in: DIÁRIO DE NOTÍCIAS
Boanova é nome próprio emprestado por Nossa Senhora. É nome de mulher nascida aqui, em terras do Alandroal, que os pais terão querido baptizar em honra da Virgem a quem se ergueu santuário na aldeia de Terena. O altar medieval fica lá atrás, quinze quilómetros acima destas Casas Novas de Mares, onde hoje Boanova mantém a sua queijaria. É uma pequena unidade artesanal, uma das cinco que aderiram ao programa turístico Ao Encontro dos Saberes, organizado pela autarquia. Por cada dia da semana, há um produtor que se encarrega de escancarar as portas da tradição aos visitantes que apareçam. Às quartas-feiras cabe a Boanova revelar os segredos desta arte antiga a dois forasteiros curiosos.
Boanova Freire é mulher de quarenta anos, conversa franca e trabalho feito. "Foi preciso virar o destino de pantanas para chegar até aqui", vai sorrindo, enquanto aperta uma vida inteira de dificuldades até caber em trinta minutos de conversa hospitaleira. Para lá do seu pequeno escritório, ficam as câmaras onde seis mulheres trabalham de mãos mergulhadas no leite. "É dos poucos sítios onde tudo isto se faz seguindo os perceitos de antigamente", gaba-se a empresária, que há três anos tomou o negócio que o pai trazia quase falido. Foi por essa altura que decidiu "ir para a frente para não cair para trás". Investiu e pagou dívidas, trabalhou e deu trabalho. Os queijos que secavam em caniços com ventoinhas, secam agora em câmaras frigoríficas com todas as condições exigíveis. Mas a arte, garante, é ainda a mesma que o costume lhe ensinou desde que aos doze anos começou a fazer queijos. "O que eu fiz foi modernizar a tradição."
Uma tradição que o Alandroal quis recuperar como atractivo turístico. Bem pensado. Nestes 540 quilómetros quadrados de terra, estendidos da Juromenha até abaixo da Cabeça do Carneiro, já quase defronte a Monsaraz - lá onde o Guadiana deixa de ser fronteira e ganha margem esquerda alentejana -, boa parte das gentes activas entre os 6500 habitantes emprega-se em produções tradicionais como o azeite e o queijo. E o que para eles não passa de um ofício sem idade ganha estatuto de artesanato regional aos olhos gulosos de um turista. Abram-se então as portas da queijaria.
Maria é uma das seis artesãs da nata que aqui trabalham. É tão incapaz de falhar uma resposta como de recusar um sorriso, e é ela que nos guia passo a passo por este pequeno labirinto onde se converte ordenha em queijo. O leite entra cru por estas portas e segue para dois panelões industriais, onde ferve a mais de 85 graus. Ao fim de uma hora e tanto, começa a coalhar, para depois ser benzido com sal e pouco mais. Balançado num pano, embalado a ritmo certeiro por duas mulheres, o coalho divorcia-se do soro natural que o ensopa. E é então que ganha forma de queijo, moldado em pequenos anéis recheados à mão e depois carregados em bandejas para o frio, aqui na sala ao lado, refrescada a 13 graus. Se for apenas leite de cabra, estará pronto daí por 24 horas, em forma de queijo fresco com seis dias de vida útil. O restante coalho, o que traz mistura e leite de vaca, dará queijo seco com um ano de validade, e precisará de mais uma semana de cura, entre a seca, uma nova salga e a lavagem final. "E é assim. Não há muitos mais segredos que o leite ser bom", simplifica Maria com mais um sorriso. Não? "Bem, também há o tempero..." Pois.
Num mês bom como este que aí vai, esta arte repetida pode dar até cem mil pequenos queijos, estima Boanova. "Mais que isso, não é possível sem abdicar da qualidade. E isso não interessa a ninguém. Nem a quem quer fazer bom queijo, nem a quem quer comer bom queijo." Como nós, que acenamos a cabeça numa concordância entusiasmada, antes de arrancarmos em busca de vinho que o acompanhe, uns quilómetros abaixo, nos campos de Monsaraz.
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