segunda-feira, 2 de abril de 2012

A CIDADE DO ENDOVÉLICO - (João Cardoso Justa)

(continuação dos dias anteriores)

LACÓBRIGA (Landroal), NO MAPA VIÁRIO ROMANO

A localização geográfica de uma cidade com esta carga histórica, «Em tempo dos romanos foi cidade muy famosa…», acrescenta, ao que já dela conhecemos, o P. Bautista de Castro e outros historiadores o fazem (mais conheceremos ainda da sua surpreendente existência), levanta de imediato outra pergunta. Como justificar então, que tal cidade, não esteja mencionada nos Itinerários das vias romanas? Muitos investigadores, embora desconhecendo a localização de Lacóbriga, colocaram esta questão de outra forma pertinente. Como era possível que, entre as vias romanas que ligavam Évora a Mérida, não existisse uma ligação nesses Itinerários direccionada ao Templo do Endovélico? No Itinerário de Antonino Pio (imperador romano, 138-161) principal referência das estradas romanas, e que tantos neurónios gastou e gasta aos estudiosos destas questões, a via que faz a ligação (vinda de Lisboa) entre as referidas cidades de Évora e Mérida, é conhecida pela designação de Itinerário XII, que, na zona alvo deste nosso estudo, faz o seguinte alinhamento: Ebora (Évora) – Ad Atrum Flumen – Dipone (que seria Juromenha) – Evandriana (apontada como sendo Olivença) – Emerita (Mérida). Assim, existem as mais variadas sugestões apontadas pelos campos, numa mistura desigual entre instinto e razão. Uma “canseira…”, escrevendo em alentejano puro. Estudei depois o trabalho de Mário Saa (1893-1971) que, sendo natural de Avis, calcorreou todo o país por veredas e azinhagas tentando descodificar os Itinerários, mas, em boa verdade, concluí que mais foram os problemas criados que as soluções encontradas. Por fim, desnorteado, e também desorientado, confesso, resolvi voltar a estradas menos poeirentas e concentrei-me de novo no Itinerário de Antonino Pio: Ebora – Ad Atrum Flumen – Dipone – Evandriana – Emerita. Na remota esperança de pista fugaz, agarrei-me ao dicionário e traduzi Ad Atrum Flumen = Passagem do rio obscuro. Isto é, fiquei ainda mais baralhado. Mas, uma vez mais, percebi alguns dias passados e muitos livros vazios, era em mim (pelo privilégio de naqueles campos ter nascido), e não nos que ali haviam passado sem conhecer o chão que pisavam, que habitava a resposta. “Passagem do rio obscuro”, e, por efeito contrário, em mim fez-se luz. Eu sabia, muito bem, onde estava esse rio, aliás, onde está, correndo desde há milhares de anos sob os campos de Lacóbriga, oculto, silencioso, aparentemente alheio, mas sendo ele o ponto fulcral na formação da sua história, e, por consequência, o fundamento base que fechará num mesmo sentido todas as revelações deste estudo. “Cabo de Mar”, chamavam-lhe os velhos, pretendendo com esta expressão designar um rio subterrâneo. «Dizem que vem de França, atravessa a Espanha, dá a curva em Sousel, e passa aqui, debaixo da vila». Coincidência, ou talvez não, em 1982, apresentaram-se uns mergulhadores (espeleólogos) ligados a uma universidade francesa (Versailles), que procederam à sua prospecção. Neste momento aguarda-se a divulgação de um novo estudo realizados por espeleólogos portugueses nos algares das Morenas e Stº. António. Se esse “braço de mar” que “vem de França,” contribui para a alimentação da bacia hidrográfica que se espraia sobre o anticlinal de Estremoz, desde o Cano, Sousel, até ao Alandroal, e influencia o curso dessas águas subterrâneas, os geólogos nos darão conta, certamente.

Sobre a zona assinalada a vermelho, encontram-se os “Villares” de Bencatel, Alandroal e Pardais, assim como a área que engloba os algares.

O intrépido caminhante de Avis (Mário Saa), (percebi numa 2ª leitura do seu trabalho, e já lhe pedi desculpa) se à data possuísse esta informação, teria ficado na história como o investigador que localizou Ad Atrum Flamen - «Depois de Évora não há conhecidos sinais romanos até ao caudaloso Lucefécir. Mas a leste do rio intensifica-se a arqueologia romana, em “centrações”, duas das quais, as mais notáveis, são aqui conhecidas por «vilares». Há os vilares de Bencatel (fez mal em não pensar nos vilares do Alandroal, e diz que não conseguiu encontrar a Azenha das Freiras), 1,5 km. ao sul da povoação actual, e 4,5 Km. a leste, os «vilares» de Paredais.» (O nome da aldeia de Pardais, deriva do nome “Paredais”, querendo significar paredes velhas ou muros antigos). E depois, Mário Saa escreve - «Mas de Évora aos “vilares” de Bencatel nada tem que possa interessar o arqueólogo», o que significa que, com a tradução de Ad Atrum Flamen (passagem do rio obscuro), que é a povoação indicada pelo Itinerário depois de Ebura (Évora), mais a informação do curso de água subterrâneo, o historiador de Avis tiraria a lógica conclusão (Creio, do trabalho que li de Rocha Espanca, que ele não teve conhecimento, ou não deu importância, ao “braço de mar”, e no entanto, ainda há homens vivos que lá nadaram, entrando por uma gruta situada na zona conhecida por “Tapada das Caraças”que encosta à “Tapada das Moedas”. Mais tarde, aqui voltaremos).
Nova questão, certamente, se instala agora entre os leitores mais atentos – Que motivo levou o responsável pelo Itinerário de Antonino Pio a substituir o nome de uma cidade tão famosa, Lacóbriga, pelo de Ad Atrum Flamen? Duas, são as possibilidades, onde devemos procurar tão complicada resposta.
1ª – Que a cidade perdeu importância até à data da elaboração dos Itinerários (princípios do Séc. II) e passou a ter outra denominação.
2ª – Que os construtores do Itinerário, apesar da importância da cidade, para melhor cumprirem o objectivo do seu trabalho, acharam que o nome Ad Atrum Flamen era mais abrangente, portanto, passível de fornecer mais informações aos caminhantes.
A primeira possibilidade é, na minha opinião, de excluir. No ano de 663, sob o domínio visigótico, (a estrutura eclesiástica manteve-se apesar da queda do Império Romano do Ocidente), vemos a assinatura de Servus-Dei, Bispo Lacobricense, no 4º Concílio de Toledo, o que pressupõe a continuação do seu esplendor, e conhecemos, em traços gerais, a sua importância durante o período árabe com a designação de Al Azwiya, nome que Lagos também reclama (o erudito António Rey, caiu involuntariamente nesta mistificação, sem atender à etimologia da Azwiya (Azóia) que identificou no barlavento algarvio – Al Rhayiana), e que, aplicado a uma povoação como Lacóbriga, se poderá traduzir como Cidade-Hospedaria (função também desempenhada pelos mosteiros). Seria a cidade algarvia uma hospedaria para os peregrinos (a 35 km.!) que se dirigiam ao templo inexistente em Sagres? Mas, tirando proveito da “simpática” recolha documental dos mistificadores que pretenderam construir um passado fictício para a cidade de Lagos, podemos aproveitar um pouco da “sua” história - «Abderraman, califa de Córdova, reedificou as muralhas dotando-as com duas ordens de grossos muros e torres.» Conforme se pode verificar na seguinte figura…

Resta-nos pois, a 2ª possibilidade - vejamos o que está subentendido no seu enunciado e a surpreendente conclusão a que nos conduz. Que significação tão relevante poderia conter Ad Atrum Flamen (passagem do rio obscuro) para se sobrepor ao nome de uma cidade como Lacóbriga? Uma única explicação pode satisfazer as premissas contidas nesta interrogação. “A Passagem do Rio Obscuro” teria, sem dúvida, que englobar no seu significado a abrangência de um destino mais famoso e procurado que a própria cidade. Portanto, apenas a fama do próprio Templo do Endovélico podia preencher esta condição. Retiremos, para exemplo demonstrativo, uma situação da atualidade. Se num mapa de Portugal, estiver mencionada a expressão “Cova da Iria”, saberemos de imediato que essa via se dirige ao centro do culto mariano, e teremos simultaneamente o conhecimento, por associação, que indica a cidade de Fátima. Assim, e da mesma forma, a “Passagem do Rio Obscuro” assinalava a estrada que conduzia ao centro do culto a Endovélico, e, por associação, à cidade envolvente, Lacóbriga.

Ora, que saibamos, sob o outeiro de S. Miguel da Mota não corre qualquer rio subterrâneo, e Lacóbriga dista deste local cerca de 4km., o que inviabiliza toda a minha argumentação anterior, ou então, por dedução contrária, inviabiliza a existência do Templo a Endovélico na localização que lhe atribuem.
Efetivamente, e tendo consciência do “sacrilégio” que representará para muitas pessoas apaixonadas por este tema, esta minha conjetura, devo afirmar, por disso estar convicto, que, quer a localização do Templo do Deus Endovélico no ermo ressequido de S. Miguel da Mota, quer no exíguo altar da Rocha da Mina (hipótese Manuel Calado), não fazem qualquer sentido.

( Amanhã terminamos a colocação deste estudo do J.C.J. , podemos entretanto informar que a totalidade do mesmo em breve poderá ser consultada em link que aqui iremos disponibilizar)

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