Foi assim que me encontrei ao volante do " boca de sapo " a caminho de Cheles; as condições de saúde de minha mãe não permitiam que nos acompanhasse; passaríamos a fronteira no posto do Caia; o meu pai conhecia o responsável fronteiriço, o que seria muito útil para problemas de última hora na passagem da fronteira; duas horas depois estávamos em Cheles; o meu pai não disse uma única palavra durante a viagem; dormiu, ou fingiu dormir durante a maior parte do tempo. À nossa espera estavam os parentes que nos tinham avisado e disseram-nos que o tio Rufino estava a ser velado na " finca " em que tinha vivido nos últimos anos.
O corpo do tio Rufino já estava no caixão em que iria ser enterrado; Tinham-lhe vestido um fato escuro, camisa sem colarinho e, na gola do casaco, alguém tinha colocado uma pequena fita de tecido vermelho, presa com um alfinete; estava com um ar sereno, com ar de quem tinha cumprido as suas obrigações, e até parecia sorrir; os bigodes, completamente grisalhos, que lhe caíam ao canto dos lábios, estavam bem aparados, dando a impressão que alguém se tinha preocupado em o arranjar para uma ocasião solene.
As caras das pessoas que o velavam estavam sérias e tristes.
Algumas dessas pessoas eram minhas conhecidas, porque durante vários anos da minha juventude eu tinha passado algumas temporadas em casa do tio Rufino; fora eu a ligação com o irmão, como o tio dissera algumas vezes; também me dissera que, à semelhança do que acontece com as árvores, também as famílias precisam de amputar alguns ramos para que os novos rebentos possam crescer; já na altura eu compreendera as palavras do tio Rufino, mas foi na noite do seu velório que me surgiram com grande clareza, e surgiram-me assim ao ver o meu pai, isolado, sentado ao lado do caixão, olhando para o irmão com uma expressão que eu nunca lhe tinha visto; aquele homem estava a sofrer, talvez lembrando-se da forma como cada um deles tinha atravessado a vida. Quando me aproximei, com intenção de lhe manifestar algum do carinho que tinha andado arredio da nossa relação, disse-me que a natureza se tinha enganado e que eu era muito mais filha do irmão do que dele; e também me disse que compreendia isso muito bem. Desde criança que não me sentia tão próxima do meu pai !
Trouxe-o para o exterior, para o alpendre da casa e ali, longe dos outros, falámos longamente do que foi a nossa vida e do que poderia ter sido; dos erros cometidos, dos julgamentos que fizemos, das injustiças que praticámos, das teimosias em que insistimos, como o não ter estreitado relações com o irmão numa altura em que este o procurara, para que finalmente se encontrassem; falava como se eu não fosse sua filha, falava como se estivesse num confessionário, querendo ser absolvido de todos os erros praticados.
O mundo caiu-lhe em cima repentinamente.
Ignorou-me quando lhe chamei a atenção para a curiosidade que estava a despertar nas pessoas que velavam o tio Rufino e só se acalmou um pouco quando lhe disse que embora eu me identificasse muito com o irmão dele, eu era sua filha e que também me arrependia muito de não ter manifestado maior compreensão quando ele me fizera as primeiras confidências, procurando em mim um apoio que, visível e propositadamente, eu não lhe dera. Essa foi uma noite de acertar contas com o passado; não só entre pai e filha, mas também com a memória daquele que estava no caixão e que no dia seguinte iríamos sepultar.
Foi então que nos chamaram para dentro de casa. Iam prestar a homenagem dos heróis, disseram.
Adiantou-se um homem já idoso, seguramente com mais de oitenta anos, e desdobrou sobre o corpo do tio Rufino uma velha bandeira da república, de riscas horizontais : Vermelho, Ouro e Púrpura. Em seguida, sem se apoiar em qualquer papel escrito, chamou por cerca de uma dezena de nomes, homens e mulheres, que foram respondendo à chamada.
Alguns levantaram o braço, de punho cerrado, no momento de responder; depois, perante o nosso espanto, meu e de meu pai, sussurraram em coro e em tom muito baixo, o Hino de Riego.
(amanhã último episódio – final da primeira história da « TRILOGIA DO QUADIANA » - em breve publicaremos as próximas-
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