quinta-feira, 4 de novembro de 2010

COLABORAÇÃO - LUÍS FERNANDO GALHARDAS

Açorda com Caldo Verde



Texto e fotografia: Luis Galhardas
Ilustração: Paula Costa

Anacleto Galhardas foi professor, lavrador e da oposição ao regime salazarista, mas acima de tudo foi um ser humano respeitável.
Semeou amizades por todo o lado.
Tive a sorte de ser seu sobrinho e amigo, e com ele ter privado em lindos dias da minha infância.
Um abraço, até sempre.

É preciso deixar assentar o pó, dizia o meu tio Anacleto para a rapaziada que amiudadas vezes o acompanhava nas suas andanças por montes e olivais.
Professor por vocação leccionara, na plena força do Estado Novo, em Vila Viçosa e Évora, e fora posto à margem por ser, descaradamente, contra o regime de Salazar.
Em cada aluno plantara um amigo.
Era agora um jovem agricultor de 40 anos e comprara um jeep land rover que enchia com filhos, sobrinhos e amigos de todos, nas suas frequentes idas ao campo levar mantimentos aos ganhões e ver como iam as coisas da lavoura.
O vício de ensinar era grande.
A lição começava quando punha o jeep a trabalhar e só terminava no fim do dia, à chegada ao Alandroal.
As histórias sucediam-se melodiosamente, umas por ele imaginadas, outras sobre acontecimentos reais de então, sempre com a finalidade de ensinar, de nos despertar a curiosidade que depois satisfazia com argúcia, de nos ajudar a fazer homens.
E se algum dos rapazes não atingia o clímax da lição dizia com a doçura de um sorriso único: deixem assentar o pó que se vê melhor.
Seu sobrinho Luís Fernando era companheiro predilecto nestes vai vem ao monte das Misericórdias, monte do Safoeiro, Quinta da Fonte das Freiras e outros lugares que visitei pela primeira vez com ele, naquele tempo grandes passeatas para um miúdo de cinco anos.
Tio e sobrinho nutriam grande amizade um pelo outro, mais parecendo pai e filho.
Numa bela manhã de Outono foi-me desafiar a casa de meus avós para ir com ele ao campo.
Agarrei-lhe a mão e já não a larguei, ainda assim não fosse a minha mãe dizer que não podia ir.
Como era habitual, choveu uma saraivada de recomendações: ...não o deixe ir para o pé dos poços, não lhe dê fruta sem ser lavada, e por aí adiante.
O meu tio, para quem eu olhava a pedir partida, sorriu e piscou-me o olho à socapa.
Meus pais, influenciados pelo meu avô paterno a quem tudo fazia mal aos intestinos, apesar de ser médico, proibiam-me de comer um sem número de manjares que muito apreciava: chouriço, toucinho crú da salga, melancia..., que tudo podia provocar diarreia e enterites.
Nessa manhã lá fomos os dois, envoltos nessa amizade que sempre nos ligou, a caminho do monte do Safoeiro.
Diverti-me imenso, como sempre, correndo atrás de bezerros e cabritos, topando uma pequena cobra que procurava esconderijo, assustada com os meus pinotes ao descobrir um “ninho de cuco”, assinalado pelo moiral das vacas que, ingénuamente, acreditei ainda ter ovos.
Chegados ao fim da manhã com léguas andadas a percorrer a herdade, a fome era muita.
Parece-me que estou a ouvir a gorda cozinheira que mal cabia na porta do monte e com um rabo maior que qualquer cadeira ou banco da mobília: o menino hoje vai comer uma açordinha com azeitonas, feita cá pela Henriqueta!

Ao ouvir falar em açorda e azeitonas, que estavam entre as muitas comidas proibidas, fiquei aflito, encostei-me à perna do meu tio, toquei-lhe na mão e balbuciei: tio, eu não posso comer isso…, se a minha mãe sabe bate-me!
Logo ele com cara séria, mas meiga e tranquilizadora, me encorajou baixinho, em jeito de segredar: tu lá em casa não comes caldo verde?
Pois a açorda é o mesmo, podes comer à vontade que não te faz mal!
E quando chegares a casa dizes que comeste caldo verde que não estás a dizer mentira nenhuma.
À tardinha, à pergunta certeira de minha mãe, sobre o que tinha almoçado no monte, respondi com segurança:
“Açorda com Caldo Verde”.

8 comentários:

Anónimo disse...

A cozinheira chamava-se Joana e era a mulher do Joaquim Pina.
Henriqueta era a cozinheira das Misericórdias que era casada com o Joaquim "mau olho"

Anónimo disse...

Ao contista fica sempre a liberdade de trocar um pouco as voltas à realidade. O interessante neste pequeno conto é recordar a figura desse alandroalense "respeitável" que foi Anacleto Galhardas.
AC

Anónimo disse...

Falei muito com o professor Anacleto Galhardas.
Homem integro, esclarecedor e esclarecido. Em 75, quando ele era Presidente da Comissão Administrativa da Câmara, pude ver a dimensão de homem que ele era. Apoiou, perante o Governo, o Movimento Civico que deu origem à construção da Barragem do Lucefécit. Um dia numa conversa mais prolongada, ainda no exercício da Presidência falou-me deste modo "sei que estou a ser constetado pelos comunistas, mas quando da candidatura do general Humberto Delgado, deixaram-me com (fulano) sózinhos na Praça". Encontrei-o, pela ùltima vez, em Terena, recordámos esse tempo. Mostrou uma enorme satisfação, por também ter contribuído para quela benfeitoria Concelhia.
Helder Salgado.
05-11-2010.

Anónimo disse...

Havia outra versão sobre esta estória. A estória da açorda e do caldo verde. Era uma versão que correu entre aqueles que eram um pouco mais velhos que o Autor.
Mas, antes das nuances da estória, gostaria de confirmar o que foi dito sobre o Sr. Anacleto Galhardas. Gostaria, não só de confirmar o que foi dito, mas também acrescentar que o regime o desterrou para Timor e, assim, se livrar dum opositor que começava a ser muito incómodo. Gostaria ainda de dizer que, o que lhe ouvi em 1958, por altura das eleições do general Humberto Delgado, me ajudou, depois, a firmar opiniões sobre o regime que nos governou durante quarenta e oito anos. E, se depois se disse que o general Humberto Delgado era um homem sem medo, eu posso afirmar que o Sr. Anacleto Galhardas, também era um homem sem medo.

Vamos lá agora à estória da açorda :

( Os intervenientes são os mesmos )

Monte dos Safoeiros, acreditamos, o alguidar sobre a grande mesa da cozinha, e a água, a ferver, escaldando os têmperos, que os havia em grande quantidade. De tal maneira que os coentros davam ao caldo um tom de verde compacto, denso, brilhando, aqui e ali, os olhinhos de azeite. Os ovos escalfados, eram manchas brancas e amarelas, no meio daquele verde intenso.
Correu a primeira "pratada" e, no início da segunda, o miúdo, lá do fundo da mesa, disse para o tio : « Tio, este caldo verde sabe a açorda ».

Antes de terminar : Para o Homem, um reconhecimento, sempre vivo, por aquilo que me fez compreender ; para o " Miúdo " , um abraço.


Sean

Anónimo disse...

Sr. Helder Salgado:

O Prof. Anacleto Galhardas foi, provam-no agora os tempos, acertadamente "contestado" pela esquerda do concelho.
Antes,veja só o senhor (quem diria) logo após a saída da CA da Câmara exibia na lapela o emblema da A.D. (o sr. não sabe, não estava cá, MAS EU VI); depois, porque de facto COMO O SR. MUITO BEM SABE o empreendimento Lucifecit É DE DOIS OU TRÊS usufrutuários(descuidos do seu CAMARADA Capoulas Santos, quiçá também do seu camarada Portas...).
DECORRIDOS 30 ANOS AÍ TEM OS RESULTADOS.


AMEN

Anónimo disse...

Também tenho essa memória do meu Tio Anacleto nas eleições de 1958, saindo do café do Sr. Ilídio acompanhado por muita gente, tendo a seu lado o cabo da GNR (talvez o cabo Subtil). Mais tarde ouvi dizer que a PIDE esteve no Alandroal para o prender. Eu tinha 7 anos, fiquei cheio de medo pelo Tio Anacleto, pois gostava muito dele... cheguei a ter inveja dos meus primos..., por não ser seu filho. Aqui a inocência era igual à amizade que lhe dedicava.
Obrigado pelos comentários..., o do Sean sobre a estória é a versão real que acabei por "fantasiar".
Um abraço do Luis Fernando

Anónimo disse...

Onde estava o "AMEN" quando a PIDE andava atrás do Sr. Anacleto Galhardas? Ou não sabia que foi perseguido e enxovalhado e denunciado por bufos..., para que "AMENS" pudessem hoje andar por aí a dizer baboseiras...
AC

Anónimo disse...

Oh Amen explica lá o que era a A.D.
BA