quinta-feira, 8 de novembro de 2007

PÁGINAS SOLTAS

Amabilidade do Dr. Alexandre Laboreiro

Texto publicado na Folha de Montemor em Julho.2006

O inferno fascista do Tarrafal

«Não é o passado literal que nos governa ... São as imagens do passado: com frequência tão intensamente estruturadas e tão imperativas como os mitos»

George Steiner


Uma das finalidades da Educação - recorrendo a um corpo multivectorial de saberes e métodos - é a realização pessoal e colectiva do aluno (cidadão potencial), na consecução da sua liberdade, autonomia e participação (processo, aliás, ininterrupto de formação e desenvolvimento) - apenas realizáveis em Democracia. E, no seio desta multidisciplinaridade de saberes (que conduzem o jovem à cidadania), emerge com especial pertinência a História: na medida em que “no devir incessante que é a nossa vida, tudo se nos apresenta, a tal ponto sob o aspecto do sucessivo que, por uma confusão instintiva, somos levados a procurar a todo o custo, na sua própria sucessão a explicação dos factos de que somos testemunhas” - diz-nos Louis Halphen; com recurso à História.
A História responde-nos a interrogações como: “porque não nos integrámos na Espanha?” ; “o que nos conduziu à descoberta de novos mundos?” ; ou “em que medida se relaciona a expulsão dos Judeus Sefarditas com a decadência de Portugal durante séculos?” - como aliás explica a euforia popular de apoio à Revolução de Abril de 74 (como apoiaria, aliás, a Revolução de 5 de Outubro de 1910; como nos dá as linhas de força justificativas da inversão do fluxo negativo da qualidade de vida (a partir de 74), dos portugueses, ou o justifica os acordos de independência das colónias portuguesas (e reintegração de Macau na República Socialista da China).
E se a geração que vivenciou (resistindo nalguns casos) a ditadura de Salazar e Caetano - que, num jogo de aparências paternalistas e de repressão, conseguiram subjugar os portugueses - sentiu a prepotência e as grilhetas dum regime ditatorial, é imperioso que às gerações nascidas e formadas após a Democracia, seja dada a conhecer - como vem a suceder com algumas realizações cinematográficas e publicações literárias sobre o Salazarismo, a guerra colonial, a descolonização, a Revolução dos Cravos - os locais, o espólio, os artifícios (inclusivamente a repressão) da dominação da Ditadura.
Muito tem sido referido sobre a pertinência do restauro da sede da PIDE em Lisboa (Rua António Maria Cardoso) - com a instalação do Museu da Tortura; bem como se refere que as prisões de Caxias e Peniche deviam ser objecto de visita e reflexão das gerações mais jovens - de forma a dar materialização à palavra de ordem “Fascismo nunca mais !”.
Lembremos que o campo de concentração do Tarrafal (talvez o pior presídio político da Ditadura), foi criado, faz agora 70 anos, por Salazar, na ilha caboverdiana de Santiago: localização intencionalmente escolhida pelo ditador e seus próceres, face ao clima doentio, isolamento, secretismo - pois, inspirado nos campo de extermínio de Hitler e Mussoline, os seus intentos eram reprimir e matar (longe dos Portugueses e da opinião pública internacional) alguns opositores políticos do regime.
No campo de concentração do Tarrafal, estiveram detidos (como presos políticos), socialistas, comunistas, velhos republicanos, anarquistas - uns sendo operários, outros camponeses, ou intelectuais e militares (oriundos de Portugal, ilhas e colónias).
A mística, a chama da razão e do coração, dominava os prisioneiros - criando entre eles uma estratégia cooperativa (ao ponto de, sub-repticiamente, trocarem saberes - como se de uma Universidade Popular se tratasse) - aliás, desde logo reprimida pelas autoridades do campo de concentração. Mas, a amizade entre os detidos era uma arma perante a prepotência dos polícias do campo concentracionário (arrogância visível na inexistência de uma assistência médica; numa deficiente alimentação: muitas vezes à base de alimentos deteriorados; nas orgias das autoridades policiais - que prostituíam a inocência e ignorância das jovens da ilha; na proibição da leitura de livros e jornais; no controlo da correspondência; na imposição do silêncio e isolamento; no castigo da “frigideira”: uma cela de isolamento sem janelas, construída de cimento, com um espaço exíguo, sem ventilação, um verdadeiro forno crematório - num ambiente de 40 a 60 graus centígrados de calor horrível).
Porém, com o decorrer do tempo, e devido à consciencialização política dos presos (maioritariamente comunistas e anarquistas), foi possível a conquista da opinião pública da ilha - que passou a ver nos prisioneiros políticos (não “os criminosos perigosos” que as autoridades da prisão diziam eles serem), sim os defensores da Justiça, inclusivamente a Justiça na descolonização do seu próprio povo de Cabo Verde.
O campo do Tarrafal, em grande estado de degradação, aguarda há vários anos, a sua passagem a museu: acontecimento de grande oportunidade - se atendermos a que as gerações pós-25 de Abril não perceberão a resistência ao fascismo, sem perceber o regime (na repressão, no partido único, nas contradições políticas, no afundamento do País); e, para o estudo do regime, é necessário material de valor museológico - que está em risco de desaparecer; tanto do Estado Novo, como da Oposição e Resistência (cartazes, textos censurados na Imprensa, folhetos, imprensa clandestina, fotografias, música de intervenção, etc.). E, inclusivamente os chocantes locais de tortura aos resistentes. É que, como nos diz Pacheco Pereira no “Público”, “Não se trata de relativizar a História, mas de começar o caminho para tornar o séc. XX compreensível para as novas gerações que nunca o verão com a dimensão ética e sentimental dos que foram seus protagonistas”.É justo - diga-se - que as novas gerações saibam o que foi feito - durante quase meio século - a este povo (e a outros povos de outras latitudes), por uma casta que se considerava incontestável, em nome da trilogia Deus, Pátria e Família.

José Alexandre Laboreiro

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