sexta-feira, 27 de outubro de 2006

CRÓNICAS DE OPINIÃO DA RÁDIO DIANA/FM

Colaboração da:
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Crónica de 27/10/2006
António Leitão


Sexta, 27 Outubro 2006
Chama-se arco reflexo à unidade funcional básica do Sistema Nervoso. É um circuito muito simples, que começa na recepção de um estímulo sensitivo e passa directamente à activação de um estímulo motor, como acontece por exemplo quando pomos a mão em qualquer coisa muito quente e a retiramos rapidamente, mesmo antes de ter consciência de um perigo e vontade de fugir dele. Sensação – acção, é assim que começa todo o comportamento. Ao longo da evolução do animal a que agora chamamos homem, o processo foi-se complicando com o desenvolvimento do sistema nervoso central, em especial do cérebro, para interromper o arco reflexo, para que um estímulo sensitivo não tenha que produzir uma reacção imediata. Ou seja, para que uma pessoa possa ter uma ampla variedade de reacções e comportamentos, imediatos ou diferidos no tempo, por vezes muito complexos e bem planeados. Tornou-se possível sorrir em vez de rir às gargalhadas, olhar sem ter que mexer, odiar sem agredir, introduzir a ironia numa discussão, esperar a melhor oportunidade, adiar um prazer para poder ter outro maior mais tarde.
O cérebro foi crescendo e neste momento tem biliões de células, das quais as principais se chamam neurónios, ligados entre si por triliões de contactos. Apercebemo-nos que estudar o cérebro é tão infinito como olhar para o céu numa noite escura, sem lua nem nuvens. E, no entanto, tanta complexidade ainda não impede que o mais difícil de tudo seja tomar a decisão certa no momento certo. Tudo o que é humano inevitavelmente se complica.
Onde quero eu chegar? Primeiro, à constatação de que, para tomar a decisão mais lógica, há que ultrapassar muitas dificuldades, em especial quando se trata de um processo colectivo, em que várias pessoas partilham toda uma sequência de recolha de informação (evidência), raciocínio e discussão até chegar à decisão entre várias alternativas. Há inúmeras falhas possíveis, tipicamente humanas e muito frequentes:
A procura selectiva, tendenciosa, de evidência,
A inércia ou suspensão prematura da procura de evidência,
As limitações experienciais (incapacidade para olhar além da nossa própria experiência pessoal), por preconceitos ou simplificações abusivas,
O enviesamento tendencioso (quando distorcemos as memórias para tornar as nossas escolhas mais atraentes ou de acordo com os nossos desejos),
O recentismo e o repetitismo (dar mais atenção aos factos mais recentes ou mais repetidos, eventualmente até à náusea),
A ancoragem numa primeira escolha, por acharmos que uma pessoa coerente não deve mudar de opinião,
O pensamento de grupo ou de acordo com as expectativas que o grupo tem em relação a nós,
A assimetria na atribuição do nosso sucesso ao mérito e do sucesso dos outros à sorte,
As falácias lógicas, tais como a de criar uma posição fácil de refutar e depois atribuir essa posição ao oponente (ou citá-lo fora do contexto)
As questões compostas de resposta sim ou não (com mais do que um aspecto, motivando respostas contraditórias para cada um desses aspectos).
Há sempre uma crise na decisão, angustiante porque decidir é cortar, por qualquer razão ser forçado a optar por uma única hipótese entre 2 ou várias alternativas. Pode ser a escolha entre o sim e o não num referendo como o da despenalização do aborto. Vejamos:
Deve uma mulher que abortou ser levada a tribunal e sujeita a punição com uma pena criminal? Se a pergunta fosse assim, creio que uma grande maioria diria que não, eu incluído. Mas parece que a pergunta vai ter uma outra forma, do género: tem uma mulher o direito de se apresentar num estabelecimento de saúde devidamente autorizado para lhe ser feito um aborto apenas porque é essa a sua vontade? – isto já me incomoda a ponto de votar contra.
Primeiro, porque já temos em Portugal uma lei em que todas as razões para abortar estão contempladas, só não está o aborto sem ter que se apresentar qualquer razão, pela simples e exclusiva vontade da mulher em questão.
Depois, porque um médico não deve praticar actos exclusivamente técnicos, cegos, desligados da sua compreensão do caso e da sua concordância; os médicos têm o dever de defender a vida, relacionam-se com os seus doentes de uma forma mais profunda, em que as 2 partes concordam; por outro lado, quem está ou corre o risco de estar doente? neste caso, ninguém; daí que quase todos os médicos do Sistema Nacional de Saúde sejam objectores de consciência.
Finalmente, porque num país onde tudo se paga cada vez mais, o Governo prepara-se para agora oferecer abortos gratuitos, como se o povo português que representa se desejasse extinguir. Quer se queira quer não, tudo o que é subsidiado é estimulado. Quem pode concordar que o aborto, um acto talvez necessário mas horrível, seja estimulado, sabendo-se que não está a ser feito o mesmo esforço na contracepção ou no tratamento de doenças importantes?
Em resumo, eu acredito que se corre o grande risco de a prática livre de abortos continuar a ser penalizada. Será talvez essa a decisão colectiva. Errada? Talvez, mas tudo nesta vida é imperfeito, incluindo a forma como uma mulher se deixa engravidar (sim, porque algures no engravidar há uma decisão ou falta dela).
A coisa mais difícil que existe neste mundo é o auto-governo, da vida de uma pessoa ou de uma comunidade. Estamos todos convocados para melhorar a nossa governação.

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