Lá fora, o vento frio e agreste bem como as nuvens negras e
encasteladas eram prenúncio de umas gravanadas e um convite para ficarmos à
mesa durante mais algum tempo. Patalim, para além da água que jorras das bicas,
tem sido para nós uma fonte de inspiração, um alfobre de testemunhos vivos e de
lembranças.
Em altura de Carnaval, a conversa rendeu, como seria de esperar,
para o lado da boa disposição e, como estávamos à mesa, falou-se
inevitavelmente de hábitos alimentares, em particular de pratos típicos em
período carnavalesco.
Em casa de Joaquim António Barrenho e noutras da vizinhança,
havia mesa posta desde Sábado Gordo até Quarta-feira de Cinzas. A porta
abria-se para quem quisesse entrar e provar umas filhoses ou outros fritos,
saborear umas colheradas de arroz doce, uns bolos caseiros e beber um copo de
vinho do Porto, de anis escarchado ou de aguardente. Nalguns casos havia quem
pusesse na mesa carne frita, pão, linguiça e azeitonas. Também o garrafão do
tinto andava ali por perto.
Se na vizinhança havia alguém mais carenciado, quem tinha
dava a quem mais necessitava. Muito especialmente em tempo de Carnaval, D.
Miséria tinha ali pouco cabimento.
O lugar do Patalim era pequeno, mas não faltava gente. Dum
lado e doutro do ribeiro, morava mais de uma dúzia de famílias, muitas delas
com uma ranchada de filhos. Havia, além do mais muita mocidade.
Nesta altura festiva, fazia-se uma boa alguidarada de massa
de filhoses, que dava para os cinco dias de festa. Aconteceu, algumas vezes,
ainda sobrarem fritos para mandar à família que vivia na margem sul do Tejo. As
filhoses e outros mimos seguiam na carreira dos Belos, dentro de cabanejos, e
era o próprio condutor da camioneta que ia entregar as tão desejadas encomendas
à porta de casa. Serviço domiciliário e personalizado!
Nos dias de Carnaval, as refeições principais obedecia a uma
ementa quase obrigatória. No Domingo, era altura de comer uns pezinhos de porco
bem acoentrados; segunda-feira, chegava a vez da carne de conserva com ovos
mexidos ou com mioleira; na terça-feira, era da praxe comer-se um saboroso
cozido com perna de peru, chispe, toucinho e linguiça, a que se juntavam umas
falripas de hortaliça e massa de meadas.
Estavam ali alguns dos saborosos paladares que gerações e gerações
souberam preservar ao longo dos tempos, uma cozinha que obedecia à sazonalidade
dos produtos e que ainda hoje faz parte, embora em número mais reduzido, dos hábitos
alimentares das gentes do Alentejo. O Carnaval era sem dúvida, a grande festa
do ano no mundo rural. Trabalhava-se nos dias de Natal e Ano Novo, mas o
Carnaval era sagrado. No fim da manhã de sábado arrumava-se o estojo. Não havia
arranque de sargaços nem queima da boça, nem cava de favas p´ra ninguém.
A partir de sábado à tarde, começava a juntar-se o pessoal
para o bailarico. Quem passava na estrada que liga Évora a Montemor não
resistia a fazer uma paragem para assistir ou, se possível participar em toda
aquela animação.
A Patalim chegava gente vinda de outros lugares, em especial
dos montes vizinhos, para participar no baile que se armava nas ruas do monte.
Também acontecia nalgumas situações, os lavradores
facilitarem a cedência de um barracão. Era ali entre manjedouras e fardos de
palha, que se desenrolava a função.
Havia quem se mascarasse com lençóis ou roupa velhas…outros
disfarçavam-se com fatos de papel colorido que habitualmente servia para
enfeitar chaminés e prateleiras. Como se pode imaginar mutas daquelas fatiotas
acabariam todas rasgadas.
Joaquim Barrenho era habitualmente o tocador de serviço. Sem
saber uma nota de música e apesar das mãos calejadas do trabalho e cobertas de
axes, o tocador ia mostrando o seu virtuosismo a tocar harmónio. As melodias e
os ritmos tinha-os todos na cabeça, desde os polqueados aos corridinhos e a
muitas outras modas. Diz quem o conheceu que era um homem alto, de bigodinho,
muito calmo, de poucas palavras. Porém, rijo no trabalho. A camsa preta, ao fim
de um dia de labuta, tingia-se de manchas brancas e endurecia com o sal do
corpo. O tocador ganhava 40 escudos por cada baile, pelo que os organizadores da
festa tinham que recorrer a vários cravanços, ou proceder à rifa de garrafas: “ora agora, vai-se proceder à arrifação de
uma garrafinha, gentilmente oferecida pela filha do senhor fulano de tal.
Quanto é que vale a velhaca?”
Era frequente armar-se um baile de roda, onde se cantava e
dançava ao desafio. Algumas das quadras ainda perduram na lembrança das gentes
do lugar. Certa vez a chegada do namorado de uma das raparigas fez soltar uma
afinada voz feminina:
Ainda bem que chegou
Quem tão desejado era.
Já chegou o rei dos
cravos
Ao jardim da Primavera
Também acontecia ao pessoal do Patalim ir aos bailes dos
montes em redor: Valadas, Vale de Marias, Moita, Vale de El-Rei…
Ia-se a pé, campos fora, por veredas ou caminhos irregulares,
por vezes lamacentos. Autenticos atasqueiros. Aqui e ali, atravessava-se uma
linha de água. Se a caminhada era feita de noite, havia quem aluminasse o
percurso com um candeeiro a petróleo, desses que se usavam nas cocheiras. Numa
das deslocações ao baile de Pero Mogos, da boca de uma das raparigas saiu esta
quadra, cheia de simplicidade, de imperfeições poéticas, mas muito sincera;
Eu vim de Patalim
A Pero Magos passear
Que paixão não hei-de
eu ter
Se o meu amor me
deixar.
Mas não se pense que tudo eram palavras amorosas, idílicas.
De vez em quando, surgiam rivalidades entre os rapazes, por causa das
raparigas.
Havia quem fizesse léguas para vir dançar com as bonitas
moçoilas, algumas delas já com namorado. Os forasteiros pediam normalmente aos
rapazes do lugar dispensa do par para dar um pé de dança. Se o número de voltas
com a rapariga excedia o acordado ou se havia algum comportamento menos
correcto, instalava-se a confusão. Quando as coisas azedavam, desatava tudo à
pancadaria em breve, estava o baile acabado. A primeira bordoada era para o
candeeiro a petróleo e depois salve-se quem puder. No meio da escuridão havia
empurrões, debandada, gritaria…
Havia quem simulasse confusão só para se apoderar, depois da
casa vazia, dos bolos que ainda tinham sobejado e do garrafão da aguardente.
Segundo nos testemunharam alguns intervenientes destes reboliços,
no dia seguinte faziam-se as pazes e a vida continuava, a trabalhar no duro.
A fechar o período carnavalesco, encenava-se o casamento de
dois bonecos. Antes de serem queimados, noiva e noivo eram transportados em
cortejo, estrada fora, desde o alto da Abaneja até à baixa do Patalim. A
preceder a queima não faltavam versos jocosos, cheios de sátira, alguns bem apimentados.
O reinado de Sua Majestade o Entrudo chegara ao fim. Á semelhança
dos antigos rituais pagãos, as festividades tinham servido, entre outras
coisas, para libertar tensões, energias… Um escape para as agruras da vida!
Até um dia destes
Vitor Guita
In “Montemorense” – Março 2019 –
Transcrição permitida pelo Autor
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