profundidade admirável, embora chocante,manifestam um sofrimento atroz.
A senhora que sentiu necessidade de transpor para o papel o que lhe ia na alma, revela cultura, sensibilidade e bastante coragem.
Fiquei, verdadeiramente, impressionada!
Ausenda
O ALANDROAL SEMPRE FOI TERRA DE ARTISTAS, MAS DESCONHECIDOS, TIRANDO UM OU DOIS.
POR AQUI TUDO É ARTISTA.
é muito intelectual, é fino...
Li esta “maravilha rara” que fizeste o favor de dar a conhecer.
Fiquei deslumbrada e enternecida, com o testemunho tão simples, mas tão profundo e tão sofrido, desta “menina-mulher” de 18 anos.
Alguém deveria, tal como tu dizes, fazer um estudo aprofundado, desta personalidade e daquilo que ela, à sua maneira, tentou dizer ao mundo através de palavras simples mas tão cheias de conteúdo.
É uma relíquia que já guardei e que irei ler e reler, pois é uma história de vida que nos faz pensar e nos transporta ao tempo em que teve lugar e que nos leva a concluir, que esta menina-mulher, foi uma vítima inconformada que usou a palavra, através da poesia, como forma de minimizar o sofrimento em que viveu.
É realmente uma maravilha.
Obrigada Chico.
Lisette
Sofrimento atroz, do corpo e da alma, é o que a poetisa nos transmite passados mais de cem anos. Maria Rosa(embora esteja escrito "goza") diz-nos em verso que se prostituía e o desespero que isso lhe causava. O irmão, uma daquelas almas raras neste mundo a que chamam "anjo da guarda" dá-lhe a mão.
Mas a doença física é mortal..., provavelmente a Tuberculose..., na era pré-tratamento dizimava famílias inteiras. A tristeza e melancolia dos poemas levam-me também a crer nesse diagnóstico.
Bem hajas Maria Rosa.
LG
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