quinta-feira, 23 de abril de 2020

VASCULHAR O PASSADO - AUGUSTO MESQUITA

                                                                A Tipografia União fechou       
           
A tipografia, é a arte e o processo de criação na composição e impressão de um texto. De certa forma, a tipografia recua à época da pré-história, quando os homens primitivos esculpiam os caracteres nas paredes das cavernas em forma de desenho, para representar as tarefas do seu quotidiano.                                                                                  A difusão da tipografia deve-se à invenção do alemão Johannes Gutenberg. A partir da revolução tecnológica operada por Gutenberg, a escrita passou a ficar duradouramente fixada em letras de chumbo. Assim, em vez de “manuscritos”, passou-se a dar uso à “tipo-grafia”, que através de letra por letra, formava as palavras que compunham os textos.                                                                O primeiro livro num prelo, a Bíblia de 42 linhas, data do ano de 1455, e foi o primeiro livro europeu impresso por processo industrial, na oficina de Gutenberg.                                                      
Em Portugal a tipografia apareceu quase no fim do século XV, 1498 segundo rezam as crónicas. Porém, o século áureo da tipografia foi o século XVI, não só em Portugal como em todo o mundo.                                                                   
No entanto, a produção manteve-se durante muito tempo com características artesanais, até ser criada a Impressão Régia (antecessora da Imprensa Nacional) em 1768. Desde a criação da Imprensa Régia até 1821, o número de tipografias em Lisboa passou apenas de 11 para 12, existindo unicamente mais quatro oficinas no resto do país. Com a industrialização da produção, aumentou exponencialmente o número de oficinas - em 1863 seriam 43 em Lisboa, e 113  no resto do país.                                        No caso concreto de Montemor-o-Novo, segundo apurei, a primeira tipografia a abrir portas, foi a Tipografia Santos, instalada na Rua das Continhas n.º 1, proprietária do jornal “A Gazeta do Sul”, cujo primeiro número saiu no dia 9 de Maio de 1896. Antes, porém, em 25 de Julho de 1883, tinha nascido o primeiro jornal montemorense - “O Bijou”, só que o mesmo foi composto e impresso na Tipografia da Casa Pia de Évora.                      
Em Fevereiro de 1916 Leopoldo Nunes fundou o jornal “O Almansor”, com periodicidade quinzenal. A composição e impressão estavam a cargo da Tipografia União (homenagem de Tomé Adelino Vidigal ao seu clube do coração), então sedeada no rés-do-chão do antigo Real Hospital, situado na actual Rua Capitão Pires da Cruz. Por mera curiosidade, refiro que no 1.º andar do referido edifício, estava instalada na altura, a sede do Grupo União Sport.           
Em 14 de Janeiro de 1932, na sua “Tipografia União”, Tomé Adelino Vidigal compôs e imprimiu o n.º 1 do semanário “O Montemorense”, cuja primeira série durou até 31 de Dezembro de 1947. O seu corpo redactorial fundador era formado por Tomé Adelino Vidigal, Jaime Ernesto dos Reis e António Tenreiro.                                                                                                                 Posteriormente, a Tipografia União transferiu-se para o n.º 21 da Rua do Pedrão. Além do seu proprietário, trabalharam nesta gráfica, Filipe Silva, Joaquim Faria, Mário Martins (Baró), Leopoldo Gomes, Joaquim Primo, Eduardo Caldeira, António Bento Romeiras e Mário Ramalho.       
Depois do falecimento de Tomé Vidigal, ocorrido no dia 17 de Novembro de 1978 na Sessão Solene comemorativa do 64.º aniversário do GUS, a gestão da tipografia passou a ser exercida pelo seu genro, o saudoso e meu querido Amigo, Leopoldo Gomes,  recentemente falecido.
Circunstâncias várias, falecimento da mulher e da filha, levaram o Leopoldo a cessar a actividade. Na sequência desta decisão, os herdeiros de Tomé Vidigal decidiram trespassar a centenária tipografia para o único funcionário – Mário Francisco Ramalho. Numa recente deslocação a um supermercado da cidade, encontrei o simpático Mário Ramalho, “Marinho” para os amigos. Depois dos cumprimentos que a actual situação epidémica exige – manter o distanciamento social, perguntei-lhe: De férias forçadas?                                   
Antes fosse, respondeu-me. Motivos imprevistos levaram-me a encerrar a centenária Tipografia União.                                                                 
Não me diga, e a maquinaria?                                                                                     
Com umas lágrimas nos olhos, disse-me: fui forçado a vende-la para o ferro-velho. A offset, a impressora manual, a guilhotina e a prensa entre outras, autênticas peças de museu, que o amigo Augusto também conheceu, saíram de lá aos pedaços! Ainda tentei junto da Câmara Municipal tentar salvar o referido equipamento. Falei com a Senhora Presidente, antes de entregar as chaves ao senhorio, para que a autarquia ficasse com as velhas máquinas, mas infelizmente remeteram-se ao silêncio. Não queria nada em troca, apenas que este histórico equipamento fosse colocado na Biblioteca Municipal, no Arquivo Municipal, na Oficina da Criança, ou noutro local qualquer. Não era preferível as máquinas ficarem em exposição para memória futura? Amigo Mário, estou completamente de acordo consigo, pois já o Padre António Vieira (1608 – 1697) dizia:   "Se no passado se vê o futuro, e no futuro se vê o passado, segue-se que no passado e no futuro se vê o presente, porque o presente é futuro do passado, e o mesmo presente é o passado do futuro".                                   
Infelizmente, a Câmara Municipal, que investe e bem, na cultura, deixou destruir o único e valioso património existente no concelho, no que às artes gráficas diz respeito. Não assegurou que as gerações futuras viessem a conhecer ao vivo, como se compunha manualmente, com caracteres de chumbo - jornais, livros, facturas, recibos, convites de casamento, cartões de visita, e os prospectos, a anunciarem a realização de jogos de futebol, de filmes, de touradas e de outros eventos, que se realizavam na vila, e finalmente, como se processava a passagem do texto armazenado no componedor com as letras de cabeça para baixo, para o papel. Acabou assim, sem glória, a existência do mais antigo estabelecimento montemorense!!!
Tal como os humanos, também as máquinas  têm sortes diferentes
Dois anos antes da destruição do valioso equipamento da Tipografia União, na reunião da Câmara Municipal de Évora, realizada em 14 de Março de 2018, e presidida pelo nosso conterrâneo Carlos Pinto de Sá, foi aprovada por unanimidade, a aceitação da doação de peças de tipografia à Câmara Municipal de Évora, pelo antigo mestre tipográfico Feliciano Caeiro, antigo sócio-gerente da desaparecida tipografia Bráulio Fonseca & Caeiro Lda., tendo toda a Câmara expressado a sua gratidão ao doador.                               
Como tudo na vida, é preciso ter sorte...
                                                                                                         
            Augusto Mesquita

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