UM DESPEJO,
Uma Dúzia de GATOS
desatinados e ao relento
I.
Temos de contar, através do Al tejo, este episódio vivido entre
pessoas desta Vila que entristeceu e estragou o dia de muita gente que foi
seguindo a cena em directo, durante toda a manhã (longe da porcaria, e “pio de
vinho” do CMTV).
A D. Emília Rocha, Senhora de Gatos (“a Canholas”) era vizinha. Morava
mesmo em frente, na Travessa do Moinho Velho. Hoje teve que ir-se embora e
despedir-se pela última vez dos seus amados gatos.
Parece que eram muitos. Há quem os aponte pela calada «ilegais» e “à
portuguesa” que seriam ainda mais do que uma dúzia.
Nada disso lhe importava, muito menos a irreverente prole de gatos.
Viviam bem entre si. Porventura, com mais ou menos comida, nos limites e conformes
de um parco e descuidada limpeza doméstica.
II.
Reparemos entretanto que a D. Emília teve uma vida cheia de tratos de
polé. Bastante dura e amarga. A vida parece nunca lhe ter corrido em seu favor
e tratá-la como se justificava. Morreu-lhe um filho, a filha avariou,
desatinou, e agora está «meio amalucada» num hospital. Demasiados dramas!
Os trabalhos e as urgências da vida foram-lhe dando para o torto e
acabaram, quase sempre mal, quebrando-lhe as resistências. Até que hoje, com um
certo aparato judicial, à mistura, teve de dizer adeus à casa e aos seus gatos.
Não sabemos se ouve “corações partidos” mas, diria que se ouvia na
Travessa inteira, um miar desvairado e perdido dos seus malteses. Dissemos, ai
que grande porra! A corda partiu-se.
III.
O que importa agora lembrar às pessoas que a conheciam, aos gatos,
gatas e gatinhos que com ela conviviam, é que esta cena real (da qual vimos a
parte final) foi castigadora e quanto “a sentimentos humanos” um tanto
autoritária e imerecida.
Resmungou a D. Emília, resistiu e desabafou. Retardou, bateu com os
pés e até disse corajosamente que “apertava os tomates” a quem dali a
despejasse e até os gatos o estraçalhavam. Só depois é que entrou vencida na
ambulância.
Dito de outro modo: em casa, os gatos podiam não ter grande asseio,
podiam não ter sofás nem mantas “of China” para dormir, podiam passar sem
televisão e sem telemóvel, podiam passar frio ou ter que vadiar um pouco à
noite para dormir descansados por turnos de manhã e à tarde.
Mas uma coisa é certa: tinham consigo a D. Emília que os entendia, e
os alimentava com parte das «suas refeições sociais» vindas da Venda do
Pinheiro. Era com quem se enroscavam e, digamos assim, percebia-se que havia
por ali conversas entre si.
A D. Emília, diga o se disser
aqui na Travessa era afinal a sua maior Amiga com a vocação de grande dona. Não
havia outra que lhe pusesse nomes tão engraçados, que os chamasse dos telhados
pelos nomes próprios. Sirva de ilustração, vejam lá os nomes que D. Emília lhes
inventava no masculino e no feminino: Tarró /Tarouca, Kagano/ Kaguda, Carolo/
Carula, Mira/Remira, Pio/Pias, Catita/Batata, oh Augusto/ oh Agustina,
dispondo-se, como já vimos, a viver entre si em tamanha Harmonia.
Em tamanha amizade. Em simples e tão animado entendimento.
Com um maior ou menor asseio, cada um pró seu lugar, cada um
asseando-se ou desasseando-se à sua maneira. A liberdade de ser gato,
repete-se, pode ser isto ou também terem um certo medo da água fria.
IV.
Os gatos da D. Emília eram
parte do seu mundo íntimo. Eram uma razão de viver. Eram a sua forma de
acarinhar. Eram uma última razão para ir existindo diariamente. Faziam parte da
sua linguagem.
Os gatos miavam, ela sorria. Gatos pobres, (há gatos muito ricos…)
gatos magros, gatos baratos, gatos sem consultório, gatos solidários. Assim
viviam com a sua dona reformada e desalinhada. E bem uns com os outros.
O Amor, essa palavra mágica (ainda) pouco partilhada entre animais e
pessoas, este encantamento mútuo, ficámos nós convencidos que nunca vai deixar
de habitar o espírito da D. Emília. E temos a certeza que o mesmo diriam os
seus estimados gatos, se falassem ou se fossem ouvidos.
Como ainda não falam, nem são ouvidos, perguntamos nós por eles: o que
seria das relações humanas, se não houvesse gatos e se não fossem gatinhando,
querendo colo e muita calma na sua serena e desincomodada existência?
E se, para terminar, tivéssemos de perceber, que gatos e gatas,
homens, mulheres e crianças, vamos todos estando neste Mundo para nos
humanizarmos em conjunto. E uns aos outros.
E que um dia, se deixasse de haver gatos para caçar ratos… O Mundo
seria ainda mais incompreensivo e violento do que vem sendo.
Concordam, amigos, com este
modo de ver as coisas? Será assim que devemos compreender melhor as lágrimas da
Dona Emília e as lambidelas dos seus gatos?
Um bem haja para Dona Emília/Senhora dos Gatos
(anb)
ADITAMENTO
É bom de dizer
que, cá por casa, também temos uma “Estrela”. Quando abre os seus dois Faróis
dá logo para se ver poeticamente neles “ o Sol da noite e a Lua do dia”.
Além disso, é
muito amistosa e bastante Iva-
Raccional. Ir à rua, caçar, namorar, ou
brincar aos maridos, nem pensem nisso! Diz: «agora querem-nos assim, sem
delirar»! Tiraram-nos “o jacto não podemos voar”.
Assistiu desta
varanda, mesmo em frente, ao caso, a tudo e às merd@s comoventes do despejo
final, frio e seco, dos seus irmãos e irmãs. Miou alto três vezes…e quando
tentámos perguntar-lhe qual era a sua opinião, silenciosa, recusou-se a
responder e foi ronronar para debaixo da cama uma tarde inteira.
Mundos houve (e ainda há) em que eram
«Sagrados e intocáveis», pensei eu… Portanto, esta página virada, não tinha que
haver mais palavras… O despejo animalesco deixou-nos em baixo! O Bem
evaporou-se.
Ficaram os gatos
ao deus dará. Como é sabido, os Gatos, têm uma cabeça pequena e bonita
mostrando “grande sensibilidade e a tal sinceridade vadia” de viverem e estarem
onde querem. De preferência, gozando o Sol. Isto enquanto, entre nós, homens e
mulheres, parece ser ao contrário: a cabeça é grande mas os bons tratos na
Comunidade parecem ser cada vez menores. Será assim?
Seja como for, é esta a linha condutora
principal deste texto e do Aditamento final com os quais pretendemos ver, por
aqui, afixada a realidade seguinte: “as pessoas têm direitos; os animais têm
aprovados direitos”.
A Constituição de 1976 ainda não foi
despejada. Não está engavetada. Nem desvigorou. Como ainda não me perdi, vamos
acreditar que este l viver português tem de ser melhor. Sem andar a apregoar
moralismos pouco confiáveis e dignos. Não chateiem mais o Camões, oh chícharos
de meia tijela, nossos tristes martírios.
Saudações
Democráticas
António Neves Berbem
(Em Abril, 3 de 2019)
1 comentário:
Caro António Berbém,
Uma bela homenagem à D. Emilia, que sendo a "maluca dos gatos", humilde, pobre em bens, mas rica em Espírito e em humanidade "gatil", fez o que tinha a fazer, lutou até ao fim pelos seus gatos. As condições em que o fazia eram as possíveis, o gesto será sempre o que ficará na memória. E porque nem tudo é política, fica sempre bem enaltecer estas pessoas anónimas, que à sua escala, vão mostrando que ainda à esperança para humanidade. Ou será para os gatos?
Obrigado pelo texto!
Grande Abraço,
André Bengochea
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