quinta-feira, 8 de novembro de 2018

MEMÓRIAS CURTAS - Prof. Vitor Guita


A notícia do encerramento do Monte Alentejano, fez agitar em nós as campainhas da memória, levando-nos a dar um salto no tempo, cinquenta ou sessenta anos atrás.
As boas recordações que guardamos deste café da avenida vieram suavizar aquilo que, à partida, parecia ser um fúnebre badalar.
Tal como acontece às pessoas, os cafés também morrem. Já assistimos ao desaparecimento de muitos. Outros, depois de uma fase de declínio, passam por diversas metamorfoses e conseguem sobreviver. Assim será, esperamos com o emblemático café da Gago Coutinho..
O Monte Alentejano é daqueles lugares que deixam um traço profundo na lembrança de quem lá passou uma parte significativa da sua existência.
Quando descemos ou subimos a avenida, vêm-nos frequentemente à memória imagens, cheiros, mil e uma sensações, momentos de felicidade que se podem encontrar nas coisas simples da vida… sai um cachorro e uma imperial!
Recordamos também as vagas sucessivas de turistas, sobretudo estrangeiros, e as filas de espera que, nas noites cálidas era preciso fazer para um lugar na esplanada.
Se deixarmos deslizar o nosso olhar avenida abaixo, onde agora se perfilam casas de habitação, banca, seguros, escritórios, cafés e outro comércio, ergueram-se altas barreiras de terra e rochedo, onde fazíamos, nos tempos da escola, temerárias escaladas. Mal sabíamos nós que, décadas atrás, estávamos a antecipar o moderno conceito de desportos radicais.
Quando havia cinema na esplanada atrás do Monte, uma escalada bem sucedida dava direito a ver filmes de borla. Do alto das barreiras ou em certos pontos estratégicos da Rua do Poço do Passo, conseguíamos seguir os gritos vibrantes e os acrobáticos voos de Tarzan, o rei da selva, ou assistir aos intermináveis tiroteios do Jonh Waine ou dos Sete Magníficos. Outras vezes, emocionávamo-nos com a vozente, sedutora, de Sara Montiel ou com as canções românticas do chileno Antonio Prieto, “blanca y radiante vai la novia”… de vez em quando a noite iluminava-se com a voz canora de Joselito ou de Marisol.
Em noites de /ª arte, o ritmo do café dependia do horário do cinema. Primeiro, era o aglomerado de cinéfilos junto à janela que servia de bilheteira. Depois, nos intervalos, vinha uma enxurrada de gente comprar rebuçados, amendoins ou lubrificar as gargantas.
Recorde-se que o Monte Alentejano foi construído à beira da ainda jovem avenida que rasgou um terreno que em tempos tinha sido eira. O complexo de hotelaria foi inaugurado em meados da década de cinquenta do século passado, e o cine-esplanada abriu portas logo a seguir com a exibição do filme Antes do Furacão.
Nos Domingos, ao fim da manhã, sempre que havia jogos primodivisionários em Évora entre o Lusitano e os grandes de Lisboa, tínhamos a rara oportunidade de ver ao vivo os grandes ídolos do futebol, que só conhecíamos através dos jornais e da rádio, da televisão e dos bonecos da bola. Por ali passaram muitos craques sportinguistas, mas também os campeoníssimos Costa Pereira, Coluna, José Augusto, José Águas…Guardamos na memória a estridência dos gritos entusiásticos dos mais encarniçados benfiquistas: VIVÓBENFIIICA!!!
A propósito de bonecos da bola, os primeiros cromos que temos idéia vinham embrulhados em rebuçados baratos e tinham uma fraquíssima qualidade gráfica. A escola era um dos espaços onde fazíamos a troca de bonecos, especialmente quando faltavam poucos cromos para completar a caderneta. Em cada página só havia lugar para colar onze jogadores. Se fosse hoje, ao ritmo a que são feitas as transferências dos atletas, não havia colecção que resistisse nem caderneta que se aguentasse.
Alguns dos nossos estimados leitores estão certamente lembrados de que os cromos da bola serviam também para jogar ao bate-bate. Nos lancis dos passeios ou nas soleiras das portas, era ver a rapaziada, com a mão enconchada a tentar virar os pequenos rectangulos de papel. Um bafo quente ou uma cuspidela na palma da mão ajudavam a virar a bonecada.

Voltemos ao Monte Alentejano. Não se pode dizer que o café-restaurante tivesse um caracter elitista.
 Ali se cruzavam diversas categorias de pessoas.
Quando chegava o tempo frio e chuvoso, o grande movimento passava para o interior do edifício, decorado com motivos regionais de bastante interesse e onde não faltava a tradicional lareira ao fundo da sala. A atmosfera tornava-se por vezes pesada, com o fumo denso dos cigarros que, ao longo dos anos, foi dando lugar às paredes brancas uma certa patine cor de sépia. A espaços ouvia-se pedir uma bica, um garoto, um constantino ou uma mosca, um poejo ou um granito. Outras vezes saia um quarto de águas das pedras ou de Vidago, uma laranjinha C, um fruto real ou uma sagres com tremoços. Sem segregar ninguém, o café tinha no entanto, uma clientela fidelizada, incluindo algumas senhoras elegantemente vestidas. Presença quase obrigatória foi, durante muitos anos, a do espanhol Miguem Vinueza e da sua esposa… mas personagens indissociáveis daquela casa eram os irmãos Diogo e Luís Fragoso, proprietários do estabelecimento, assim como alguns dos seus familiares. Atrás do balcão, com toda a sua veterania, marcava presença o amigo António Gomes (popularmente conhecido por António Boi) e, a servir à mesa, com o seu fino trato lá estava, lá estava o Alexandre Salgueiro. Outros nomes de empregados marcaram algumas fases mais distantes do Monte Alentejano: Rolo, Gamito, Caçoilas, Hélio, Laurentino Saloio, entre outros figurantes igualmente muito presentes eram o cauteleiro António Vogado, apregoando a Sorte Grande com a sua voz algo atabalhoada, ou o popular Farolo conhecido vendedor de gravatas e também dos perfumes Tabu e Madeiras do Oriente.
Numa época em que muitas poucas casas tinham televisão, eram várias as famílias e grupos de amigos que passavam longos serões no Monte para assistirem às emissões da RTP. No pequeno ecran da grande caixa de madeira apareciam, como se já fossem da família, os habituais Sousa Veloso, Vitorino Nemésio, os irmãos Villaret e o poeta Pedro Homem de Melo. Prendiam-nos também ao ecran as Charlas Linguísticas de Raul Machado ou o Museu de Cinema apresentado por António Lopes Ribeiro e musicado pelo pianista António Melo: Bôa nôte!
Todos os dias eramos informados, a preto e branco, do que se passava no mundo e assistíamos com regularidade a programas de teatro, folclore ou variedades.
Na quadra natalícia, das longínquas colónias em guerra chegavam as mensagens de soldados e marinheiros: Feliz Natal e um Ano Novo cheio de “propriedades”! Adeus e até ao meu regresso!
Muito raramente conseguíamos ver uma emissão de principio ao fim: Volta não volta, lá apareciam no ecran uma irritantes fitas, a que sucedia o não menos enervante cartaz: “Pedimos desculpa por esta interrupção. O programa segue dentro de momentos”. A paragem podia durar breves segundos ou então minutos intermináveis. Uma chatice!
Alem dos programas já citados, passavam na caixinha mágica várias séries do agrado dos telespectadores: Polícia da Estrada, O Homem Invisível, o Santo,  e, claro está a família Bonanza. Para os mais novos antes da hora de jantar, era altura de espreitar, muitas vezes à sucapa, as aventuras de Robin dos Bosques, ou as do Zorro, as de Sir Lancelot ou as de Ivanhoe. Tambem as séries Daniel Boone, Furia, Supercarro, marcaram gerações da malta mais nova, e não só.
E pronto estimados leitores. Pedimos desculpa pela interrupção mas as Memórias Curtas seguirão, com toda a certeza no próximo mês. Até lá.

Vitor Guita
In Montemorense – Outubro 2018 – Transcrição autorizada pelo Autor


2 comentários:

Anónimo disse...

Chico Manel Foi neste café que, cerca de 1966/67, esperavamos que o AB namorásse. Eu e o JA vinhamos de Évora no carocha preto do AB, depois do jantar, para lhe fazer companhia. No café tomávamos uma bica e um Constantino e conversáva-se até por volta das 11. Uma noite, café deserto por causa de um temporal, eu pedi um absinto. Lera nos livros que era a bebida dos finos/boémios de França. Não havia, disse o atendedor. Metemos conversa e ficámos a saber que "na cave há uns caixotes de madeira, com bebidas, mas não sabemos o que é aquilo". Ainda não estavamos junto das caixas já eu traduzira: absinto elaborado especialmente para suas excelências os czares da Rússia. Abrimos a caixa, uma garrafa subiu ao bar, o simpático empregado serviu-nos e não cobrou nada pois não sabia qual o preço a fazer. Não foi só nessa noite. Trocou-se o Constantino pela bebida dos czares e bastava dizer obrigado àquele santo homem. (nota: sabes perfeitamente quem era o AB e o JA, não sabes?) M Subtil

francisco tátá disse...

Olá amigo. Obrigado por estas recordações no teu comentário.
Abraço grande amigo
Chico