terça-feira, 10 de dezembro de 2019

MEMÓRIAS CURTAS - Rubrica mensal do Prof Vitor Guita

Novembro bateu de novo à porta, cinzentão, frio e chuvoso como pertence. A chegada do S. Martinho, o aroma que exala do assador das castanhas e a rosada água-pé levam-nos a recordar uma mistura de odores que permanecem intactos na memória, assim como sons e imagens de outros tempos, em particular das tabernas que já não há.
Sempre que pensamos nesses velhos estabelecimentos, assalta-nos o cheiro das iscas, do coelho frito, das pataniscas, das fritadas de peixe e, claro, da atmosfera vinícola tão tipica das adegas.
A certa altura pusemo-nos a contar as tabernas que existiam em Montemor, décadas atrás, praça a praça, rua a rua, travessa a travessa. Só num brevíssimo relance, contabilizamos mais de trinta: Chico Caldeira, Chico Guerra, Chico Enjeitado…
Da taberna em frente à casa onde vivíamos há muitos anos, na antiga Rua da Cadeia, guardamos imagens muito nítidas do taberneiro e amigo José Ferreira (Zé Galego), das bojudas pipas e selhas de madeira, dos copos de três ou de cinco em vidro grosso. Vêm-nos à lembrança as gaiolas suspensas nas paredes, onde se baloiçavam e trinavam gorjeios os pintassilgos e canários. Conseguimos ainda revisitar os rostos, os gestos e os diversos timbres de voz dos clientes que batiam a sua cartada à sueca, à bisca de nove ou à bisca lambida. Muitos preferiam o jogo da ronda: “tenho uma ronda! E eu um rondim!”.
Um dos nossos passatempos preferidos de infância e parte da adolescência era acompanhar o amigo Manuel dos Santos, montado em cima da carroça do armazém, quando havia distribuição de artigos de mercearia pelos retalhistas da vila. O amigo Manuel deixava-nos criar por breves instantes, a ilusão de sermos cocheiros de verdade, autorizando-nos a pegar no chicote ou nas rédeas do possante cavalo russo. Quando a entrega de mercearias era feita em tabernas, havia sempre a fundada esperança de sermos obsequiados com um petisco ou qualquer guloseima. A nossa iguaria preferida era um naco de pão coberto com umas garfadas de atum que o taberneiro tirava de grandes latas de conserva.
Manuel dos Santos era popularmente conhecido por “Manel Sacristão” devido ao facto de seu pai ser quem zelava pela Igreja de São Mateus, quem enterrava os mortos e assistia à missa. Na vila ninguém ficava indiferente ao nonagenário sacristão, muito curvado, sempre que ele aparecia na sua carrocita. Alguns dos irmãos de Manuel dos Santos trabalharam atras do balcão de uma das mais conhecidas tabernas de Montemor e que tinha o sugestivo nome de Irmãos Unidos. À primeira vista parece tratar-se de uma Ordem Religiosa ou de uma Confraria, mas era assim que era conhecida a taberna situada na antiga Praça Velha, na esquina que dá para a rua do Sacramento e para a rua das Farizes, ruas, que por vezes, até não damos conta da sua existência.
Na falta do nosso saudoso amigo Manel, decidimos ir à procura de quem nos ajudasse a fazer o historial do velho estabelecimento, de preferência alguém que tivesse ali trabalhado.
Tivemos a sorte de encontrar Joaquim Manuel dos Santos Barreiros, que esteve atrás do balcão dos Irmãos Unidos durante vinte e tal anos, antes de ter de rumar, como sucedeu a milhares de portugueses, para terras de França. Os ainda rijos 87 anos, bem como o facto de ser sobrinho dos irmãos Santos, fizeram dele o nosso interlocutor perfeito.
Falemos, então, da taberna. Tudo começou alguns anos após o violento ciclone que assolou o país em 1941. Em Montemor houve casas destelhadas e outro tipo de danos.
Baltazar dos Santos, que tinha, na altura, um comércio no Cartaxo, adquiriu o edifício da Praça Velha onde abriu a taberna, tendo chamado para ajudar e orientar o negócio os seus irmãos Filipe e João dos Santos. O conhecimento que tinha da região do Cartaxo e de outras zonas vitivinícolas do Ribatejo ajudou o comerciante no negócio das bebidas, fazendo chegar regularmente a Montemor volumosos cascos com centenas de litros de vinho.
Os Irmãos Unidos, alem de servirem ao balcão, abasteciam outras tabernas da vila, não só de vinho mas também de cerveja. Quem por ali hoje passa dificilmente consegue imaginar a quantidade de pipas e barris que havia no interior da casa, já para não falar dos depósitos de cimento com milhares de litros de vinho e aguardente.
Na parede em frente da taberna, na parte mais baixa do largo, situava-se a loja do João Quintas e a barbearia do Ernesto Moreira, mais tarde do Ademar Baião.
Os Irmãos Unidos abriram portas num corredor de passagem bem movimentado, que dava acesso entre outras coisas, à Escola Conde de Ferreira, ao lagar de azeite da família Cunhal e ainda à conhecida oficina do Soeiro, onde foi forjada grande parte dos gradeamentos de ferro que, ainda hoje, ornamentam portas e janelas da nossa cidade.
A proximidade da oficina fazia com que acorressem à taberna clientes, ferreiros e serralheiros. O fecho de um bom negócio era óptimo pretexto para se beber um copo e comer um bom petisco.
Também na antiga Praça Velha, bem como na vizinha Praça da Hortaliça, era hábito, sobretudo aos Domingos, juntarem-se magotes de trabalhadores rurais que vinham ali à procura de manajeiros que lhes dessem trabalho na apanha da azeitona, na ceifa ou noutros trabalhos do campo. Muitos dos rurais acabavam por engrossar a freguesia da taberna.
Em altura de feiras a casa tornava-se exígua para dar de comer a tanta gente que ali ocorria. Algumas vezes foi necessário arrendar espaços contíguos. A taberna dos Irmãos Unidos ficava muito perto do velho mercado do peie, na Praça Velha. Enquanto o novo mercado municipal não abria ao publico, havia à porta da taberna um fogareiro acesso onde se podia por uma sardinha a assar ou outro pescado.
Passaram vários anos. Em 1971, Custódio José Tobias comprou o edifício onde viria a instalar um Mini-mercado bem recheado de frutas, hortaliças, mercearias… Havia também venda de pão, peixaria e talho. A esposa e a filha do amigo Custódio Tobias ajudaram-nos a recuperar algumas memórias da casa e testemunharam-nos a existência de grandes depósitos de vinho e de peças de madeira que restaram do que foi a antiga taberna. Cerca de vinte anos mais tarde, em 1992, o Mini-mercado fechou as suas portas.
Antes de terminar estas nossas Memórias, deixe-nos confessar que, alem das influências do S. Martinho, o que deu azo a esta nossa conversa acerca do vinho, das tabernas e taberneiros, foi a leitura de uma das mais geniais peças de teatro de Gil Vicente, que tem por título O Pranto de Maria Parda.
A vinha e o vinho estão abundantemente presentes na literatura e nas artes em geral. Ao longo dos tempos vários têm sido os escritores e outros artistas que se ocuparam da temática do vinho e das suas relações com o Homem, umas vezes exaltando o prazer provocado pela sua ingestão, outras vezes satirizando a incontinência dos bebedores incorrigiveis.
A conhecida farsa de Gil Vicente fala de uma mulher, bebedoura inveterada e sem dinheiro, que se lamenta da escassez e do preço do vinho, não conseguindo que lhe fiem uma canada  que lhe mate a sede.

Eu só quero prantear
Este mal que a muitos toca, que estou já como minhoca
Que puseram a secar.
Triste, desaventurada,
Que tão alta está a canada
Para mim como as estrelas;
Ó coitadas das goelas, Ó goelas a coitada!

Depois de se referir às tabernas de Alfama, da Ribeira, da Mouraria e de outros lugares de Lisboa onde costumava saciar-se, Maria Parda dirige-se às taberneiras e taberneiros, pedindo que lhe vendam vinho fiado. Desesperada com tanta resposta negativa, a mulher confessa.se disposta a morrer de sede, não sem antes deixar testamento.

Assim que por me salvar
Fiz este meu testamento
Com mais siso e entendimento
Que nunca me sei estar
Chorai todos meu perigo,
Não levo o vinho que digo,
 que eu chamava das estrelas.
Agora me irei pr´aelas
Com grande sede comigo.

E pronto amigo leitor! Tambem nós lamentamos ter de ficar por aqui.
Vitor Guita
In Montemorense – Novembro 2019


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