DUQUES & CENAS (PELO DR JOÃO LUÍS)
“Três à conversa já é comício”

Alguns analistas já notaram que está a aumentar o número de portugueses que se aproximam da religião. Procuram numa plataforma mais espiritual o que não encontram no seu dia-a-dia de matéria e de preocupações.
E o fenómeno não se liga apenas à religião. Os admiradores do futebol encontram nos desafios, quase diários, momentos de alienação que os transportam a um mundo à parte onde se esquecem das contas, das rendas, dos créditos.
O fado, elevado recentemente a Património Imaterial da Humanidade, veio também ao encontro das nossas mágoas, fazendo-nos sentir recompensados por sermos tristes, amargurados, enfim como se todos tivéssemos um fado dentro de nós. E é esta coisa de aceitarmos o nosso fado como coisa imutável, como desígnio de Deus (que, segundo me ensinaram há muitos anos, nos deu todo o livre arbítrio para agirmos), que me leva a um estado de ligeira irritação. O nosso destino está nas nossas mãos, caramba! Não há deuses que o possam alterar e isso da religião, do fado e do futebol não é, de forma alguma, panaceia para os nossos males.
Contudo, com a malta entretida desta forma, os que nos governam, sempre em posição de vénia perante a tal troika, têm facilitada a maneira de continuarem a estrangular quem já mal pode respirar. Parece obsessão minha, mas não é. Quando começo a fazer comparações com outros tempos, pergunto: “O que é que nos falta?” Temos censura? Temos. Temos desrespeito por quem trabalha? Temos. Temos exploração e despedimentos por dá cá aquela palha? Temos. Temos assaltos mensais aos nossos ordenados? Temos. Temos mudanças de regras nos nossos contratos de trabalho, à vontade do patronato? Temos. Temos incumprimento do Estado para com os doentes, para com os desempregados, para com os que procuram o primeiro emprego? Temos. Temos escutas telefónicas? Temos. Temos uma justiça que só vai até onde acha que deve ir? Temos.
Então, o que é que nos falta? Falta-nos uma polícia política (de choque já temos – e parece que bate bem) e a aplicação prática daquele conceito bafiento que pode obrigar as forças da ordem a espantar meia-dúzia de amigos que estejam à conversa numa qualquer esquina de uma rua deste país, em termos mais ou menos como estes: “Toca a dispersar! Três à conversa já é comício.”
De resto… já temos tudo.
JLN
2 comentários:
Por meados dos anos sessenta estavam à conversa, cerca das 10 horas da noite, junto ao teatro D. Maria, três alandroalenses e um bencateleiro. Tinham acabado de petiscar umas sardinhas numa das tascas das proximidades. Palavra puxa palavra e o paleio prolongou-se por mais de uma hora. Foi então que se aproximou um par de polícias que os aconselhou a procurar um café onde pudessem continuar a conversa. Assim é que não podiam continuar.
Os alandroalenses eram o João Fitas, o Chico Valadas e quem escreve este comentário. O Prior era o representante de Bencatel.
Tudo dentro da maior educação, embora os cassetetes estivem bem à vista.
E tinham razão os polícias. A conversa era conspirativa.
Excelente testemunho. Esses tempos estão de regresso. Ou estarei enganado? Um abraço!
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