Olha as ceifeiras
Tão engraçadas,
Lenços de chita,
Saias rodadas.
Saias rodadas,
Chapéus ao lado.
Ora aqui está
Um rancho engraçado.
A
simplicidade e o pitoresco destes versos não param de ressoar nos nossos
ouvidos. São ecos, talvez, das Memórias de Junho, que nos fizeram viajar pelo
universo da “aceifa”. Ou será a nossa costela folclorística a querer
manifestar-se?
A
passagem, ainda que breve, pelo Rancho dos Fazendeiros constituiu uma das
experiências marcantes da nossa juventude.
Estávamos no Verão de 1967, nas vésperas de um Festival de Folclore a
realizar no Pavilhão dos Desportos, em Lisboa. O então director e ensaiador do Rancho,
Feliciano Rabaça do Carmo, desafiou-nos para cantar uma desgarrada em pleno
ringue do Pavilhão, ao lado de uma das belíssimas cantadeiras do grupo. Por
razões de força maior, o cantador habitual estava impossibilitado de acompanhar
os Fazendeiros nessa actuação.
Estivemos, há dias, com o António José Cinco-Réis a rememorar letras e
músicas que tiveram assinalável êxito junto do público amante do folclore e não
só. A Cantiga do Cegonho, musicada por Nicolau Catita, arrancava
sistematicamente longos e efusivos aplausos da assistência, obrigando a
frequentes repetições. O António José destacou ainda as inúmeras actuações no
Solar da Hermínia, em Benavente, onde o Rancho de Montemor gozava de grande
estima e admiração.
Consta
que, certo dia, foi pedido ao grupo que dançasse um fandango. A tarefa era
ingrata, já se vê, em terra de fandangueiros. A surpresa aconteceu quando os
irmãos Carvoeiro e dois dos elementos femininos, a Idalina Craveira e a
Angelina Carvoeiro, saltaram para o meio da sala e mostraram como se bate o pé
à moda do Alentejo.
Esta
dança popular passou a fazer parte do reportório e a ser um dos momentos altos
das exibições dos Fazendeiros. Os irmãos Luís e Joaquim Carvoeiro fizeram furor
por essas terras fora, exibindo a elegância dos passos e o virtuosismo do sapateado,
sem bulir o tronco, como mandam as regras.
Ainda
nesse ano de 1967, se a memória não nos atraiçoa, participámos na gravação de
um dos discos dos Fazendeiros, que se realizou no ginásio do Externato Mestre
de Avis. Memórias que ficam!
Como o
amigo leitor poderá imaginar, é impossível, em tão curto espaço, fazer aqui o
longo e detalhado historial deste agrupamento folclórico. São mais de 50 anos a
dançar, a cantar, a transportar condignamente o nome de Montemor. Aliás, a nova
geração dos Fazendeiros continua activa, exibindo a riqueza do folclore da
nossa região.
Vamos,
pois, ter de nos concentrar nas origens do grupo, nos primeiros anos da sua
existência.
Tivemos a sorte de encontrar a Idalina Craveira, o nosso par da
desgarrada. Encontrámo-la a ela e ao marido, o Teodósio Panelas, que veio, mais
tarde, a integrar o agrupamento. A Idalina da Pontinha, como é conhecida,
mantém a mesma alegria contagiante, a mesma vivacidade, o mesmo prazer de
comunicar de outros tempos.
Conversa puxa conversa, as palavras fizeram-nos rodopiar até ao ano de
1958, data da fundação do Rancho. Nessa altura, a Idalina ia a caminho dos 14
anos.
Criado
por iniciativa de Feliciano Rabaça do Carmo, o grupo nasceu nos arredores da
vila, na zona das Fazendas, donde lhe veio o nome. Um outro montemorense, José
Antas, exímio no acordeão, foi também elemento preponderante na idealização e
na organização do agrupamento folclórico.
Os primeiros ensaios e reuniões
tiveram lugar no Monte dos Henriques, numa sala de bailes bastante concorrida.
Ali funcionou a primeira “sede” do recém-nascido grupo.
O
território das Fazendas, apesar da dispersão da propriedade e das suas gentes,
concentrava um manancial riquíssimo de tradições. Em dias como a 4ª feira de
Cinzas, juntava-se o pessoal do Pé Bom, da Ribeira, do Sabugueiro, dos
Mortórios e de outros montes à volta. Os de mais idade cantavam e dançavam
modas antigas à luz do candeeiro a petróleo ou do petromax. Os mais novos
miravam-nos com curiosidade e bebiam-lhes avidamente as palavras, as melodias,
os movimentos. Foi assim que a Idalina e outros jovens fazendeiros aprenderam o
Polqueado, os Dois Pulinhos, os Três Tempos e mais umas quantas danças
tradicionais.
A
Idalina da Pontinha, visivelmente orgulhosa, fez alusão aos seus antepassados.
Falou-nos da avó Gertrudes Cantanhede (a Gertrudes do Foro), de quem ouviu,
pela primeira vez, a palavra mazurca. Era mulher instruída, que ensinou as
primeiras letras a muito boa gente. O pai, Filipe da Pontinha, gostava de
improvisar versos, e o avô, Custódio dos Santos, tinha especial apetência pela
guitarra. Quanto à mãe, a Ermelinda do Foro, levantava-se a cantar e deitava-se
a cantar. As pessoas paravam à volta do monte, deliciadas, só para lhe ouvir a
voz.
Pois
é! Quem sai aos seus… A Idalina herdou os dotes de sua mãe. Além disso, era uma
comunicadora nata. Pequena na estatura, agigantava-se em palco. Ainda houve
tentações para ou-tros voos. A Ermelinda do Foro é que não achava graça. Atrás
disso podiam vir outras coisas. Algumas vozes não paravam de a atormentar:
Guarda-a bem, Ermelinda! Guarda bem a tua filha!
A
conversa com estes nossos interlocutores prolongou-se durante mais algum tempo.
Decidimos, entretanto, dar mais uns passos e fomos ao encontro de Umbelina
Cinzas, um outro rosto que associamos às origens dos Fazendeiros. A Umbelina
relatou-nos o que foi a euforia dos primeiros anos. O entusiasmo era tal, que
alguns curiosos chegaram a destelhar a cobertura do Monte dos Henriques para
espreitarem os ensaios. Lá em baixo, na sala, Feliciano Rabaça escutava a
família Carvoeiro, os familiares da Idalina, os irmãos Matateu e outros
fazendeiros. Pedia-lhes que fizessem demonstrações das danças e cantares
tradicionais. Ele próprio experimentava os movimentos e efectuava os seus
registos. Para captar os sons, estava lá o José Antas e, caso necessário,
socorria-se dos conhecimentos musicais do amigo Nicolau Catita.
À
procura de outro espaço de trabalho, o Rancho passou a ensaiar no salão da
Pedrista, onde fez, aliás, a sua primeira apresentação. Mais ensaios
aconteceram na Fazenda do Maçarico e, lá em baixo, na Travessa da Cruz da
Conceição, na antiga oficina de ferrador do mestre Fernando do Carmo, pai do
ensaiador.
Depois
de mais umas quantas voltas, decidimos contactar algumas das pessoas que
privaram mais de perto com o fundador do Rancho. Adelaide Rabaça, que esteve
sempre por detrás a ajudar, guarda uma
quantidade apreciável de documentação, fundamental para se fazer a história dos
Fazendeiros: fotografias, programas, anotações do ensaiador, versos manuscritos
em folhas avulsas de papel. O amigo Feliciano gostava de versejar e de se
aventurar na escrita teatral. São dele alguns originais como O Milagre na
Aldeia e Há Festa na Nossa Terra. Os preciosos documentos permitem--nos
recordar, por exemplo, as várias presenças do Rancho na televisão. A primeira
actuação aconteceu no dia 1 de Outubro de 1961, nos estúdios do Lumiar, num
cenário improvisado com fardos de palha, forrados de pano preto. Pouco depois,
o grupo gravava o seu primeiro disco.
A ida
dos Fazendeiros à RTP despertou sentimentos de orgulho e de intensa alegria na
população de Montemor. No Largo do Almansor, foi instalado um aparelho para que
os montemorenses pudessem desfrutar de tão extraordinário momento televisivo.
Não
têm conto os momentos gloriosos do Rancho, nomeadamente, as actuações na Feira
das Indústrias, no Solar Pôr-do-Sol, em Benavente, e tantas mais. Ficou
memorável a exibição na concha do Palácio de Cristal, no Porto. Chegou a haver
invasão de palco por parte do público nortenho. Uma verdadeira apoteose!
Os
Fazendeiros conquistaram um lugar de prestígio no panorama folclórico nacional.
A riqueza das danças e cantares, o rigor nas apresentações, a qualidade
artística dos seus elementos, a alegria
e o prazer que o grupo transmitia eram
as chaves do sucesso.
Não se
pense, porém, que a caminhada foi fácil. Falando, há dias, com a nossa amiga
Maria Virgínia, filha do fundador do Rancho, ela confirmou-nos aquilo que
outros já nos tinham relatado. Num tempo em que não se co-nhecia a palavra
“subsídio”, os primeiros trajes foram adquiridos ou confeccionados pelos
próprios elementos do grupo. Sabe-se lá com que dificuldades?! O transporte era
feito no Volkswagen da família Rabaça e em carros de outros particulares,
sempre a abarrotar de gente.
Bem
vistas as coisas, isto de dançar, cantar, representar, nunca foi tarefa fácil.
Apesar de tudo, há Festa! Há Festa na Nossa Terra!
Boas
Férias.
Vítor Guita
Nota de rodapé do Editor:
Ao transcrever esta crónica dois nomes me acudiram à mente: O Chico Badalinho e o Zico, dois "amantes" do folclore, que, no Concelho do Alandroal alguma coisa fizeram em prol deste meio cultural tão do agrado de muitos.
Aproveito ainda para deixar uma imagem da recente homenagem prestada ao Autor da crónica, Prof Vitor Guita.
3 comentários:
fui dos poucos que acreditou que portugal trazia alguma medalha.
medalha de prata na prova de K2 1000 metros de canoagem
Obs.
Professor,
Desafiando,desfiando e
descrevendo com a
maior das facilidades as suas
memórias dos feitos
Fazendeiros, até
chega a dar
impressão que relatar e
reinventar memórias
antigas, é a coisa mais fácil
do mundo.
Será mesmo?
Ou trata-se antes
de uma garantida arte sua de
fazer desaguar na narrativa a
vida das pessoas que foram
também fazendo coisas
culturais importantes e com
muita beleza.
Melhores saudações
AnB
Quem é, na fotografia, o prof. Víctor Guita?
Raios.... conheço-lhe a prosa, conheço-lhe a apetência para falar dos seus tempos de adolescência, reconheço-lhe o mérito para nos fazer recuar no passado.... mas não lhe conheço a figura!
Alguém que o admira mesmo sem o conhecer pessoalmente.
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