sábado, 11 de novembro de 2006

CRÓNICAS DE OPINIÃO DA RÁDIO DIANA/FM

Crónica de 10 de Novembro de António Leitão

Sexta, 10 Novembro 2006
Muitos de nós já saíram de madrugada de casa, arma na mão, dedos e nariz gelados, para ir ter com um grupo de amigos e repetir aquilo que os nossos longínquos antepassados já faziam com grande excitação: avançar na paisagem húmida do outono, o sol a tentar nascer por trás do nevoeiro, e caçar. Trazer os animais mortos para casa. Contar histórias.
Fazer valer as suas proezas. Demonstrar vitalidade, virilidade e poder. Em tempos remotos, homem que já não conseguisse caçar estava bom para ser caçado e comido por outros animais. Ainda hoje, caçar dá importância a qualquer pessoa. E, desde sempre, quando há alguma revolução social, quem sofre primeiro são os coelhos e as perdizes (Ortega y Gasset).
Também eu tive a experiència da caça em miúdo, entre as várias que me ajudaram a ser uma pessoa. Mas hoje, a bela espingarda do meu pai está guardada num armário e temo já não ter prazer em interromper brutalmente o voo de uma perdiz, que é das coisas mais bonitas que já vi.
Também já não tenho a magnífica dentadura do carnívoro jovem e feroz que já fui, duvido que pudesse ser canibal por fome ou ritual colectivo, mas tenho a certeza de que continuo a ser capaz de matar. Matar por ódio, Deus me livre disso, mas suspeito que sim, em casos extremos. Talvez também matar caçando animais não maiores do que a perdiz e a lebre, mais pelo prazer do exercício ao ar livre, com a tal bela espingarda de que falei, e sem qualquer pressa ou ganância. Acharia um crime horroroso matar um elefante ou pendurar na parede a cabeça de um orangotango, como já vi.
Mas, quanto à caça ao ser humano armado, de que falou Ernest Hemingway, essa sim, pode ser viciante. A guerra continua a seduzir muitos seres humanos.
Que o digam os atiradores solitários (snipers) que hoje disparam sobre as patrulhas americanas no Iraque, como há uns anos faziam na Bósnia contra povos inimigos. Em Gorazde, junto do rio Drina, alugavam-se portas e carabinas do outro lado do rio para disparar sobre os habitantes da cidade. Precisamente como na guerra civil de Espanha, em que habitantes de Madrid iam em excursão para um dia bem passado no campo, a disparar sobre Toledo.
O prazer ou necessidade que o ser humano tem em matar ou ver matar assume todas as formas. Somos seguramente o animal mais cruel do universo. Lembro apenas que, ainda há pouco tempo, se pagava para assistir a enforcamentos, que deve ser um espectáculo horrível. Há dias – e era aqui que eu queria chegar finalmente – o governo americano parece ter querido aproveitar a condenação à morte por enforcamento de Sadham Hussein em vésperas das eleições intercalares americanas. No entanto, a derrota estrondosa dos republicanos e Bush pode significar que os americanos já evoluíram e começam a apreciar mais as complicadas negociações de paz. Talvez já não acreditem que a melhor forma de resolver problemas é a eliminação física dos adversários, sem lhes dar verdadeira hipótese de se defender. Sem dúvida, grande parte da Humanidade rejeita tanto a herança carnívora da espécie humana como o seu gosto pela morte e pela guerra.
Talvez a Humanidade chegue no Século XXI ao ponto de criar uma ética laica e ecológica a que todos os povos do mundo possam aderir de bom grado, pondo de lado nacionalismos exacerbados e religiões fundamentalistas. Mas não significaria isso também uma notável perda de vitalidade da Humanidade?

Deferência da: http://www.dianafm.com/

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