EDUARDO LUCIANO
CRÓNICA FORA DE TEMPO
Um destes dias entrei por impulso numa livraria da cidade e
adquiri um livro (detesto a palavra comprar num tempo em que a principal
mercadoria é a consciência). Como sempre faço deixei que o livro me escolhesse
depois de passar os olhos por um sem número de capas e lombadas,
maioritariamente de mau gosto, que reflectem os temas mais comuns e correntes,
da economia à psicologia de algibeira, do conheça-se a si próprio ao como ter
sucesso em dez passos, do como educar o seu filho em três etapas ao como
emagrecer continuando a comer toucinho.
O
livro que me escolheu foi escrito por autor já falecido, apesar de ser uma
edição em português já deste ano de 2018 (começa a acontecer-me muito. Ser
escolhido por escritores e músicos já falecidos, embora ainda vivos nas suas
obras. Deve ser da idade).
É
um livro sobre a memória ou a sua ausência, ou talvez sobre a reconstrução da
dita a partir de um AVC que atropelou o personagem deixando-o com uma vida em
branco no que ao conhecimento de si próprio diz respeito, embora se lembre de
todos os livros que leu, de todos os enredos que percebeu.
É
um livro cheio de livros lá dentro, porque o autor coloca o personagem a citar
inúmeras passagens de obras marcantes da história da literatura. É um livro
escrito para leitores de livros e que os consumidores do óbvio não irão achar
muita graça.
Umberto
Eco não era homem de brincar em serviço nem de facilitar a vida a quem tem o
prazer de ler.
Ao
ler “A misteriosa chama da Rainha Loana”, somos levados a questionar o nosso
passado, a sua existência e a forma como nos recordamos ou esquecemos de coisas
tão simples como o nome dos nossos pais, a casa onde vivemos ou a pessoa com
quem casamos.
Tudo
fica em causa se conseguirmos colocar-nos na pele do personagem que se lembra
que Giambattista Bodoni era um tipógrafo famoso do período napoleónico, mas não
sabe o seu próprio nome nem reconhece o seu rosto num espelho.
Já
perceberam que esta é uma crónica de divagações, ditada pela minha prima
Zulmira que é uma feroz admiradora de algum diletantismo literário.
Escrevo-a
porque a alternativa era escrever sobre aves e estava indeciso entre o cuco e o
bufo (peço desculpa mas o meu republicanismo não me permite chamar-lhe real).
Já
me estava a esquecer que este espaço é de intervenção política e nem sequer
comentava a remodelação governamental.
Porque
a crónica vai longa quero apenas declarar que, ao contrário da deputada Isabel
Moreira, me estou nas tintas para a cor do cabelo ou a orientação sexual da
novel ministra da cultura. É assunto privado da senhora. O que me importa mesmo
é saber se nos aproximamos do 1% do orçamento para cultura, se as regras dos
concursos da DGArtes vão ser alteradas e simplificadas ou se o cumprimento do
desígnio constitucional do acesso à cultura irá continuar refém da lógica da
submissão à ditadura do deficit.
Afinal
sempre consegui cumprir a tarefa de abordar a actualidade política que, por
falar nisso, tem tudo a ver com a memória. Em particular aquela que fascistas
de novo tipo querem plantar. Lá tinha que falar de bufos.
Até
para a semana
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