Na:
Outono Quente
Eduardo Luciano
Quinta, 19 Outubro 2006
Os últimos dias foram marcados por greves, manifestações, tomadas de posição sobre os mais diversos assuntos e, pelo meio, algumas manipulações grosseiras da opinião pública, algumas conclusões falaciosas repetidas ad nauseum, ministros a falar, conferências de imprensa marcadas para a entrada do Palácio de S. Bento e ainda uma declaração solene a roçar a idiotia.
No passado dia 12, perto de cem mil manifestantes desfilaram entre o Rossio e S. Bento. Exigindo mudanças de política, em defesa de uma segurança social em que os princípios da solidariedade estejam presentes, por serviços públicos eficazes e próximos das populações, por uma política que não fique refém do combate ao deficit público, sacrificando os mesmos para que alguns possam continuar a acumular riqueza.
Foi mesmo uma grande demonstração de descontentamento. A prová-lo está a necessidade do primeiro-ministro em exercício, vir a público tecer alguns comentários.
Disse o homem que ocupa a famosa cadeira de S. Bento, que compreendia os manifestantes, que estes estavam a exercer um inegável direito constitucional, mas que não se desviava um milímetro do trajecto político traçado.
Afirmou ainda que o mundo tinha mudado, para poder concluir que era ele o motor da mudança do país e que os sindicatos apenas pretendiam manter tudo como está.
Julgo tratar-se de um problema de audição da parte do senhor primeiro-ministro. O conteúdo das intervenções realizadas no âmbito do protesto geral de dia 12, conteve sempre a palavra mudança, não se ouvindo nenhum apelo ao imobilismo.
Reconheçamos então, que governo e movimento sindical estão de acordo. É preciso mudar. O problema é o sentido da mudança. E sobre esse aspecto reconheçamos que estas forças estão em campos diametralmente opostos.
Mas podem ficar tranquilos, o governo não está isolado nesse seu projecto. Não há comentador da área política da direita que não elogie a “coragem” do primeiro-ministro, não há jovem economista neo-liberal, com espaço nos jornais de economia que não afirme que o governo está no bom caminho (embora exigindo sempre mais), o PSD aplaude o anúncio do fim de algumas SCUTS, o CDS prepara-se para votar favoravelmente o Orçamento de Estado, numa dança de acasalamento que poderá acabar, no mínimo, em união de facto.
São cada vez mais os militantes do partido do governo que se questionam, que ficam incomodados com o rumo do seu próprio partido, de Helena Roseta a Manuel Alegre. Deve ser por isso que vão surgindo na imprensa, apelos para que o primeiro-ministro não se deixe inibir por aquilo a que chamam a esquerda do PS.
No meio de toda esta movimentação, contestação e confronto, surge uma figura que anuncia aos quatro ventos “o fim da crise”. Acredito que o homem estivesse a falar a sério. De facto a crise acabou para alguns. Ou melhor, nem sequer começou. Por exemplo, os lucros das principais instituições bancárias não param de atingir valores inéditos.
Ainda bem que temos um ministro da economia com sentido de humor. Os cartoonistas agradecem.
Não me vou embora sem vos sugerir uma visita ao Teatro Garcia de Resende para assistirem à peça “Um inimigo do povo” de Henrik Ibsen.
Os ingredientes são: um médico idealista e preocupado com questões ambientais, um presidente de câmara manipulador e demagogo, um jornal local que tem um redactor que quer fazer parte do secretariado da câmara e que não publica um estudo que desagrada ao senhor presidente, um representante dos pequenos proprietários que tem uma coluna vertebral demasiado flexível, um capitão da marinha mercante com menos flexibilidade na coluna vertebral e mais integridade.
É uma comédia genial escrita em 1882 e qualquer semelhança com a realidade deverá ser pura coincidência.
Até para a semana
Sem comentários:
Enviar um comentário