CLÁUDIA SOUSA PEREIRA
Lara não é nome de
tempestade
Lara
não é nome de tempestade, é o nome da menina de dois anos vítima mortal de
violência doméstica, das nove que já se contabilizaram só este ano em Portugal.
Como no anúncio que passa nas televisões, tão chocante quanto o tema e em que
se encena um julgamento a um confesso criminoso por violência a uma idosa,
muitos somos os cúmplices destas situações, com desfechos mais ou menos graves.
Quem nunca ouviu dentro de uma casa vizinha, ou de um carro estacionado, uma
discussão mais acesa entre duas pessoas e cuja, ainda assim, intimidade que as
parecia proteger nos impediu que interrompêssemos a perguntar se estava tudo
bem, quanto mais a comunicar eventual ocorrência à autoridade mais acessível?
Quantas dessas discussões terão resultado numa escalada de violência que tenha
causado danos irreparáveis nos seus intervenientes? Do aparentemente simples
amarfanhar emocional capaz de condicionar possíveis futuras relações de um indivíduo,
mulher ou homem, ao assassinato, tudo pode ter começado com essa discussão.
Definir os limites parece não ser difícil até ao momento em que se tenha de
passar à acção. “Meta-se na sua vida!” é a resposta que em público envergonha
qualquer cidadão que só queira mesmo viver assim.
A denúncia, em particular em
Portugal onde há ainda tantas sombras pidescas a acusarem-na, é um procedimento
preventivo. E é até uma das formas do controle social que funciona em
sociedades cujas regras em público são mesmo para cumprir e não simulacros de
que andamos a fazer as coisas de acordo com regulamentos que exigimos e
aprovamos. Mas quando o que parece estar a correr mal acontece em privado
mesmo, é difícil descobrir qual o limite que se ultrapassa e, muitas vezes, já
só quando a violência é física e pesada se consegue percebê-lo para agir. E a
violência física é mais do que o grau zero da violência. Esse, o grau zero, é
por vezes tão silencioso quanto devastador e insultuoso. Erguer a voz para
discutir acaloradamente um assunto, mesmo que pessoal, não é, no entanto, o
mesmo que insultar. Mas o insulto, cada vez mais banal, e por vezes até em
discussão pública, tende a ser cada vez menos penalizado. Por exemplo, em
certas situações onde até aparece envolto em falinhas mansas ou de inspiração
bíblica. E sim, uma sentença num caso de julgamento por violência que se
transforma em julgamento por adultério, é uma situação cúmplice da defesa da
violência.
A violência doméstica não é nem
pode continuar a ser um monopólio das questões da igualdade de género, cuja
promoção, temos obviamente de reconhecer, veio desempenhar um primordial papel
na sua denúncia. É uma questão de saúde pública, de intervenção social, de
educação. E não falo da educação do sistema de ensino, mas de um sistema
composto, em que são intervenientes todos quantos por dever têm actuações em
público e que têm de ter consciência que são modelos ou exemplos que outros vão
seguir. E é por isso que, numa época em que em público se faz tanto ou mais do
que se diz, já parece não chegar dizer para não se fazer. Os vícios e as
virtudes descem sem vergonha à rua, pelo que não chega evocar ou fazer sentir a
vergonha para punir. Ela é até já só mais um motivo para justificar a
humilhação e, portanto, reprovável. Parece, então, que talvez tenhamos chegado
à época em que a lei afinal tem mesmo de servir para moralizar. E,
descomplexadamente, tentarmos limpar-lhe a patine dos credos para a revestirmos
com o manto da dura realidade que a sociedade tem de enfrentar, sem ilusões de
castigos adiados em nome de entidades supra-humanas. Uma espécie, mas a sério,
do “cá se fazem, cá se pagam” com intermediários em campo, já que nem ninguém é
bom juiz em causa própria, nem quem tem que defender causas deve julgá-las sem
contraditório. Não é fácil, pois não, mas talvez esse acabar com o sentimento
de impunidade tivesse evitado toda uma vida de um indivíduo que levou à morte
de Lara.
Até para a semana.
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